Por M.K. Bhadrakumar*
Quando os paradigmas deixam de refletir a realidade devem ser substituídos, ou as lideranças que se apegam a eles falharão. Os líderes ocidentais estão acostumados a pensar em termos de um mundo westfaliano e mostram dificuldades para aceitar o novo paradigma que vem se escancarando.
A guerra na Ucrânia é essencialmente Clausewitziana. E para entender isso, precisamos retornar a Carl von Clausewitz, o decano da guerra moderna, que reconheceu que a guerra é praticamente ilimitada em variedade, “complexa e mutável”, e observando que cada época tem seu tipo particular de guerra com “suas próprias condições limitantes e seus próprios preconceitos particulares”.
As observações contemporâneas de Clausewitz sobre o caráter da guerra do século XIX são muitas vezes mal interpretadas como uma defesa da natureza imutável da própria guerra. Essa complacência paradigmática gerou a narrativa ocidental do conflito na Ucrânia.
Evidentemente, o lado russo não se conformou com a narrativa ocidental. A confusão resultante ameaça fragmentar a unidade ocidental. Nem todos os países da OTAN estão mais falando a uma só voz.
O presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, prometem que ficarão satisfeitos com nada menos que uma derrota russa. Os “Novos Europeus” – principalmente a Polônia e os Estados Bálticos – também exigem um fim apocalíptico para a história da Rússia. Um pouco distante está o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, que apenas diz que não quer que a Rússia “vença”. O francês Emmanuel Macron continua dizendo que sem envolver a Rússia, a arquitetura de segurança europeia não pode ser construída. Depois, há céticos absolutos como Grécia, Turquia e Hungria.
Biden e Johnson têm vantagem, pois manipulam a atual configuração em Kiev e alavancam a guerra. Mas mesmo esses dois políticos parecem perceber ultimamente que as coisas estão mais complicadas. A Declaração de Visão Conjunta emitida em Washington em 13 de maio após a cúpula especial EUA-ASEAN evita completamente a retórica e a hipérbole americanas usuais sobre a “agressão” russa.
Ele omite quaisquer referências à Rússia ou às sanções ocidentais e, em vez disso, sublinha “a importância de uma cessação imediata das hostilidades e da criação de um ambiente propício para uma resolução pacífica”.
No entanto, por incrível que pareça, o fato é que o Congresso dos EUA está oferecendo a Biden um enorme orçamento de guerra para ajudar a Ucrânia, que excede o orçamento anual do departamento de Estado americano e é mais do que ele propõe gastar em projetos de energia verde nos EUA.
Da mesma forma, a UE, que impôs sanções tão duras à Rússia, está percebendo tardiamente que as sanções estão prejudicando mais as economias europeias do que a economia russa. Em alguns países europeus, a taxa de inflação anual aproxima-se dos 20%, enquanto os preços na Zona do Euro aumentaram mais de 11%, em média. Durante uma videoconferência em Moscou na quinta-feira, o presidente Putin destacou que:
- As empresas russas estão consistentemente substituindo parceiros ocidentais que saíram devido a sanções;
- 130 milhões de toneladas de grãos são esperadas na colheita da Rússia este ano, incluindo 87 milhões de toneladas de trigo – “um recorde histórico na história da Rússia”;
- As taxas de inflação na Rússia caíram várias vezes em relação aos níveis de março;
- O superávit orçamentário atingiu 2,7 trilhões de rublos;
- Houve um superávit recorde no comércio exterior;
- O rublo está registrando “melhores resultados do que todas as outras moedas estrangeiras” desde o início de 2022.
Ultimamente tem sido ouvidas vozes críticas de que as sanções anti-Rússia estão apenas exacerbando a crise inflacionária dos EUA e que priorizar a ajuda à Ucrânia está distraindo Biden de questões domésticas mais importantes. O senador Rand Paul exigiu uma auditoria do caminhão de dinheiro para a Ucrânia, citando uma analogia com a guerra afegã. Ele observou que o último pacote de gastos elevará a ajuda total dos EUA à Ucrânia para US$ 60 bilhões desde o início do conflito em fevereiro, o que é quase tanto quanto a Rússia destina anualmente para todo o seu orçamento de defesa!
No entanto, a Rússia não tem cronograma para esta guerra. Está demorando para destruir sistematicamente as capacidades militares, a base industrial e a infraestrutura da Ucrânia de forma abrangente. Biden e Johnson pensaram que o desgaste iria acontecer, já que a Rússia está lutando contra o “Ocidente coletivo”, afinal.
Mas Putin lembrou a eles na quinta-feira que a Rússia venceu a Segunda Guerra Mundial “não apenas lutando na linha de frente, mas também por causa de seu poderio econômico. Na época, [a Rússia] tinha que enfrentar não apenas o potencial industrial da Alemanha, mas a Europa como um todo, escravizada pelos nazistas”. Putin disparou deliberadamente um lembrete severo que ressoará na Europa.
Um consenso da UE sobre o embargo de petróleo contra a Rússia já parece ilusório. Até agora, vinte empresas europeias cumpriram o prazo de Moscou no final de maio para efetuar pagamentos de compras de gás em rublos. E elas incluem a Alemanha, a potência da Europa.
Os principais executivos da UE, a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, e o chefe de política externa, Josep Borrell, dois atlanticistas ardentes e russófobos incondicionais, foram longe demais. A unidade da UE sobreviverá a essas rachaduras? A ligação de Scholz para Putin na sexta-feira, que reabriu uma linha de comunicação depois de várias semanas, precisa ser entendida nesse contexto. Curiosamente, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, também conversou com seu colega russo Sergey Shoigu na sexta-feira – sua primeira conversa desde que as operações russas começaram em fevereiro.
De fato, é inteiramente concebível que esteja se aproximando o momento de revisitar o projeto do gasoduto Nord Stream 2. O fechamento de todos os oleodutos russos que passam pela Polônia e o fechamento do oleoduto da Ucrânia deixam a Alemanha perigosamente perto da escassez de eletricidade, interrompendo a produção industrial.
A Bloomberg relata, citando dados da Agência Internacional de Energia (AIE), que, apesar das sanções ocidentais, a receita de exportação de petróleo da Rússia aumentou cerca de 50% em 2022. Os embarques russos aumentaram cerca de 620.000 barris por dia em abril, retornando à média pré-sanções. Devido ao aumento da demanda, mais remessas foram direcionadas para a Ásia. Ironicamente, a UE, apesar da posição dura do executivo, até agora permaneceu o maior mercado para o combustível russo, com 43% das exportações de petróleo do país indo para o bloco em abril, estimou a AIE.
Paradigmas, para serem relevantes, devem refletir com precisão a realidade. Quando isso não for mais possível, devem ser substituídos, ou as lideranças que dependem deles inevitavelmente falharão. Políticos como Biden e Johnson estão acostumados a pensar em termos de um mundo westfaliano e estão demorando para aceitar anomalias no paradigma existente quando novas tendências poderosas estão alterando drasticamente o conceito de guerra.
Karl Marx chamou isso de “aniquilação do espaço pelo tempo”. O fenômeno do conflito regional se extinguiu, e a violência localizada tem implicações globais graças ao avanço do transporte, da comunicação e das tecnologias. O estágio atual de mudança de paradigma é causado por uma revolução militar-industrial, que o torna um período de mudança acentuada e descontínua, onde os pensamentos militares existentes estão sendo derrubados por outros, novos e dominantes, abandonando as velhas formas de guerra.
Alguém poderia pensar que em um campo de batalha de Clausewitz, antigos exércitos dispostos uns contra os outros disparariam e manobrariam de acordo com as instruções do comandante. Mas na Ucrânia, por outro lado, eles foram substituídos por formas ambientais de violência física e não física – atiradores de elite, drones letais, mísseis hipersônicos, ataque eletrônico, falsificação, desinformação e assim por diante. A Rússia está praticando uma guerra à qual o Ocidente não está acostumado – onde guerras não são mais vencidas. É altamente improvável que haja uma ocasião cerimonial que ponha fim à guerra na Ucrânia.
Publicado no Indian Punchline.
*M.K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira por 30 anos no Serviço de Relações Exteriores da Índia. Serviu na embaixada da Índia em Moscou em diversas funções e atuou na Divisão Irã- Paquistão-Afeganistão e na Unidade da Caxemira do Ministério das Relações Exteriores da Índia. Ocupou cargos nas missões indianas em Bonn, Colombo, Seul, Kuwait e Cabul; foi alto comissário interino adjunto em Islamabad e embaixador na Turquia e no Uzbequistão.
Caro, primeiro, parabéns por seu canal.
Infelizmente é mais um canal de BOLHA – Russa, neste caso.
A Rússia PERDERÁ por não mais possuir seus ESTADOS ESCRAVOS que lhe serviam para alimentar seu MOEDOR DE CARNE.
A geração mi-mi-mi da Rússia não estará disposta por muito tempo a servir de CARNE PARA MOEDOR….aguarde.
Parabéns pela bola de cristal. Você já pensou em se aventurar no mercado de futuros?
João. Apreciei seu comentário, mas, vou de encontro a sua opinião. Acredito que outros fatores hão de interferir de forma dramática nos meses que virão, e tudo que parece certo se mostrará dúbio fazendo muitas vítimas fatais. Desejo-lhe saúde e sucesso!
Saudações. O curioso é que no meio dessas afirmações ocidentais de que a Rússia estaria usando equipamentos obsoletos e de que as forças russas não exercitam guerras reais faz décadas (acho que a última foi no Afeganistão) se esquecem de que os russos nunca deixaram de fazer “guerra híbrida” (com um possível intervalo na anarquia que se seguiu ao fim da URSS). E sempre defenderam seus valores nacionais, mesmo nos piores momentos. A Rússia tem um histórico de guerras até maior do que o dos EUA, a considerar que é uma nação muito mais antiga. E eles valorizam Sun Tsu e Clausewitz.
Ironicamente, o artigo mostra que provavelmente os russos vão ampliar sua competência em “guerra híbrida” com o acréscimo de tecnologias modernas. E os europeus não estão preparados para esse nível de prontidão que os russos possuem. Puro Maquiavel. Mais kafkiano do que isso, não consigo imaginar.
Exatamente Wilton. Como diz o artigo, é um novo paradigma que as lideranças ocidentais mostram dificuldade em entender ou aceitar. Grato pelo comentário!