A crise desencadeada pelo golpe de estado em Mianmar, antiga Birmânia, no último dia 1º de fevereiro, oferece uma interessante possibilidade de avaliar as posições e comportamentos das potências em confronto: de um lado a China, com interesses econômicos no país, e do outro, o novo governo dos EUA (e, em sua esteira, a UE), eleito sob a bandeira da defesa dos direitos humanos.
Um golpe de estado ocorreu no último dia 1º de fevereiro em Mianmar. O comandante das forças armadas do país, general Min Aung Hlaing, assumiu o controle dos poderes executivo, legislativo e judiciário, alegando que sua ação estava amparada em um artigo constitucional que permite que os militares assumam o poder em situações de crise. A pandemia, além de alegações de fraudes eleitorais, foi a crise apresentada pelos militares, que se comprometeram a realizar eleições dentro de um ano.
A principal liderança política do país, Aung San Suu Kyi, foi presa. Filha de um prócer da independência do país, que foi assassinado quando ela tinha apenas dois anos, Suu Kyi formou-se na universidade de Oxford e, após formada, permaneceu nos EUA, trabalhando na ONU, casando-se e tendo filhos naquele país. Ao retornar a Mianmar em 1988, engajou-se em movimentos pró-democracia, passando a assumir o papel de líder que hoje possui. A repressão ao movimento foi grande e milhares de pessoas foram assassinadas.
Suu Kyi percorreu o país pregando a não-violência e a desobediência civil, sendo presa em 1989. Seu partido venceu as eleições legislativas, mas a vitória não foi reconhecida. Em 1991, mesmo presa, ela recebeu o Prêmio Nobel da Paz. O ocidente, em especial os EUA e os países europeus, mantiveram embargos econômicos sobre o país, pressionando pela democratização até que, em 2010, Suu Kyi foi libertada de sua prisão domiciliar. Eleições foram marcadas e, em 2012, ela foi eleita congressista e, em 2016, foi elevada à posição de “Conselheira de Estado”, criada sob medida para ela em razão de as leis do país não permitirem que uma pessoa com cônjuges ou filhos estrangeiros fosse presidente da república. Assim, Suu Kyi tornou-se, de facto, a chefe de Estado e de Governo.
Mas a situação política nunca foi completamente pacificada. Suu Kyi, antes uma unanimidade no ocidente, passou a ser duramente criticada em razão da crise envolvendo o grupo étnico Rohingya, uma minoria islâmica. A tensão explodiu após militantes da etnia atacarem dezenas de postos policiais. A reação do Estado foi desproporcional e as forças policiais e militares de Mianmar foram acusadas de graves violações dos direitos humanos, incluindo-se estupros, violência e assassinatos. Em 2018, dois anos após o início da crise, estimava-se em 800 mil o número de refugiados Rohingya que haviam deixado o país em direção a Bangladesh, gerando gravíssima crise humanitária.
A posição geográfica privilegiada de Mianmar atrai o interesse chinês, pois seus portos dão acesso à Baia de Bengala, no Nordeste do Oceano Índico. Ter acesso a esses portos significa, para a China, exportar e importar evitando o contorno de toda a Península da Indochina e a passagem pelo Estreito de Malaca, o que constitui evidente vantagem econômica e geoestratégica para os chineses.
China e Mianmar assinaram, ano passado, um acordo para a construção do “Corredor Econômico China-Mianmar”, uma ação abrangida pela Iniciativa Belt and Road, cujos investimentos incluem a construção de um porto de águas profundas, ferrovias e rodovias, além de investimentos em energia. Além disso, a China importa madeira, gás natural e pedras de jade de Mianmar.
Dessa forma, a instabilidade em Mianmar não interessa aos chineses, que se equilibram com prudência na reação ao golpe do último dia 1º de fevereiro. Diferentemente do ocidente, em especial os EUA e a União Europeia, que já condenaram a ação e impuseram sanções econômicas a Mianmar, a China adotou um tom mais cauteloso, afirmando estar aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Pragmaticamente, o país quer continuar a negociar com qualquer governo que esteja no poder em Naipidau, a cidade construída para ser a capital de Mianmar.
No momento em que escrevo este artigo, os protestos contra o novo governo têm se avolumado nas ruas. O desfecho da crise é imprevisível. Não se pode excluir a possibilidade de um agravamento da situação. Se for esse o caso, será interessante avaliar até que ponto vai o pragmatismo do governo chinês: apoiará um governo rechaçado por toda a comunidade internacional? Por outro lado, será interessante perceber como o recém empossado governo norte-americano, que se elegeu com uma bandeira de defesa dos direitos humanos, se comportará em face de uma crise em um país localizado na esfera de influência da China.
E a China vai conseguindo mais petróleo e gás, além de acesso ao Índico sem passar por Málaca. Enquanto isso, o Ocidente insiste na narrativa de “salvar o mundo do carbono” e de “direitos humanos, até mesmo para que os viola”. Forte abraço!
Pragmatismo, Sinclair! Estamos precisando! Um abraço!