No início dos anos 1970, sob a liderança do secretário de estado Henry Kissinger e do presidente Richard Nixon, os EUA se aproximaram da China, visando afastar o país asiático da influência da União Soviética. Desde então o Dragão vem crescendo econômica e militarmente, expandindo sua influência e agora ameaça a hegemonia dos EUA.
Os laços econômicos e financeiros entre Estados Unidos e China alcançaram um nível de interdependência que levou a relação entre as duas potências a se tornar peça-chave do comércio e da geopolítica globais. A mudança de paradigmas ocorrida na década de 1970 é de especial relevância, uma vez que os EUA deram início a uma grande aproximação com o país asiático, numa tentativa de afastá-lo da União Soviética, nação com grande compatibilidade ideológica com os chineses, porém com uma relação gravemente abalada.
Sob a liderança de Kissinger, China e Estados Unidos alcançaram entendimentos largamente favoráveis para ambos. Enquanto os americanos evitaram que um país com grande potencial se tornasse um parceiro estratégico do regime soviético, os chineses tiveram acesso ao mercado internacional e aos investimentos de empresas estadunidenses que, atraídas pelo baixo custo da mão-de- obra, fizeram grandes investimentos diretos no país asiático, o que foi fundamental para o rápido desenvolvimento econômico e tecnológico chineses (KISSINGER, 2012).
Cinquenta anos depois, a China tornou-se uma gigante capaz de ameaçar a posição dos EUA como maior potência econômica, já os tendo inclusive substituído como principal parceiro econômico de muitos países, o Brasil incluso. Este maciço avanço chinês nos mercados globais foi fomentado pelos americanos a partir da década de 1970 e “tolerado” por seus governos até recentemente, quando não haviam ainda adotado um discurso anti-China.
Tal paradigma foi quebrado pelo presidente Donald Trump ao assumir em 2016, quando já era evidente que a potência asiática utilizava sua grande influência comercial para buscar ganhos relativos em outras áreas, notadamente, na arena geopolítica. Trump também considerava o modelo de capitalismo de estado adotado pelo regime comunista como sendo desleal perante as economias de mercado adotadas pela maioria dos outros players internacionais, permitindo que a China fizesse negócios numa escala maior. Unindo estes dois elementos, a política externa americana passou a encarar seu maior parceiro comercial como uma ameaça, não apenas a seus negócios, mas principalmente à sua posição hegemônica no sistema internacional.
A postura adotada pelos chineses a partir da ascensão do atual presidente, Xi Jinping, não aliviou de forma alguma as preocupações americanas. Em discurso perante a cúpula do Partido Comunista, Xi afirmou que trabalharia para tornar a China um líder global, ou em outras palavras, um hegemon, até a década de 2050. Embora alguns considerem esta fala como mera retórica, as ações geopolíticas adotadas pelo regime têm lastreado esta audaciosa ambição. Para superar os americanos e estender sua influência de maneira global, para além do nicho comercial, a China ou qualquer outra potência precisaria, inicialmente, consolidar sua posição como potência regional. Para tanto, os chineses têm trabalhado em três frentes principais.
A primeira é a infiltração em países próximos e/ou estratégicos, com sua força comercial servindo de ponta de lança. Esta infiltração pode ser realizada de diferentes maneiras, porém, a compra de terras estrangeiras pelos chineses e por fundos e empresas que operam naquele país são uma das mais diretas. Neste quesito, o Brasil é o vendedor favorito, com a empresa paraestatal chinesa Sanhe Hopefull Grain and Oil Group anunciando uma injeção de sete bilhões de reais em investimentos focados em toda a cadeia produtiva e de exportação da soja goiana, durante um período de 10 anos. Argentina, Austrália, Camboja, Camarões, Sudão, Filipinas, Colômbia e Gana são alguns dos outros destinos das aquisições de terras feitas a partir da China (FALEIROS et al., 2014).
Vale ressaltar a enorme eficiência dos lobbies que, direta ou indiretamente, avançam interesses caros aos chineses em outros países a partir da esfera doméstica destes. Um exemplo recente é a aprovação da lei 2.963 de 2019 que regulamenta a compra de terras por estrangeiros no Brasil e reduz significativamente as restrições a eles impostas para que a aquisição seja autorizada (Senado aprova venda de terras rurais para estrangeiros, 2020).
A necessidade da infiltração, para além de sua consolidação como potência, pode ser relacionada com a segunda frente de atuação chinesa que trabalha justamente por isso: a necessidade de acumulação e garantia de reservas. As reservas internacionais da China, em todas as suas formas, já alcançaram níveis multitrilionários e um saldo crescente (FALEIROS et al., 2014), permitindo assim uma ampla margem de manobra para seus investimentos. Além disso, o apetite da indústria chinesa por matéria-prima é insaciável e a sua grande população e relativa baixa produção agrícola exigem a importação de enormes quantidades de alimento, com a segurança alimentar sendo uma questão essencial. Uma potência precisa ter a oferta de insumos essenciais bem assegurada, especialmente para deter a capacidade de mantê-la durante períodos de crise. Esta oferta constante é primordial e é outro ganho relativo que a China busca assegurar ao fazer uso de sua influência econômica sobre outros países.
Em terceiro e último lugar, embora não menos importante, vem a geopolítica. Como dito, qualquer candidato a hegemon global precisa consolidar bastante bem sua posição como potência regional e, neste quesito, a China ainda tem certo trabalho a fazer, mas seu intento em fortalecer sua posição estratégico-militar não tem deixado a desejar ou de preocupar os americanos. O Mar do Sul da China é uma área de grande importância, com um terço do comercio mundial navegando por suas águas, além das enormes reservas de gás natural, petróleo e pesca. Estas águas internacionais abrigam zonas econômicas exclusivas de vários países e conjuntos de ilhas cuja posse é disputada por alguns deles.
Para Xi Jinping, entretanto, tudo aquilo é mar territorial chinês. E ele não se limitou à retórica. Ilhas artificiais foram construídas pela região, causando grandes danos ambientais nos recifes que as ancoram. Quando questionado durante a era Obama (na qual as construções foram iniciadas), o regime comunista afirmou que a função daquelas ilhotas, algumas em ZEE estrangeiras, era meramente servirem como entrepostos comerciais e pesqueiros e bases de monitoramento do tráfego marítimo. Hoje, já concluídas, algumas destas ilhas estão equipadas com lançadores de mísseis, radares, pistas de pouso e defesas antiaéreas. Os protestos de países diretamente afetados, como o Vietnã e as Filipinas, as acusações de violações feitas pela administração Trump e a sentença de um tribunal internacional de nada serviram para frear o expansionismo chinês sobre a região.
Um pouco ao norte, resta o principal espinho do quintal estratégico chinês. A pequena ilha de Taiwan permanece independente e desafiadora há mais de 70 anos, a menos de 200 km da costa de seu gigantesco inimigo. Desde que os nacionalistas de Chiang Kai-shek foram expulsos da China continental pelas tropas comunistas e ali se refugiaram em 1949, Pequim considera a ilha como uma mera província rebelde. O atual regime já afirmou que retomará o controle da ilha por quaisquer meios necessários. O desafio de Taiwan, porém, continua sendo motivo de humilhação para o PCC, com o governo local lutando para angariar mais apoio norte-americano e preparando suas forças de defesa para o que parece ser uma inevitável invasão chinesa, afinal, um hegemon global não pode permitir uma província rebelde em seu quintal estratégico.
A epítome das duas primeiras frentes é a faraônica iniciativa conhecida como Nova Rota da Seda e sua contraparte marítima, o Colar de Pérolas, ambas avançando inexoravelmente nos últimos anos, com a construção, aquisição e ampliação de portos, ferrovias, plantas industriais e outras estruturas que atuam como vértices da enorme rede comercial chinesa, que estende seus tentáculos rumo à África, Ártico e América do Sul, um avanço facilmente transferível para a geopolítica, com a Índia temendo ser totalmente cercada por essa rede. É possível concluir, portanto, que, a partir de um espectro teórico realista, considerável parcela das tensões econômicas entre EUA e China têm, em seu âmago, a bem conhecida dinâmica entre um hegemon em decadência e uma potência emergente, ou seja, disputas de poder pela hegemonia global. Num mundo tão interdependente como o atual e com uma gama de campos de contestação tão vasta, indo desde a cultura e comércio à medição de poder bruto, todos interdependentes e acompanhados de forma quase instantânea pelo resto do mundo, a luta pela hegemonia global no século XXI terá capacidade de impactar profundamente o sistema internacional e alcançar cada indivíduo que nele habita.
*João Víctor Gonçalves Cavalcante da Silva, natural de Catalão, Goiás, sempre teve grande interesse pela vida intelectual e, atualmente, ruma nela. Filho de cabeleireira e neto de doméstica, é o primeiro da família a ingressar no ensino superior como graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Guerra Cultural, tem seus estudos focados na Geopolítica e na Defesa e Segurança.
Referências
FALEIROS, Rogério Naques et al. A Expansão Internacional da China Através da Compra de Terras no Brasil e no Mundo / The China International Expansion Through Acquisition of Lands in Brazil and in the World. Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 13, n. 1, p. 58, 26 ago. 2014.
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 2012.
LEÃO, Rodrigo Pimentel Ferreira O padrão de acumulação e o desenvolvimento econômico da China nas últimas três décadas: uma interpretação. Dissertação de Mestrado—[S.l.] Unicamp, 2010.
Senado aprova venda de terras rurais para estrangeiros. Canal Rural, 16 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.canalrural.com.br/noticias/agricultura/senado-terras-estrangeiros/.
Nos anos 50 os EUA representavam metade da economia mundial.
70 anos depois, os EUA ainda são a maior economia mundial. Mas não só isso. A economia americana é maior que as economias chinesa (2a) e Japão (3a) somadas.
Os EUA foram de fato hegemônico do ponto de vista econômico no pós guerra.
Não dá pra prever o futuro.
A UE se mostra instável. Populações envelhecidas, economias estagnadas e uma união econômica com grandes desafios para o futuro.
Países como Itália, Grécia e até mesmo a França devem assistir o empobrecimento de parte significativa de suas populações nós próximos anos.
O Japão virou uma economia zumbi. População encolhendo, país com uma dívida de 300% do PIB.
Os EUA com sérios problemas internos. A população dividida, comprometendo a estabilidade política do país. Por outro lado, a economia americana ainda é entre os países a que mais faz sentido. É uma economia inovadora, a mão de obra é qualificada, a população é muito rica, há uma mentalidade de empreendedorismo, investimento, ambição.
A China por sua vez tem um modelo econômico que não inspira muita credibilidade. Crescimento baseado a subsídios e dirigismo estatal.
A China é e será uma grande economia. Mas eu não acredito que será a potência hegemônica sem reformas econômicas. E o problema é que as reformas econômicas que a China precisa fazer talvez não sejam do agrado dos líderes que a controlam com mãos de ferro.
A Europa já não tem a importância que acredita ter e o “eixo de interesse” do mundo hoje está na Ásia/Indo-Pacífico. Os EUA estão em decadência e a China é um poder emergente; em paralelo, a Rússia reaparece como um poder que, se não é o que foi, não pode de forma alguma ser ignorada. A Índia cresce, mas ao mesmo tempo parece estar um pouco perdida. Impossível prever o que vai acontecer, e talvez você tenha razão quanto à economia chinesa. O fato é que o mundo está mudando. Vamos acompanhar! Grato por comentar, forte abraço!
A Rússia é forte militarmente. Mas economicamente não vai pra lugar algum. Vai continuar vendendo armas, Petróleo e gás natural.
Mas não é e nem será uma economia dinâmica, com empresas competindo no cenário global.
A Índia é um país complexo. Deve continuar a crescer mas não acredito que vá rivalizar com a China.
A disputa no campo econômico deve ser travado entre China e EUA. Essa década vindoura deve definir se teremos mais um século americano ou a se a China passará a ser a maior economia.