A Revolução Federalista de 1893 e a prática da degola

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Cristiano Leal.png Por Cristiano Oliveira Leal*

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Execução por degola durante a Revolta Federalista (Foto: Affonso de Oliveira Mello/Biblioteca Nacional).

Foco de instabilidade política no início da república, o Rio Grande do Sul protagonizou a Revolução Federalista de 1893, que marcou a história política, a sociedade e a cultura gaúchas. Foi marcada também pela prática das degolas, a macabra “gravata colorada”.


Historicamente o Rio Grande do Sul foi a região mais conturbada do império, tornando-se foco de grande instabilidade política nos primeiros dias da república. Com a proclamação, o poder político no Rio Grande do Sul passou para os republicanos, que eram minoria no estado. Liderados por Júlio de Castilhos, tinham interesses semelhantes aos dos militares, muito baseados nos ideais positivistas, como a ideia de um governo forte, comandado por um corpo técnico, apoiados em um programa abrangente que propunha o desenvolvimento do Estado, o que lhes garantia não só o apoio do Exército, mas também da Brigada Militar. Os “castilhistas” faziam amplo uso de coerção e barganha de interesses para se fortalecer, alijando completamente a oposição das decisões políticas.

Contrapondo-se ao “castilhismo” republicano havia os federalistas, que tinham como espinha dorsal os grandes pecuaristas da campanha, ligados ao comércio e contrabando na fronteira, que constituíram a elite tradicional durante o império, deposta com a eleição de Júlio de Castilhos. A nível nacional, os federalistas queriam o estabelecimento de uma república parlamentar, com o chefe de Estado eleito pelo parlamento. A nível estadual, o objetivo principal era a o fim do castilhismo, visto por eles como opressor. Por isso queriam eleições para presidente do estado sem a possibilidade da reeleição, mais autonomia para os municípios e a instituição de uma câmara legislativa representativa.

Os exércitos

As forças castilhistas eram compostas por tropas regulares da Brigada Militar e do Exército Brasileiro, muitos desses soldados com treinamento e alguma experiência de combate; e contavam com o reforço de “patriotas” voluntários. A logística era um problema sério, pois mesmo contando com uma superioridade em recursos, o fornecimento de armas e munições apresentou vários problemas que afetaram a capacidade de combate do exército.

As forças federalistas eram um grupo heterogêneo, composto por homens que haviam lutado no Uruguai como mercenários, por voluntários simpatizantes da causa sem nenhuma experiência ou treinamento e, principalmente, por “peões” convocados pelos caudilhos para lutar. Estes últimos não possuíam treinamento ou experiência de combate, mas eram excelentes cavaleiros, acostumados com a vida no campo e hábeis no uso de facas, facões, lanças e boleadeiras. Deixaram sua marca nos campos de batalha da Revolução de 1893 por seu estilo de combate de alta mobilidade e pela naturalidade com que degolavam os inimigos, tornando-se o ícone do gaúcho pelejador, exaltado na tradição nativista rio-grandense.

Os federalistas possuíam bases no Uruguai que serviam tanto para a concentração de tropas e recursos como ponto de partida para a invasão do território rio-grandense. Seus recursos eram muito limitados, sendo a falta de armas e munições uma constante durante o conflito. Somente os castilhistas tinham alguma padronização de uniformes, já que, como dito, eram compostos principalmente por forças regulares; enquanto que do lado federalista a grande maioria não possuía uniformes, tendo o característico lenço vermelho como principal identificação.

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A primeira invasão

A guerra civil começou em 5 de fevereiro de 1893 quando tropas federalistas, comandadas por Gumercindo Saraiva, entram em território gaúcho vindos do Uruguai. No dia 22, conquistaram Dom Pedrito, derrotando o 6º Regimento de Cavalaria do Exército. Em resposta o governo brasileiro intervém, com o exército passando a participar ativamente da guerra, cedendo oficiais republicanos de suas fileiras para o governo estadual para comandar brigadas e batalhões.

Como não tinham recursos para um combate decisivo, os rebeldes federalistas passaram a usar a mobilidade de sua cavalaria leve para ataques rápidos nos pontos mais desguarnecidos, semelhantes ao que hoje chamamos de guerrilha, a fim de se fortalecer e enfraquecer material e moralmente as forças republicanas, obtendo muito bons resultados enquanto adotaram essa tática.

Esse estilo de combate, caracterizado pelas cargas inesperadas da cavalaria leve, retiradas rápidas, deslocamentos inesperados, esquivando-se de enfrentamentos e ignorando posições ocupadas, se adequava perfeitamente aos costumes e habilidades dos peões de estância. Desde cedo acostumados com as lides no campo, “campereando” o gado em longas distâncias, eram excelentes cavaleiros e possuíam grande conhecimento da geografia local.

Suas armas eram as mesmas ferramentas que usavam no cotidiano, as já mencionadas adagas, facas, facões e boleadeiras, todas manuseadas com mortal habilidade. A lança, para alguns, não era tão familiar, mas rapidamente aprendiam seu manuseio a cavalo. A imagem do gaúcho montado, vestindo bombacha, chapéu, lenço, camisa aberta e pés descalços, portando faca e boleadeira (e uma “guampa” com cachaça) está presente não só na literatura, na música e no imaginário popular gaúcho, mas ainda é uma cena comum em alguns rincões do Rio Grande do Sul.

No entanto, a vantagem da cavalaria leve desaparecia quando atacava praças fortificadas; para isso o poder de fogo era fundamental, como os federalistas descobriram durante a Batalha do Inhanduí, onde 6.000 deles não conseguiram desalojar 1.500 republicanos. A carência de poder de fogo e consequente dificuldade de conquistar praças fortificadas foi um problema para eles durante toda guerra, sendo motivo de derrotas e de custosas vitórias.

Com a derrota em Inhanduí, os federalistas recuam, Gumercindo Saraiva e seus homens permanecem no Brasil enquanto os demais retornam ao Uruguai para reagrupar. Erroneamente, os republicanos acreditaram que os haviam vencido, com Júlio de Castilhos telegrafando ao Marechal Floriano informando que a revolta tinha acabado. Porém, logo Gumercindo reiniciou os raids de cavalaria, e Castilhos inicia uma busca por recursos para dar continuidade à guerra.

A prática da degola

“Olha a faca de bom corte, olha o medo na garganta

O talho certo é a morte, no sangue que se levanta

Onde havia um lenço branco, brota um rubro de sol por

Se o lenço era colorado, o novo é da mesma cor

Quem mata chamam bandido, quem morre chamam herói

O fio que dói em quem morre, na mão que abate não dói”

“Era no tempo das revolução

Das guerra braba de irmão contra irmão

Dos lenço branco contra os lenço colorado

Dos mercenário contratado a patacão

Era no tempo que os morto votava

E governava os vivo até nas eleição”

“Era no tempo dos combate a ferro branco

Que fuzil tinha mui pouco e era escassa a munição

Era no tempo do inimigo não se poupa

Prisioneiro era defunto e se não fosse era exceção

Botavam nele a gravata colorada

Que era o nome da degola nesses tempo de leão”

(“COLORADA”. Aparício Silva Rillo e Mário Barbará Dornelles)

A música acima refere-se a uma das características mais lembradas desse conflito, a prática de degolar os prisioneiros, conhecida como “gravata colorada”, que fez com que a Revolução Federalista de 1893 fosse a mais violenta da história da república. O primeiro registro de seu uso em larga escala em conflitos na região platina começou no Uruguai, durante a guerra de Oribe e Rosas, a qual contou com a participação de mercenários gaúchos.

Um dos motivos apontados para sua utilização era material, devido à crônica falta de munição para a execução de um fuzilamento “civilizado”, e a falta de suprimentos, que tornava inviável a manutenção de prisioneiros. Essas razões são plausíveis, mas não explicam como uma pessoa pode executar um ato de tal brutalidade. Para entendermos um pouco como essa prática tão sanguinolenta surgiu e se difundiu entre as tropas, a ponto de tornar-se tão corriqueira e realizada com tanta indiferença, devemos novamente olhar para a cultura tradicionalista gaúcha e seu ícone, o peão de estância e o meio cultural em que vivia.

O mundo no qual esse peão estava inserido era um extremamente violento. A faca era algo com que todos tinham grande familiaridade, sendo um instrumento vital no dia-a-dia do campo. Muitas desavenças pessoais e questões de honra eram resolvidas “na faca”, ainda mais se essa desavença surgisse num “bolicho” (bar) ou “chinaredo” (prostíbulo), regado a “canha” (cachaça). Nesse contexto, também era comum o jogo do “primeiro sangue”, onde dois peões se enfrentavam numa disputa com facas, para ver quem conseguia cortar o outro primeiro, de preferência no rosto onde todos veriam a marca. Para muitos, morrer em uma “peleia” era considerado mais honroso do que morrer velho e doente numa cama. Essa ligação com as facas ainda é muito presente na cultura gaúcha, e faz com que hoje o Rio Grande do Sul seja uma referência nacional em cutelaria.

Outro elemento fundamental para entendermos essa prática está no modelo econômico existente no Rio Grande do Sul naquele período, baseado na produção de charque e couro. A morte de um grande número de animais e a enorme quantidade de sangue envolvida tornavam a morte algo cotidiano e natural, sem nenhuma conotação de crueldade, e como consequência dessa realidade, a morte de outro homem passa a ser vista com a mesma naturalidade.

Isso se explica, pois para o peão não havia distinção entre a atividade na estância e a atividade militar, pois as habilidades exigidas, montar e matar, eram as mesmas e realizadas com as mesmas ferramentas. Para ele, cortar o pescoço de um ferido, companheiro ou inimigo, é um ato de misericórdia, a possibilidade de proporcionar uma morte honrosa ou evitar a captura.

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Porém, no que se refere aos prisioneiros, a degola tinha a função justamente oposta de desonrar e humilhar o adversário, com a execução sendo realizada com o prisioneiro amarrado, de joelhos, em total submissão, ao som dos risos e piadas dos captores. Numa macabra variação, os prisioneiros eram degolados em pé, para que dessem alguns passos antes de cair no chão, no intuito de divertir os captores que apostavam em quem ia mais longe. Essa prática ficou conhecida como “carrera macabra”.

Os hábitos rudes e por vezes violentos, o convívio diário com a morte nas estâncias, os duelos de faca e o serviço nas milícias transformaram o “gaucho” e o gaúcho num guerreiro implacável, capaz de executar um homem sem problemas de consciência, pois não havia dissociação entre as lides na estância e a atividade guerreira, bem como entre matar um homem ou uma rês.

A segunda invasão e o fim da revolta

Em agosto de 1893 ocorreu a segunda invasão dos federalistas e a violência se radicaliza, com o próprio Castilhos ordenando que eles não fossem poupados. Mas um evento fez com que os federalistas mudassem sua estratégia: A Revolta da Armada. O motim da Marinha contra o governo de Floriano Peixoto causou a mudança de foco, passando de uma política regional focada na deposição de Júlio de Castilhos, para uma política nacional pressionando o governo central.

Com esse objetivo os federalistas uniram forças com os marinheiros revoltosos, apesar de não terem uma agenda comum. Invadem Santa Catarina e o Paraná, onde combateram com apoio da esquadra rebelada obtendo vários sucessos iniciais, como a conquista de Desterro (atual Florianópolis). Enquanto isso, no Rio Grande do Sul, as tropas federalistas conseguiam importantes vitórias nas regiões de Bagé, Soledade e Rio Negro, este último sendo palco de um dos maiores morticínios de prisioneiros da guerra.

Porém os federalistas logo percebem que não possuem recursos para continuar a campanha, iniciando um longo recuo de volta ao Rio Grande do Sul perseguidos por tropas legalistas. Com a rendição da armada rebelde em março de 1894, ficou claro que a mudança de estratégia não havia rendido os frutos esperados e, pior, sugou os escassos recursos dos rebeldes.

Outro revés na causa federalista foi a perda de Gumercindo Saraiva, que tanto trabalho deu aos republicanos com sua cavalaria leve, morto em uma emboscada em Passo Fundo. Isso representou um duro golpe no moral e no ímpeto dos rebeldes. A partir daí a intensidade das ações federalistas caiu.

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A pacificação só foi conseguida pela intervenção direta do novo presidente da república Prudente de Moraes, que concordava com Júlio de Castilhos que a paz deveria ser conseguida com a total submissão dos rebeldes. Os federalistas tentaram negociar a fim de diminuir o poder de Castilhos, mas todas as suas exigências foram negadas. Dessa forma, o movimento federalista viu seu poder político quase desaparecer, enquanto Júlio de Castilhos saiu fortalecido.

A rivalidade política e as chagas do conflito criaram uma profunda divisão na sociedade rio-grandense, tanto que, trinta anos, todas as diferenças e ressentimentos serviriam de combustível para Revolução de 1923, quando novamente lenços brancos e vermelhos se enfrentaram.

Conclusão

A Revolução Federalista de 1893 marcou profundamente não somente a história política do Rio Grande do Sul, mas a sociedade e a cultura gaúchas. Reforçou a ideia do “gaúcho pelejador” que domina a natureza e os homens com a mesma naturalidade e simplicidade do homem do campo, reverenciado na música e literatura nativista; mas ao mesmo tempo busca esconder a leyenda negra das degolas. Também criou um modelo de “antagonismo bipolar” característico do gaúcho que é observável em diversos aspectos, não apenas na política, mas também, por exemplo, no futebol.


*Cristiano Oliveira Leal é aficionado em história e aviação militar desde a infância, iniciando suas primeiras pesquisas ainda na adolescência. Após o serviço militar no 2º Regimento de Cavalaria Mecanizada, cursou graduação em História na Unisinos, período em que passou a estudar Teoria Militar e estagiou durante um ano no Museu Militar do Comando Militar do Sul. Realizou pesquisas em alguns dos principais museus militares britânicos, em especial os da Royal Air Force. É titulado Especialista em História Militar pela Unisul.


Bibliografia

CARVALHO, Pedro (Resp.). Campanha do Coronel Santos Filho. Correio do Povo, 1897. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242452.

GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcelos. “Olha a faca de bom corte!”: aproximações histórico-literárias à violência no Rio Grande do Sul. Universidade de Caxias do Sul, Métis: História e Cultura, 2007. Disponível em: http://ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/viewFile/824/581.

OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. Os 120 anos da Guerra Civil de 1893. Universidade Federal do Rio Grande, 2013. Disponível em: http://repositorio.furg.br/handle/1/7030.

PADOIN, Maria Medianeira. República, Federalismo e Fronteira. Unisinos, 2010. ISSN: 2236-1782. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/4705.

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13 comentários

  1. Parabéns…. Com riqueza de detalhes, deu ainda mais vida ao texto histórico. Achei, apenas, que faltou mencionar o episódio no Paraná, com o barão do Serro (com S) Azul…. Maravilhoso o artigo.

    1. Excelente artigo no geral. Faltou comentar o importantíssimo combate de campo Osório, em Santana do Livramento, com a morte do almirante Saldanha da gama. O episódio final de 93/95.

  2. Baita artigo, excelente! Meu falecido avô paterno veterano da revolução de 1932 (o qual não tive o prazer de conhecer, pois faleceu muito antes de meu nascimento) em seus escassos relatos, mencionou que houve essa prática na revolução de 1932 entre o efetivo proveniente do RS.
    Meu pai sempre conta que meu avô não gostava de falar da guerra, mas o pouco que disse, contou que não faziam prisioneiros, e assim como tantos outros combatentes, meu avô também cresceu sendo peão de estância.
    O que realmente aconteceu, morreu com ele.

    1. Obrigado Everaldo, vou repassar ao Cristiano, o autor. Realmente a prática parece ter se disseminado, ouvi algum relato que essa prática também teria ocorrido em Canudos. Meu avô materno lutou na guerra civil espanhola, e ele também não falava sobre a guerra. As lembranças realmente não devem ser boas. Muito obrigado por comentar, um forte abraço!

      1. Prezados, em relação a Canudos sugiro a leitura de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, onde o autor documenta a prática do assassinato de prisioneiros.

  3. Muito bom o resumo. Tempos difíceis da República. O problema foi que o Castilhismo continuou dominando o Rio Grande do Sul até a Revolução de 1930, mantendo a oposição estadual sempre na defensiva. Ou seja, a Oposição nunca conseguiu uma vitória nas urnas. As eleições eram todas fraudadas.

  4. Sou gaúcha de Soledade, faltou detalhes, e existem muitos, inclusive daqueles que foram mortos “nas quatro estacas “como meu bisavô João Gerônimo Julius de Castilhos,que foi atraído para uma armadilha, foi preso e morto aos 21 anos.Deixou minha bisavó Izabel Antunes Maciel, com a filha Arlinda Antunes Maciel, com 3 anos e meu Avô João Maria Antunes Maciel na barriga dela.Infelismente nem registrou os filhos.
    O interior de Soledade é todo marcado, por estes fatos que merecem ser resgatados, e contados.
    É a nossa história.
    Grande abraço.

  5. Gumercindo Saraiva não foi morto em Passo Fundo , mas sim no Carovy ente os atuais municípios de Santiago e Itacurubi

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