Por Carlos Aureliano Motta de Souza* |
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A história do Vulcan da RAF que aterrissou no Galeão em 1982, durante a Guerra das Falklands/Malvinas, foi contada recentemente aqui no Velho General. No entanto, a véspera da partida do bombardeiro, quando a tripulação conheceu a noite carioca, é uma passagem bem menos conhecida. Esse relato é feito hoje em primeira pessoa pelo coronel-aviador Carlos Aureliano Motta de Souza, o oficial da FAB que ciceroneou a tripulação britânica naquela noite. Agradecemos ao coronel Motta pela gentileza e disponibilidade de nos relatar essa história!
Em 1982 sucedeu o inesperado pouso de emergência, no Galeão, de uma aeronave Vulcan que teve sua sonda de reabastecimento danificada, na volta de uma missão de bombardeio, durante o conflito da Argentina com a Grã-Bretanha pela disputa das ilhas Malvinas ou Falklands, conforme cada lado da contenda.
Esse acontecimento, especialmente por tratar-se de avião armado e executando missões de guerra contra país vizinho e amigo, suscitou um problema diplomático com diferentes facetas: o confinamento dos pilotos na Base Aérea do Galeão e a retenção do armamento ainda existente no avião, cuja liberação dependeria ainda do conserto de sua sonda de reabastecimento em voo.
O adido aeronáutico da Grã-Bretanha, o Group Captain Jerry Brown, que eu conhecia desde antes da meu curso na RAF, manteve a tripulação sem qualquer contato. A única exceção eram as refeições no rancho da base aérea, distante cinquenta metros dos alojamentos.
Eu almoçava na base todos os dias e ouvia os variados comentários dos colegas dos esquadrões que tinham contato mais próximo com a “besta”, termo usado pela imprensa para designar o Vulcan, realmente um avião de bombardeio de dimensões gigantescas.
O Avro 698 Vulcan compunha, com o Handley Page HP.80 Victor e o Vickers-Armstrong 660 Valiant, o trio chamado V-Bombers, espinha dorsal da força de dissuasão britânica no pós-guerra. Dos três, era o mais elegante, o maior e possuía maior autonomia e velocidade.
Após quase uma semana, as negociações foram concluídas e um acordo permitiu que o Vulcan decolasse de volta à ilha Ascensão, totalmente desarmado. O Brasil entregaria o armamento em Londres, missão cumprida pelo 1º/1º GT, esquadrão de C-130.
Durante o decurso dessa semana, as negociações com o adido britânico eram acompanhadas pelo oficial de ligação com os adidos, subordinado ao estado-maior da aeronáutica, à época o coronel-aviador Fernando Mendes Nogueira, da minha turma e meu amigo pessoal.
LIVRO RECOMENDADO:
Vulcan Boys: From the Cold War to the Falklands: True Tales of the Iconic Delta V Bomber
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Na véspera do dia previsto para a decolagem do Vulcan ele me liga e dispara:
– Tenho uma missão importante para você: sair hoje à noite para mostrar o Rio à tripulação do Vulcan.
– O quê? Por que eu?
– Porque você fez o curso de Estado-Maior na RAF no ano passado e está familiarizado com a “manha” dos britânicos, além de conhecer bem a RAF.
– Topo. Como vai ser? Eles são cinco. Vai ter viatura?
– Não. Um tripulante sempre fica de plantão junto ao avião. Serão quatro e você vai usar o seu carro para não levantar suspeitas. OK?
– OK.
– O Jerry Brown foi nas Casas Sendas comprar roupas para eles. Lembre-se: eles estão sem dinheiro, passaporte e são estrangeiros. Cuidado para não perder um deles.
– Tá bem. Você me escolheu porque sou seu amigo, certo? Agora você liga pra Maria Helena e conta qual vai ser a missão, porque vai ser difícil ela acreditar contada por mim…
Assim combinado, peguei meu Corcel cor de mel e fui para a Base. Jerry Brown apresentou-me os quatro tripulantes, todos vestidos com jeans, camisas tipo Havaí e tênis. Últimas recomendações e partimos.
Dadas as circunstâncias, eu havia passado longo tempo pensando no que fazer com esse pessoal. Saímos cerca das 18h00, peguei a Avenida Brasil, Aterro, Princesa Isabel e entrei direto em Copacabana. Foram conhecendo os hotéis, a praia, os bares. Queriam passear nessa praia famosa.
Estacionei no Posto 6 e fomos andar no calçadão. Eu levei uma câmera, mas eles se recusaram a serem fotografados. Foram até a areia, um ou dois passearam na praia e, após algum tempo fomos a um bar no final do Posto 6, próximo a um hotel (ou no próprio hotel), quase esquina da Francisco Otaviano. Pedimos chope e logo chegaram as “mariposas”. Ouviram os meninos loiros falando inglês e foi um alvoroço. Num descuido, uma já estava sentada no colo de um deles. Ela arranhava um inglês de pegar marinheiro na praia e estava assanhando o rapaz. Eu disse para parar porque ele não iria ficar com ela. Ao insistir, ela me disse que eu não mandava nele.
– Você está enganada: eu mando nele sim.
Aí ela perguntou, incrédula:
– Baby, é verdade que ele manda em você?
E o rapaz, muito contrariado, respondeu:
– É verdade.
Voltamos ao carro e fomos para o restaurante Plataforma, que eu havia escolhido para jantar com eles.
Já na porta a inglesada recebeu um choque de costumes: carne na Inglaterra só de carneiro e quase racionada. Mignon é caríssimo e só em restaurantes muito bons. Na calçada ficaram olhando boquiabertos, pelo vidro, a multidão de espetos rodando com carnes de todos os tipos: filé, picanha, fraldinha e por aí vai.
Entramos e procurei um lugar discreto para poder controlar a tropa e o movimento. Começamos pelo chope muito, muito gelado. Petiscos normais em churrascaria e finalmente um jantar com todas as carnes e todos os acompanhamentos.
LIVRO RECOMENDADO:
V Bombers: Vulcan, Valiant and Victor (Profiles of Flight)
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Pense numa tripulação engajada em missão de guerra real, longe de casa há mais de dois meses, fazendo um pit stop no Rio de Janeiro e assistindo o show de mulatas passeando pela passarela à sua frente minimamente vestidas e ainda por cima comendo carne de primeira. Surreal.
Cada tripulante que ia ao banheiro eu ficava de olho vigiando. E seu perdesse um inglês desses?
Conversamos muito, mas a disciplina deles não permitiu declinar unidade, residência, essas coisas que a inteligência ensina. Ao perguntar qual a base em que estavam sediados, educadamente o comandante, loiro e o único com barba, disse que era assunto sigiloso.
Mas aí aconteceu de eu ter reconhecido o seu copiloto. Durante o meu curso, fizemos várias viagens de estudo a bases da RAF, dentre elas uma na Alemanha e as de Lossiemouth e Waddington, esta uma das duas bases de Vulcan. Conhecemos vários pontos de interesse, inclusive a “besta”. Subi na escada até a altura da cabine, bastante modesta para cinco tripulantes. Era um avião fantástico. A base sediava, também, um esquadrão de aviões de patrulha.
Ao fim dessas visitas é costume britânico um coquetel no salão de troféus e medalhas. Em Waddington não foi diferente. Nada grátis: um oficial comprava dois drinques no bar: um para ele e outro para a pessoa com quem conversava. Terminado aquele drinque, essa pessoa ia ao bar e comprava outros dois e oferecia ao oficial com quem conversava.
Conversando bem de perto com o piloto, minha memória captou esse momento em Waddington: fora ele o oficial que me ofereceu o primeiro drinque e a quem eu retribuí. Conversamos muito naquela oportunidade, pois, mostrando-me uma parede com placas de diversos esquadrões, identifiquei uma placa do 1º Grupo de Aviação Embarcada. Ele explicou-me que o porta-aviões brasileiro Minas Gerais havia passado no ano anterior por Lincolnshire (distrito onde a RAF Waddington se localiza) e os oficiais do 1º GAE estiveram em visita ao Esquadrão de Vulcan e ofereceram a placa como lembrança.
Em razão desse longo tempo conversando com o oficial minha memória recuperou sua fisionomia com nitidez. Então, disparei:
– Vocês são baseados na RAF Waddington!
A conversação cessou e o comandante, surpreso, perguntou:
– Por quê você acha que somos de lá?
Então contei os fatos narrados com precisão e o piloto admitiu, sem confirmar, que eu estava certo, mas me pediram discrição. De qualquer forma não havia qualquer dificuldade em se descobrir a base de hospedagem desses gigantes.
Era hora de levar os garotos de volta para a base. Antes de fechar a conta, eles concordaram em fazer uma foto daquele encontro. Eu havia levado uma máquina fotográfica e registrei um momento de nosso jantar à mesa do restaurante. Ao fundo, eu converso com o copiloto, à direita e à frente, o comandante do Vulcan e à sua frente os tripulantes técnicos.
Já perto das onze horas voltamos à Base Aérea do Galeão.
PS. Não faço a menor ideia porque a minha câmera registrou 14 4:28PM.
*Carlos Aureliano Motta de Souza é coronel-aviador reformado da Força Aérea Brasileira. Entre as muitas comissões de sua carreira, em 1982 cursou o 72º Advanced Staff Course da Escola de Estado-Maior da Royal Air Force, na RAF Bracknell, foi instrutor na Escola de Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR) localizada na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, chefiou o CENIPA em 1976 e comandou o CINDACTA no período 1984/85.
Essas histórias de interação entre oficiais de dois países diferentes são muito curiosas e divertidas.
Exatamente Fontoura! Essa eu nunca tinha ouvido falar, foi muito bacana da parte dele oferecer o relato. Abraço!
Uma pitoresca estória de caserna! Valeu por mais essa, general!
Eu é que agradeço Carlos! Forte abraço!
Eu achava que o míssil Shrike nunca havia sido devolvido…
Tem muitas lendas, mas a verdade é que foi.