Por Maj Victor Almeida Pereira* |
Nos últimos anos, o estabelecimento de uma ordem internacional mais estável e a preservação da paz mundial tornaram-se a maior preocupação da civilização ocidental, em virtude da ocorrência de duas guerras mundiais no espaço de uma mesma geração e da consequente possibilidade da eclosão de uma guerra nuclear. Nesse contexto, pode-se dizer que a preservação da paz tende a ser mais requisitada no concerto das nações, tornando o confronto ostensivo, deliberado e ilimitado entre Estados soberanos cada vez mais uma exceção1.
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada partindo-se desse pressuposto, visto que, após a Segunda Guerra Mundial, as lideranças globais sentiram a necessidade de estabelecer um período de paz mais duradouro e menos volátil. A ONU seria, portanto, uma forma de contribuir para a solução do problema da guerra, visto por Martin Wight como sendo uma consequência da ausência de um governo supranacional, ou seja, de um estado de anarquia internacional2.
No entanto, a Carta de São Francisco não foi suficiente para corresponder a tamanha expectativa. Ao longo de sua existência, a ONU, naturalmente, não logrou evitar inúmeros conflitos como as guerras na Coreia, no Vietnã, dentre outras, incluindo as disputas associadas à própria Guerra Fria. Ademais, o surgimento de outras alianças regionais como o extinto Pacto de Varsóvia, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) demonstrou que o intuito de se constituir uma instituição global única para solucionar as disputas mundiais não foi plenamente atingido. As grandes potências continuaram a exercer influência política em outros países, inclusive por meio da intervenção armada, mesmo diante de uma postura contrária do Conselho de Segurança da ONU.
Todavia, não se pode inferir que a ONU fracassou, como ocorreu à Liga das Nações após a Primeira Guerra Mundial. Não há evidências de que a ONU tenha condições plenas de evitar as guerras, porém é lícito admitir que ela contribuiu para que diversos conflitos fossem encurtados: na Indonésia e na Palestina, em 1949; no Egito, em 1956 e 1973; e na Caxemira, em 19653.
Em verdade, o que se verificou foi uma mudança no perfil da organização, particularmente após o fim da Guerra Fria, uma vez que, a partir daquele momento, a hegemonia norte-americana e uma “pretensa multipolaridade” passaram a caracterizar a ordem mundial. Se nos seus primórdios, a ONU fora um instrumento de política externa das potências, atualmente, ela consiste em um importante foro de negociação multilateral, dada a sua constituição atual (193 países-membros). Para Martin Wight, a ONU aumentou “a intensidade da luta pelo poder travada entre” países de menor expressão política ou “have-nots e as potências do status quo”, na medida em que incrementou a “importância internacional das potências have-not, permitindo a elas se organizarem para formar um grupo de pressão com peso diplomático e propagandístico muito maior do que seriam capazes de obter de outra forma”4.
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Em face da nova concepção da ONU, novas necessidades surgiram e, com elas, novos conceitos. Embora desde 1948, as Nações Unidas já tratassem das questões de manutenção da paz no âmbito de sua Divisão de Assuntos Políticos, foi somente em 1992 que se criou oficialmente o Departamento de Operações de Manutenção de Paz (Department of Peacekeeping Operations – DPKO) – uma das primeiras decisões tomadas por Boutros-Ghali ao iniciar seu mandato5.
Desde então, as operações de paz têm sido empreendidas em todo o mundo com frequência cada vez maior. Porém, as mudanças constantes no cenário internacional e o surgimento de novas ameaças à paz mundial têm exigido da ONU a implementação de operações mais complexas, além de novas abordagens, a fim de fazer frente à problemática atual.
A Guerra de Quarta Geração, a Guerra Híbrida e as Ameaças Assimétricas
A concepção tradicional da guerra, conforme a ordem internacional decorrente da Paz de Westfália em 1648, pressupõe que as ameaças aos Estados são provenientes, principalmente, das forças armadas de Estados antagônicos. Entretanto, o surgimento de outros atores tem constituído nova fonte de ameaças contra os Estados e contra a segurança internacional.
Assim sendo, entender como a guerra tem sido feita é fundamental para a compreensão das atuais ameaças. Segundo Clausewitz:
A guerra nada mais é do que um duelo em grande escala. Inúmeros duelos fazem uma guerra, mas pode ser formada uma imagem dela como um todo, imaginando-se um par de lutadores. Cada um deles tenta, através da força física, obrigar o outro a fazer a sua vontade. O seu propósito imediato é derrubar o seu oponente de modo a torná-lo incapaz de oferecer qualquer outra resistência. A guerra é, portanto, um ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade6.
Assume-se, portanto, que a guerra pode ser realizada não somente por duas forças estatais, mas por dois grupos antagônicos quaisquer, onde a finalidade geral é a imposição de uma vontade sobre a outra.
Um breve olhar sobre os combates sucedidos no mundo revela que a conduta das partes beligerantes sofreu diversas variações ao longo da história, particularmente quando se comparam as guerras travadas em momentos históricos distintos.
Nesse sentido, William S. Lind e quatro oficiais do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos da América (EUA) desenvolveram um modelo de estudo dos conflitos intitulado “The Changing Face of War: Into the Fourth Generation”, tendo como marco temporal inicial a Paz de Westfália, em que os Estados passaram a deter o monopólio da guerra7. Nesse modelo teórico, sintetizado na Tabela 1, os autores definiram quatro gerações para o estudo da guerra moderna.
Tabela 1: As Gerações da Guerra Moderna
A guerra de quarta geração (fourth-generation warfare – 4GW) representa um retorno ao período pré-Westfália, no qual múltiplos atores seriam potenciais beligerantes. À medida que a guerra interestatal passa a ser exceção, o número de “conflitos de baixa intensidade” entre diferentes organizações aumenta. As soberanias nacionais já estão sendo enfraquecidas por organizações que se recusam a reconhecer o monopólio estatal sobre a violência armada. Assim, com novas formas de conflito que se multiplicam e se proliferam, as linhas divisórias entre público e privado, governo e povo, militar e civil se tornam obscuras como eram antes de 16488.
Há, portanto, no atual cenário, uma predominância dos combates com participação de atores não estatais, ou seja, não convencionais, em relação aos tradicionais conflitos interestatais. Muitas das táticas assimétricas empregadas por forças irregulares consistem em táticas de guerrilha, incluindo métodos específicos de terrorismo9. Nesse sentido, “não resta dúvida de que […] a guerra irregular, por definição e prática, permanecerá como a forma de conflito predominante” nas 4GW10.
Outro conceito atual é o de guerra híbrida, cunhado pelo tenente-coronel (USMC) Frank Hoffman, a fim de definir os novos conflitos no século XXI. Tomando a organização libanesa Hezbollah como protótipo de estudo, Hoffman o conceituou como uma ameaça híbrida, ou seja, aquela que agrega capacidades convencionais e táticas irregulares, que vão desde o emprego de foguetes e mísseis até o terrorismo e a vinculação com atividades criminosas, como o contrabando e o tráfico de armas e entorpecentes11. Para o autor, esse tipo de organização híbrida constituiria uma nova forma de ameaça à paz mundial, o que levaria os Estados a também adquirirem certas capacidades híbridas, fazendo com que os combates se deem tanto no espectro convencional, quanto no não convencional simultaneamente12. Isso, de fato, já vem ocorrendo em muitos lugares, como se observou recentemente, por exemplo, na questão ucraniana de 2014.
Cabe, portanto, questionar se a ONU, por meio de suas forças de manutenção da paz, encontra-se preparada para se defrontar com esse tipo de cenário.
A Evolução das Operações de Paz
Desde a criação da ONU, em 1945, até o final da década de 80, ocorreram mais de cem conflitos em todo o mundo, deixando um total de aproximadamente 20 milhões de mortos. Essa aparente ineficiência da ONU pode ser explicada, em grande parte, pelos vetos à atuação da Organização, atestando assim a divisão ideológica que marcava a política internacional no período da Guerra Fria, bem como a existência de interesses divergentes entre os Estados-membros13.
Todavia, com o fim da Guerra Fria, a ONU emergiu, ao menos em tese, como um instrumento central mais efetivo para a prevenção e solução de conflitos, assim como para a preservação da paz. Por meio da figura 1, é possível observar a evolução das operações de paz da ONU ao longo de pouco mais de 20 anos de existência do DPKO.
Em sua “Agenda para a Paz”, em 1992, Boutros-Ghali assim traçou os objetivos das Nações Unidas para a manutenção da paz [tradução do autor]:
- Buscar identificar no estágio mais embrionário possível situações que possam desencadear conflitos e tentar por meio da diplomacia remover as causas dessas situações antes da eclosão da violência (preventive diplomacy);
- Onde o conflito eclodir, engajar-se na promoção da paz (peacemaking), voltada à solução das questões que levaram às hostilidades;
- Por meio da manutenção da paz (peacekeeping), trabalhar na preservação da paz, enquanto frágil, onde as hostilidades tenham cessado e assistir na implementação dos acordos conseguidos pelos pacificadores (peacemakers);
- Estar em condições de apoiar a construção da paz (peace-building) em seus diferentes contextos: reconstituir as instituições e as infraestruturas nacionais afetadas pela guerra; e restaurar relações pacíficas entre as nações em guerra;
- E em um contexto mais amplo, lidar com as causas mais profundas dos conflitos: desigualdade econômica, injustiça social e opressão política14.
Dessa forma, Boutros-Ghali acabou por definir as principais operações de paz em que as Nações Unidas trabalhariam a partir de então: a diplomacia preventiva (preventive diplomacy), a qual está vinculada ao primeiro objetivo supracitado; a peacemaking; a peacekeeping e a peace-building.
Ao dissertar sobre o uso da força militar nas atividades de peacekeeping, Boutros-Ghali concluiu que o desdobramento das forças militares da ONU expande as possibilidades da prevenção de conflitos, facilita a execução das atividades de peacemaking e, em muitos casos, serve de pré-requisito para a construção da paz (peace-building).
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Fruto de novas exigências da agenda global, o Secretário-Geral da ONU, em 1995, redigiu novo relatório, intitulado “Suplemento da Agenda para a Paz”, em que foram incluídas, no rol das operações de paz, as sanções, as atividades de desarmamento e de peace-enforcement (imposição da paz). Em que pese Boutros-Ghali tratar das enforcement actions no documento anterior, é no Suplemento que ele detalha tais operações15.
Contudo, não ficaram claras as diferenças entre o peacekeeping com emprego de força militar e o peace-enforcement, haja vista ambas as atividades serem desencadeadas com base no capítulo VII da Carta da ONU. Ademais, o aumento dos conflitos intraestatais em relação aos interestatais contribuiu para gerar confusão entre os conceitos. Isso porque o consenso entre as partes era o principal diferencial na decisão pelo uso da força. Enquanto no peacekeeping haveria o consenso, no peace-enforcement ele não ocorreria. Mas tais conceitos foram baseados em um pretenso consenso entre Estados. Após a Guerra Fria, com o incremento dos conflitos internos, as forças estatais deixaram de ser os atores preponderantes nos combates e as ameaças não estatais assimétricas ganharam maior relevância. Nesse sentido, cabe o questionamento: como obter o consenso no estabelecimento dessas missões? O consenso deve ser obtido entre todos os atores ou somente com o ator governamental? Se não há consenso entre as forças estatais e não estatais e se decide por uma intervenção pela força da ONU, estar-se-ia diante de uma atividade de peacekeeping ou de peace-enforcement?
Tal imprecisão conceitual, porém, não impediu a ONU de empreender as chamadas “operações de manutenção de paz robustas”, sob a égide do capítulo VII da Carta. Isso corrobora a afirmação de Boutros-Ghali de que o uso da força permite maior liberdade aos peacemakers e aos peace-builders na consecução dos mandatos. Além disso, imprime maior velocidade de resposta à ONU, nos casos de escalada abrupta da violência, em que se faça necessário um aumento no uso da força para conter as hostilidades, assim como para conter violações nos direitos humanos16. Cabe ressaltar que a maior permissividade no uso da força nas peacekeeping operations (PKO) se deve, sobretudo, às experiências malsucedidas da ONU na década de 1990, em Ruanda, na Somália e na Bósnia, em que os genocídios não puderam ser contidos pela falta de instrumentos coercitivos por parte das forças de paz17. No entanto, não há consenso entre os países contribuintes com tropa (troop contributing countries – TCC) acerca da legitimidade desses instrumentos, em razão da julgada intervenção na soberania das nações, o que, para alguns, fere os princípios da Organização. Mas até o presente momento, apesar das divergências, o uso da força encontra-se consagrado nas operações de paz.
FIGURA 1 – Evolução das Operações de Paz da ONU após a Guerra Fria em face da Conjuntura Mundial
Reafirmando essa necessidade do emprego da força militar, a ONU promoveu em 2000, um Painel sobre as Operações de Paz das Nações Unidas, sob a coordenação de Lakhdar Brahimi, em que foi discutido o advento das operações de paz multidimensionais e complexas em razão da crescente atuação da Organização em conflitos intraestatais18. Esse novo conceito de operações de paz requereu a constituição de componentes policiais, civis e militares, atuando em um ambiente interagências, a fim de dar maior flexibilidade à ONU e para permitir uma abordagem multifocal da problemática dos conflitos, os quais quase sempre possuem raízes não só na esfera militar, mas também em questões sociais, étnicas, econômicas e políticas. Nesse contexto, a força militar é apenas um dos instrumentos para a solução do problema, particularmente no início da missão de paz, em que se busca atingir um nível satisfatório de segurança para a realização das atividades de peace-building.
Outro ponto importante, discutido no Painel, foi a questão do consentimento das partes em conflito para a legitimação das ações da ONU. No relatório do Painel, comumente chamado de Relatório Brahimi, pode-se observar que a Organização passou a adotar uma postura mais flexível e proativa, no tocante ao consentimento das partes, uma vez que nas guerras intraestatais, os diversos atores envolvidos costumam manipular a situação, no intuito de prejudicarem o processo de pacificação ou ainda com o objetivo de se verem fortalecidos em relação às outras partes do conflito. Condicionar as intervenções da ONU somente à obtenção do consenso de todas as partes envolvidas nos conflitos não somente atrasa, como impede a construção da paz. Sendo assim, defendeu-se no Painel a adoção de operações de paz robustecidas no componente militar19, dando maior flexibilidade e aumentando a capacidade de intervenção da ONU em situações de escalada abrupta da violência.
Com isso, o que se vê no Relatório Brahimi é uma compilação dos conceitos de peacekeeping e peace-enforcement em um novo conceito de operações de paz, no qual o uso da força e os esforços de reconstrução se conjugam em igual importância, dotando a Organização de maior adaptabilidade nos ambientes complexos em que atua. Em que pese a semelhança entre esses conceitos, a contribuição de Brahimi, em complemento aos pareceres de Boutros-Ghali, já permite elencar algumas diferenças entre ambos os instrumentos, as quais podem ser sintetizadas conforme na Tabela 2.
TABELA 2 – Diferenças entre PKO com Mandatos Robustos e PEO
Um marco histórico, porém, viria a influenciar novamente o desdobramento das operações de paz: os atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001 nos EUA. A ação da Al Qaeda nesses atentados constituiu um marco no terrorismo transnacional, no qual células estanques ou indivíduos isolados (“lobos solitários”) passaram a exportar a violência internacionalmente, sem a necessidade de nenhum apoio da população e sem qualquer base territorial fisicamente constituída20. Estimativas do Banco Mundial sugerem que esses atentados “elevaram o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza em 10 milhões” e que o prejuízo econômico causado “à economia mundial excedeu os 80 bilhões de dólares”21. Mais uma vez, a ONU viu-se diante da necessidade de reestudar o seu papel no combate a ameaças provenientes de atores não estatais.
O Papel da ONU e o Caráter Transnacional das Ameaças Assimétricas
Em dezembro de 2004, em resposta ao coordenador do Painel sobre Ameaças, Desafios e Mudanças (High-level Panel on Threats, Challenges and Change), Kofi Annan, então secretário-geral da ONU, afirmou que era imprescindível para a organização desenvolver capacidades de contraterrorismo, em virtude das novas ameaças representadas pelas organizações terroristas transnacionais que comprometiam os esforços de paz mundial22. Cabe lembrar que a Al Qaeda já havia declarado publicamente que a ONU era um alvos prioritário. O próprio Kofi Annan e Sérgio Vieira de Mello, por exemplo, eram duas das personalidades da ONU visadas pela Al Qaeda, em razão do protagonismo de ambos na independência do Timor Leste, que era vista pela organização terrorista como um desmembramento da Indonésia, maior país muçulmano da Ásia23.
TABELA 3: Medidas sugeridas à ONU pelo High-Level Panel on Threats, Challenges and Change (2004) para fazer frente ao terrorismo e ao crime organizado transnacional
Aliada ao terrorismo, outra ameaça transnacional também passou a comprometer sobremaneira a segurança internacional: o crime organizado. Nessa conjuntura, ficou evidente que nenhum Estado, por mais poderoso que fosse, seria imune a essas ameaças, pois elas permeiam as sociedades global, regional e nacional em todos os níveis.
No que tange especificamente às ameaças assimétricas supracitadas, o Painel de 2004 sugeriu algumas medidas a serem tomadas pela ONU, as quais se encontram elencadas na Tabela 3, acima.
A transnacionalidade das ameaças assimétricas passou, então, a exigir uma abordagem multinacional. A ameaça à paz deixou de ser exclusividade de países colapsados, para atingir também Estados consolidados, com instituições permanentes e em pleno funcionamento. Reforçando esse entendimento, a ONU emitiu, em 2009, um relatório denominado “A New Partnership Agenda”, conhecido também como Iniciativa New Horizon, em que se reafirmou a necessidade de um aumento no número de TCC, bem como se incentivou uma maior interoperabilidade entre os Estados, como forma de ampliar a capacidade de intervenção da Organização em situações de ruptura ou ameaça à paz24.
Nesse sentido, o intento das Nações Unidas segundo a Iniciativa New Horizon foi fomentar o desenvolvimento de tropas de pronto emprego nos TCC, a fim de permitir um rápido desdobramento em ambientes em que fosse necessária a atuação da ONU25. Afinal, o fato de essas ameaças serem voláteis e atuarem em todo o globo, aliado a uma possível incapacidade – ainda que momentânea – de um Estado em se contrapor a elas, pode tornar necessária uma intervenção ou um apoio da Organização na restauração da paz, no mais curto prazo possível. Assim, havendo tropas disponíveis nos TCC, em situação de prontidão, essa capacidade de resposta da ONU seria, pois, mais satisfatória. Lakhdar Brahimi já havia feito referência às “brigadas de pronta intervenção”, porém o novo modus operandi das ameaças e a falta de adesão de países para essa iniciativa fizeram com que tal aspecto fosse reiterado na New Horizon.
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Todavia, em 2011, mais um acontecimento viria a afetar a atuação da ONU no cenário internacional, em razão do seu potencial de gerar mais instabilidade política em uma região do globo que já vivenciava outras crises e conflitos: a Primavera Árabe. As insurgências surgidas a partir desse evento, juntamente com a instabilidade no Iraque pós-guerra, tornaram esses ambientes locais propícios ao fortalecimento de organizações terroristas transnacionais. O Estado Islâmico (EI), grupo terrorista transnacional mais operante na atualidade, surgiu nesse emaranhado de crises políticas internas e disputas pelo poder na região.
Em 2015, as Nações Unidas, novamente, conduziram um painel de discussão sobre as operações de paz – o High-level Independent Panel on Peace Operations – no qual foram emitidas novas recomendações à atuação da ONU, ante o fortalecimento das ameaças assimétricas.
Como forma de flexibilizar o emprego da Organização, diante da instabilidade conjuntural característica dos ambientes operacionais em que a ONU atua, o Painel sugeriu a alteração da nomenclatura “peacekeeping operations” para “peace operations”, admitindo que o espectro das operações de paz é bastante amplo e, muitas vezes, os diversos tipos de operações de paz ocorrem simultaneamente em um mesmo ambiente26.
Outro ponto abordado no Painel de 2015 foi a atuação da ONU em atividades de contraterrorismo. Chegou-se à conclusão de que as forças de paz não possuem capacidades para se engajar em ações contra-terror, pois lhes faltam equipamento específico, estrutura de Inteligência e de logística e preparação militar adequada para se contrapor à ameaça terrorista. No entanto, a recomendação do Painel é de que essas forças deveriam receber treinamento específico, principalmente para proteger civis e os integrantes das Nações Unidas desdobrados na área conflagrada, em que pese o contraterrorismo ser atribuição do governo local ou de uma coalizão ad hoc autorizada pelo Conselho de Segurança da Organização (CSNU)27.
Assim, a grande dificuldade é estabelecer qual o limite de atuação da ONU no combate ao terrorismo. Os integrantes do Painel sugerem que uma divisão de tarefas deve ser feita entre o governo local e a força de paz nas atividades de contraterrorismo28. Entretanto, essa divisão é bastante complexa, em virtude da capilarização da ameaça terrorista nos diversos níveis da sociedade. Nos países em que essa capilarização atingiu, inclusive, a esfera governamental, por exemplo, torna-se bastante restrita e difícil essa divisão de tarefas. A esse respeito, cabe indagar se as atividades de contraterrorismo deveriam recair sobre a força de paz já desdobrada ou se caberia ao CSNU aprovar uma nova coalizão para lidar com o problema.
Conclusão
Yitzhak Rabin, ex-Primeiro-Ministro de Israel, ao se manifestar sobre o combate ao terrorismo internacional, afirmou:
“A resposta ao terrorismo internacional também deve ser internacional. As nações têm que encontrar uma maneira de cooperação contra a rede terrorista. […] Proponho que esse tipo de cooperação seja institucionalizado e tornado concreto. Os países que optarem por coordenar suas ações contra o terrorismo internacional deveriam criar uma organização internacional especial com tal propósito. […] essa organização não poderia ser estabelecida dentro da moldura das Nações Unidas29”.
Fica evidente, portanto, que a cooperação multilateral é um aspecto imprescindível para o sucesso das operações de combate às ameaças assimétricas, sejam elas organizações terroristas ou criminosas, em que pese, para Rabin, a ONU não seja o organismo mais adequado para tal, em razão, sobretudo, das divergências ideológicas no âmbito dos Estados-nação sobre questões como a não intervenção e a definição de terrorismo.
Contudo, a despeito de a ONU assumir ou não esse protagonismo, o fato é que as forças de paz continuarão a se deparar com ameaças assimétricas nos “host countries”. A questão é como se contrapor a elas, a fim de assegurar o cumprimento do mandato, a proteção da força e da população local.
Sendo assim, as forças de paz deverão passar por adaptações no seu treinamento e na sua constituição, além de necessitarem de estruturas voltadas também para combater esse tipo de ameaça: destacamentos contra-terror compostos por operadores de forças especiais, equipes de inteligência humana, meios de inteligência de imagens e de sinais compatíveis com as novas necessidades de informação, equipes especializadas em desativação de explosivos improvisados, operadores psicológicos, centros de coordenação interagências, dentre outras. Essas estruturas, após o processo de paz ingressar na fase de peace-building (ou normalização), poderão servir de treinamento às forças de segurança locais, como suporte à reestruturação de capacidades do Estado anfitrião.
É incontroverso que a confrontação às ameaças assimétricas transnacionais requer uma resposta proativa por parte da comunidade internacional. Os ataques do 11 de Setembro de 2001 mostraram que os Estados, assim como as instituições de segurança coletiva, falharam ao acompanhar as mudanças na natureza de novos atores.
Mas o que deve ficar claro também é que a força militar não é o único meio para se combater as ameaças assimétricas. O consentimento da população (do Estado ou do ambiente em que haja intervenção) é fator de sucesso nas operações. Nesse sentido, ações voltadas para redução da pobreza e do desemprego, investimentos em educação infantil e dos jovens e outras atividades de cunho psicossocial são fundamentais, pois reduzem sobremaneira o universo passível de recrutamento por parte das organizações criminosas e terroristas.
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O aspecto mais importante, todavia, é o reconhecimento por parte da comunidade mundial de que as ameaças assimétricas constituem um problema transnacional, global, e não são exclusividade de Estados falidos ou vinculados a determinadas ideologias radicais. Sendo assim, exige-se dos Estados-nação um entendimento de que apoiar as intervenções da ONU que visem a combater essas ameaças é, antes de tudo, um dever humanitário e uma imposição para a paz e segurança internacionais.
Referências
1 Hans J. Morgenthau, A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz, tradução de Oswaldo Biato (Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003), p. 897.
2 Martin Wight, A política do poder, tradução de Carlos Sérgio Duarte (Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002), p. 245.
3 Hans J. Morgenthau, A política entre as nações.
4 Martin Wight, A política do poder, p. 245. Martin Wight usa o termo have nots para se referir aos países com pouca ou nenhuma influência na política global. Para Hans Morgenthau, a política do status quo visa à manutenção da distribuição do poder que existe em um momento particular na história. Nesse sentido, as potências do status quo da época em questão seriam aquelas que passaram a exercer maior influência política no mundo após a Segunda Guerra Mundial, particularmente, EUA, Grã-Bretanha e Rússia.
5 Boutros-Boutros Ghali foi secretário-geral da ONU entre 1992 e 1997. João Lins de Albuquerque, Conversações: 50 entrevistas essenciais para entender o mundo (São Paulo: Cultura, 2008), p. 105.
6 Carl von Clausewitz, Da guerra, tradução do original para o inglês por Michael Howard e Peter Paret, tradução do inglês para o português por Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle, p. 75.
7 William S. Lind et al., “The Changing Face of War: Into the Fourth Generation”, Marine Corps Gazette (October 1989): p. 22-26, acesso em 9 jul. 2019, http://lesc.net/system/files/4GW+Original+Article+1989.pdf.
8 William S. Lind, John F. Schmitt e Gary I. Wilson, “Fourth Generation Warfare: Another Look”, Marine Corps Gazette (December 1994): p. 34-37, acesso em 9 jul. 2019, http://indianstrategicknowledgeonline.com/web/4Th%20GENRATION%20WARFARE%20ANOTHER%20LOOK.pdf.
9 William S. Lind, “Compreendendo a Guerra de Quarta Geração”, Military Review [edição brasileira] 85, no 1 ( Janeiro-Fevereiro 2005): p. 12-17 acesso em 9 jul. 2019, http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/MR%20WSLind.pdf.
10 Alessandro Visacro, Guerra irregular: Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história (São Paulo: Editora Contexto, 2009), p. 40.
11 Frank G. Hoffman, Conflict in the 21st Century: The Rise of Hybrid Wars (Arlington, Virginia: Potomac Institute for Policy Studies, 2007), p. 28, acesso em 9 jul. 2019, https://potomacinstitute.org/images/stories/publications/potomac_hybridwar_0108.pdf.
12 Ibid., p. 14.
13 U.N. Secretary-General, An Agenda for Peace: Preventive Diplomacy, Peacemaking and Peace-Keeping: Rep. of the Secretary-General, U.N. Doc. A/47/277-S/24111 (New York: United Nations, 17 June 1992), par. 14.
14 Ibid., par. 15.
15 U.N. Secretary-General, Supplement to an Agenda for Peace: Position Paper of the Secretary-General on the Occasion of the Fiftieth Anniversary of the United Nations, U.N. Doc. A/50/ 60-S/1995/1 (New York: United Nations, 3 Jan. 1995), par. 23.
16 Ibid., par. 35.
17 Priscila Liane Fett Faganello, Operações de Manutenção da Paz da ONU: De que Forma os Direitos Humanos Revolucionaram a Principal Ferramenta Internacional da Paz (Brasília: FUNAG, 2013), p. 75, acesso em 9 jul. 2019, http://funag.gov.br/biblioteca/download/1078-operacoes-de-manutencao-de-paz.pdf.
18 Report of the Panel on United Nations Peace Operations, U.N. Doc. A/55/305-S/2000/809 (21 Aug. 2000).
19 Ibid., par. 55.
20 Eric J. Hobsbawn, Globalização, democracia e terrorismo, tradução de José Viegas (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), p. 92.
21 U.N. Secretary-General’s High-level Panel Report on Threats, Challenges and Change, A More Secure World: Our Shared Responsibility, U.N. Doc. A/59/565 (New York: United Nations, 2 Dec. 2004), par. 18.
22 Ibid., par. 11.
23 Kofi A. Annan, Intervenções: uma vida de guerra e paz, tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra (São Paulo: Companhia das Letras, 2013), p. 187.
24 U.N. Department of Peacekeeping Operations and Department of Field Support, A New Partnership Agenda: Charting a New Horizon for UN Peacekeeping (New York: United Nations, Jul. 2009), p. vi, acesso em 9 jul. 2019, https://peacekeeping.un.org/sites/default/files/newhorizon_0.pdf.
25 Ibid., p. 24.
26 Report of the High-level Independent Panel on Peace Operations on uniting our strengths for peace: politics, partnership and people, U.N. Doc. A/70/95-S/2015/446 (New York: United Nations, 17 June 2015), par. 3.
27 Ibid., par. 119-120.
28 Ibid., par. 123.
29 David J. Whittaker, Terrorismo: um retrato, tradução de Joubert de Oliveira Brízida (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2005), p. 353.
Artigo publicado na edição brasileira da Military Review do Quarto Trimestre de 2019.
*Victor Almeida Pereira é Major de Artilharia formado pela Academia Militar das Agulhas Negras, é especialista em Inteligência Militar pela Escola de Inteligência Militar do Exército (EsIMEx, 2008) e pela Escuela de Guerra del Ejercito de Tierra (Espanha, 2013). Em 2014, concluiu o mestrado em Ciências Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército Brasileiro. Em 2010, integrou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) como Adjunto da 9ª Seção (CIMIC) do 1º Batalhão de Infantaria de Força de Paz e, entre novembro de 2018 e maio de 2019, exerceu a função de analista CCIRM (Collection Coordinator and Intelligence Requirement Manager) na Seção de Inteligência da Multinational Sector East Brigade da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (United Nations Interim Force in Lebanon – UNIFIL).
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