Por Ronaldo Olive* |
Publicado originalmente na Revista “O Anfíbio” nº 14 de 1994, do CFN
Durante a primeira metade deste Século, os exércitos de todo o mundo estiveram equipados com fuzis que disparavam munição virtualmente igual: um longo cartucho dotado de projétil encamisado de calibre em torno de .30 polegadas (7,62mm) e pesando cerca de 13 gramas, sendo de aproximadamente 60mm o comprimento dos estojos usados. Igualmente empregada pelas metralhadoras e fuzis-metralhadores da época, tal munição representava o desejo então predominante de se ter um projétil preciso e letal a alcances de 1.000 metros ou mais.
Dentre os diversos tipos enquadrados nesta descrição, podem ser citados os cartuchos .30-06 (EUA), .303 (Grã-Bretanha), 7,92mm Mauser (Alemanha), 7,62mm Mosin (Rússia), 7,5mm Mas (França) e tantos outros. O Brasil e outros países durante décadas empregaram o chamado 7mm Mauser, cujo projétil tinha um calibre de 7,20mm, pesava cerca de 11 gramas e empregava um estojo de 57mm de comprimento. Aliás, é importante lembrar sempre que os calibres normalmente usados para designar este ou aquele tipo de munição costumam ser puramente nominais, não indicando o diâmetro real do projétil.
Mas as coisas começaram a mudar nos estágios finais da Segunda Guerra Mundial, quando os alemães colocaram em uso, ainda que de forma limitada, sua munição 7,92 Kurz (7,92 x 33mm). Em essência, era um estojo de 7,92mm Mauser encurtado e acoplado a um projétil mais leve (8, em vez de 13 gramas), com uma carga de pólvora reduzida de 3,5 para 1,5 gramas. Usada em conjunção com uma nova geração de fuzis de assalto mais leves, os MP43/MP44/ StG44, tinha um alcance efetivo da ordem de 400 metros.
Este chamado “cartucho intermediário” foi posteriormente adotado, com ligeiras modificações, pela então União Soviética, sob a designação genérica de 7,62 x 39mm. Juntamente com os fuzis da “família” Kalashnikov (AK-47, AKM e outros derivados), consagrou-se por maciço uso internacional, até os dias de hoje.
Com o fim da Guerra, os Aliados começaram a pensar na definição do que seria um “calibre ideal”, partindo do princípio que a munição até então generalizada era desnecessariamente potente para aquilo que ficou estatisticamente estabelecido como “distâncias médias de engajamento em combate”, ou seja, algo em tomo de 100 a 300 metros. Os britânicos testaram e propuseram munições em calibre .276 polegadas (7 x 60mm) e, posteriormente, 4,85 x 49mm, mas a força política dos Estados Unidos era bem maior.
Num controvertido processo que levaria páginas para descrever em algum detalhe, os EUA criaram e impuseram à Organização do Tratado do Atlântico Norte a adoção do cartucho 7,62 x 51mm, o que foi efetivado em janeiro de 1954. Para ele, foi desenvolvido o fuzil M14, uma adaptação do Ml Garand da Segunda Guerra, enquanto que outros países também foram colocando no mercado armas no mesmo calibre, bem melhores até, como o FN FAL (belga) e o G3 (criado na Espanha e aperfeiçoado na Alemanha).
Mas, ainda em meados da década de 50, havia fortes correntes de opinião entre os militares norte-americanos de que um calibre menor e um fuzil mais leve seriam mais práticos. Houve uma série de programas experimentais (SALVO, SPIW e outros) em que munições ditas “exóticas” (projéteis múltiplos, flechetes e micro-calibres) foram exaustivamente avaliadas, até mesmo em condições reais de combate, no Vietnã.
Embora tais engenhocas não tivessem obtido resultados satisfatórios, a ideia de uma munição convencional – mas de calibre menor – tornava-se cada vez mais forte. Em 1957, a fábrica Remington ofereceu ao Exército dos EUA uma adaptação de seu cartucho .222 Magnum, baseada num tipo já amplamente usado para caça de pequeno porte. Com a redução do comprimento do estojo e da carga de propelente, surgiu o .223 Remington, ou 5,56 x 45mm. “Casado” com o fuzil Colt AR-15/M16, foi oficialmente adotado pela Força Aérea em outubro de 1963 e pelo Exército, em 1967.
Gradualmente, fabricantes em todo o mundo foram projetando novas armas para a munição que, a partir do maciço emprego em combate na Guerra do Vietnã e em outros conflitos pelo mundo afora, mostrou-se extremamente versátil. E a própria OTAN, anteriormente levada a adotar o cartucho 7,62 x 51mm, acabou oficializando o 5,56 x 45mm como seu segundo calibre (STANAG 4172, 28 de outubro de 1990).
É importante ressaltar que existem diferenças entre a munição M193 originalmente empregada pelos Estados Unidos e a M855 ou SS109 padronizada pela OTAN.
Embora os cartuchos, em si tenham dimensões externas necessariamente iguais, há variações importantes entre eles. A começar pelo próprio projétil, ligeiramente mais comprido, cujo peso passou de 3,56 para 4 gramas. Enquanto que o M193 é de puro chumbo debaixo da camisa de cobre, o M855 tem um duplo núcleo de aço (na frente) e chumbo (atrás).
Além de incrementar a capacidade de penetração, a ponta de aço contribui para a letalidade ainda maior do projétil, que normalmente tomba e se fragmenta ao penetrar num meio hidroelástico (tecido animal), aumentando a cavitação temporária e a área de destruição pelos subprojéteis assim gerados.
Enquanto o mais leve e curto projétil M193 requer um fuzil com cano raiado no passo de 1:305mm (uma volta em 305mm) para adequada estabilização em voo, o M855 necessita de um passo mais apertado, de 1:178mm. É óbvio que uma e outra munições podem ser disparadas de canos “trocados”, mas haverá, fatalmente, perda de desempenho. Mais ainda se for usada munição com projétil traçante (M856, 26% mais longo).
O desempenho balístico de qualquer munição, mesmo uma teoricamente “padronizada”, sempre apresentará ligeiras variações, dependendo do fabricante, comprimento e raiamento do cano da arma usada, condições ambientais do tiro e outras variáveis. O quadro que acompanha este trabalho, baseado em testes oficiais da OTAN, deve ser considerado, portanto, apenas como ilustrativo.
Acho importante ressaltar que dados puramente numéricos ou estatísticos devem ser vistos com muito cuidado, antes de sairmos por aí defendendo ou condenando este ou aquele calibre. É necessário que levemos em conta uma série de critérios e parâmetros, assim como os requisitos operacionais envolvidos.
A inevitável comparação entre os calibres 7,62 e 5,56mm mostra o que qualquer pessoa que já tenha atirado com ambos já sabe perfeitamente: o “velho sete-meia-dois” é muito mais potente! Mas o que é realmente importante não é qual deles produz mais energia cinética, mas, sim, quanta energia é transferida para o alvo e como isto ocorre.
As variáveis são inúmeras e cada caso é um caso, mas um projétil 5,56mm tipicamente tomba e se fragmenta após penetrar cerca de 10cm em tecido humano, rapidamente transferindo toda sua energia para o alvo. O 7,62mm geralmente “capota” e gira 180 graus antes de sair do corpo (base para a frente), sem deformar-se ou fragmentar, quer dizer, produzindo menores cavitações temporária e permanente.
Apesar das diferenças de velocidade, testes de penetração em aço e madeira mostram desempenho virtualmente igual para os dois calibres. O 7,62mm mostra-se um pouco mais resistente à deflexão por obstáculos (vegetação, vidro, madeira, etc.). Em termos de precisão absoluta, é claro que o 5,56mm fica em segundo lugar, mas também deve ser lembrado que tiros de grande precisão pertencem a uma equipe de “sniper”, sempre equipados com fuzis especiais em 7,62mm.
No combate comum, o recuo cerca de 50% menor do tiro com calibre 5,56mm dá maiores probabilidades de acerto, agilização no engajamento de alvos múltiplos e maior controlabilidade nas situações que requeiram o uso de tiro automático. E tem mais: pesando a metade, permite que o dobro de cartuchos seja levado pelo combatente, para um mesmo peso de munição, além do fato de um carregador típico de fuzil 5,56mm ter capacidade para 30 tiros (50% a mais que ode um FAL, por exemplo).
*Ronaldo Olive é Especialista em Armamentos e Consultor Técnico da Revista Tecnologia & Defesa, com inúmeras publicações na área.
*Imagem de capa: Munição para automática M-249 dos Marines (Foto: USMC/Gunnery Sgt. Mark Oliva)
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Field Manual FM 3-22.68 Crew-Served Machine Guns 5.56-mm and 7.62-mm July 2006
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Improvised Munitions Combined with MILITARY SPECIFICATION CARBINE, 5.56MM: M4A1
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Excelente matéria! A comparação entre o 5.56 e o 7.62 rende muitas discussões e são infindáveis. De tempos em tempos surge á tona, a questão de mudança e adoção de calibres, o que nos faz refletir sobre o assunto (pelo menos no meu caso…rs..rs..)e ver as mudanças de paradigmas que as “guerras” passam pelo mundo.
Em minha humilde opinião cada um deles tem seu emprego, na prática dependerá de seu propósito doutrinário, se a tropa necessita de um Fuzil de Assalto ou de Batalha, entre outros infindáveis critérios.
Recentemente, tropas Americanas no Afeganistão relataram que “precisavam” de um calibre mais “robusto”, e hoje já se fala em adotar um calibre intermediário entre o 5.56 e o 7.62 x 51, mas que não seja o mesmo 7.62 x 39.
Nosso EB mesmo, muito tempo depois começou a seguir em direção ao 5.56 e hoje vemos outras forças olhando para retornar ao 7.62 (ou o dito calibre intermediário entre 5.56 e 7.62), interessante notar que em um período de um pouco mais de meio século, a maioria das Forças do Ocidente mudou pelo menos 1 vez o calibre ou operam com calibres diferentes entre países aliados. Já o bloco oriental, de forma geral permaneceu com seu calibre 7.62 x 39, obviamente não sendo regra.
Muito interessante a matéria! Parabéns!
Obrigado, Michael! O Ronaldo Olive realmente entende muito do assunto. Na minha visão, é interessante notar como sempre é uma questão de definição de requisitos, ao contrário de uma corrente que acredita que um calibre maior é necessariamente melhor. Grato pelo comentário!
Acompanho as matérias do Ronald Olive a muitos anos! Sem dúvida um especialista de peso! Concordo plenamente que é uma definição de requisitos e não necessariamente calibre maior é melhor.
Ótimo artigo…
Muito obrigado, Lucas!
Republicou isso em OSROC7 – Segurança & Defesa.
Muito o Artigo.
Talvez tenha faltado a questão econômica, que acredito que tenha tido um peso maior na decisão da adoção do calibre.
Sobre a mudança do perfil de “como são travadas” as guerras concordo plenamente com os argumentos, a mudança e calibre está diretamente relacionada com a doutrina adotada ou a ser adotada. Nem sempre a ideal ou sonhada mas a rela e pratica.
SELVA!
BRASIL!!
Requisitos e doutrina é o que rege! Grato por comentar!
O Kid sempre foi um amigo dos fuzileiros. Ótimo artigo e Adsumus!
Muito obrigado!
Outro detalhe interessante ao se adotar o calibre 5.56 é o aumento do poder de fogo de um grupo de combate pela maior quantidade de munição transportada pelo seu efetivo e com isso há a possibilidade de se reduzir o número de integrantes de um GC de 9 para 8 homens sem reduzir seu poder de fogo e com o efetivo reduzido ser transportado em helicóptero pantera.
Boa observação! Grato pelo comentário!
Excelente matéria. Poderia fazer uma sobre os calibres usados antes e depois da II guerra mundial. E quem sabe sobre os diversos calibres de canhões dos paises que participaram do conflito! Continue nos dando este enorme contribuição. Obrigado operadores!
Sugestões anotadas! O Velho General é que agradece por nos seguir, grato pelo comentário!