Por Luiz Eduardo Rocha Paiva* |
Apoie o Velho General: contribua com a manutenção do blog, conheça as opções.
A Força Expedicionária Brasileira, sem experiência de combate, com baixo treinamento e vinda de um país sem tradição de atuar em conflitos externos desde a Guerra do Paraguai, quase cem anos antes, enfrentou preconceitos e mostrou, sem sombra de dúvida, o valor do soldado e do povo brasileiros. Ainda hoje a FEB encontra baixo reconhecimento no Brasil, e não é difícil encontrar aqueles que, inadvertidamente, detratam sua atuação na Itália. Neste artigo, o general Rocha Paiva relata de forma brilhante a trajetória da FEB, seu valor e o legado que deixou aos brasileiros de hoje, tão carentes de nossa História – ainda que, talvez, muitos não saibam disso.
Fonte: publicação de 2015 na Revista Saber do Colégio Militar de Brasília.
RESUMO: O artigo começa com a síntese da situação do Brasil nos anos 1930-1940, destacando suas graves carências. A seguir, é explicado como se deu o envolvimento do país na 2ª Guerra Mundial e as dificuldades para preparar e enviar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) para a Europa. São feitas considerações sobre os ensinamentos da História Militar a respeito do batismo de fogo de tropas inexperientes. E, então, se passa ao relato do roteiro da FEB, resumindo a situação militar encontrada na Itália e suas principais ações nos conflitos. Os combates de Monte Castelo e Montese são apresentados de forma detalhada e com farto apoio de imagens. Em seguida, antes de finalizar, é discutido o legado da FEB e sua importante contribuição para o amadurecimento político e o desenvolvimento econômico e social do Brasil.
1. Introdução
Em 8 de maio de 2015, comemorou-se em todo o mundo os setenta anos da vitória aliada na 2ª Guerra Mundial, o maior conflito armado de todos os tempos. No Brasil, houve alguns eventos para lembrar os feitos da FEB e seus pracinhas, vivos e mortos, que combateram gloriosamente nas montanhas italianas, bem como para homenagear os irmãos brasileiros vítimas dos submarinos nazifascistas em nosso litoral. Mas eles e elas mereciam muito mais!
Este artigo pretende contribuir para a Nação, principalmente sua juventude, valorizar a História da Pátria, mostrando como irmãos brasileiros de uma geração passada responderam com coragem à afronta lançada à dignidade nacional. A Nação foi desafiada por um inimigo, cuja ideologia totalitária e racista o levara a se considerar uma raça superior, destinada a dominar o mundo. Os pracinhas deram um exemplo de como deve ser e proceder um povo que pretende ver sua Nação respeitada e considerada no cenário mundial.
Pretendo mostrar como o Brasil foi capaz de superar enormes carências e dificuldades e, realizando um notável esforço, participar diretamente do conflito com uma força expedicionária que, superando reveses iniciais, colheu brilhantes vitórias sobre a poderosa e temida Wehrmacht alemã. O mestiço tupiniquim derrubou o mito da super raça germânica. Quero mostrar como o brasileiro, patriota por natureza, é capaz de realizar feitos notáveis quando liderado por quem lhe inspira confiança e camaradagem. A descrição dos combates de Monte Castelo e Montese comprova o valor de nossa gente, mas esses são apenas dois dos muitos exemplos de heroísmo que pontuam a História do Brasil e de seu Exército.
Em síntese, pretendo exaltar a FEB como exemplo de feitos memoráveis, livro sobre valores e virtudes morais e cívicas e legado extraordinário a ser conhecido e cultuado por todas as gerações de brasileiros.
2. O Brasil nos anos 1930-1940
O Brasil, assim como as potências mundiais vivia a era industrial, mas ao contrário delas era um dos países que ainda não entrara na revolução industrial, sendo importador de produtos até mesmo de primeira necessidade e dependente da monocultura do café para auferir recursos de exportação. O Brasil, na era industrial, não tinha indústrias.
A população era de quarenta milhões de habitantes, com 28 milhões vivendo no campo e doze milhões nas cidades. As condições de saúde e sanitárias eram muito precárias, o que facilitava a propagação de doenças, sendo grande o número de brasileiros com tuberculose, doença de chagas, hanseníase, sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis. A taxa de mortalidade infantil era, também, muito elevada.
LIVRO RECOMENDADO:
The Supreme Commander: The War Years of General Dwight D. Eisenhower
|
A infraestrutura de transportes refletia um país com população mal distribuída, adensada no litoral e em poucos núcleos de porte médio no interior. No tocante à educação, o analfabetismo beirava os 60% da população. A malha rodoviária, além de muito incipiente, não era asfaltada e a ferroviária não supria as necessidades do país, concentrando-se no sudeste e com alguns ramais no nordeste e no sul, em áreas mais populosas próximas ao litoral, não muito diferente da configuração atual. Dessa forma, era grande a dependência do transporte marítimo, cuja navegação oferecia alto risco pela ameaça dos submarinos do Eixo. O fornecimento de energia elétrica sofria constantes interrupções, haja vista a baixa capacidade instalada para atender à demanda residencial nos centros urbanos e a das fábricas, sendo ainda mais deficiente para suprir as áreas rurais onde vivia a maioria da população.
A Revolução de 1930, que depôs o Presidente Washington Luís, substituiu a liderança do eixo São Paulo-Minas Gerais e deu espaço para a ascensão de novas correntes políticas engajadas na industrialização do Brasil. Essa nova liderança marcou o início da evolução política, econômica e social do país, que foi passando, paulatinamente, de rural e agrário a urbano e industrial. A urbanização, a industrialização e o aumento da imigração de contingentes europeus e japoneses ensejaram o crescimento da classe média, a melhoria das condições de vida nas cidades, a expansão da educação, o fortalecimento de ideais democráticos mas, também, a introdução das ideologias comunista, socialista e nazifascista oriundas da Europa.
Em 1937, o presidente Getúlio Vargas, alegando ameaças de ideologias totalitárias decretou o Estado Novo e implantou uma ditadura que permaneceu no poder até 1945. A Constituição de 1937 decretou a supremacia do Executivo sobre o Legislativo, extinguiu os partidos políticos, aboliu as eleições, fechou o Congresso Nacional, acabou com a liberdade de imprensa e decretou o fim do federalismo, passando os estados a serem governados por interventores.
Esse era o Brasil quando eclodiu a 2ª Guerra Mundial na Europa. Mas o que levou o Brasil a participar diretamente do conflito com suas Forças Armadas (FA)?
3. Verás que um filho teu não foge à luta
Um mês após o início das hostilidades, os países do continente americano se reuniram no Panamá, em outubro de 1939, e declararam neutralidade na guerra. Porém, seria difícil para todos mantê-la, considerando o vulto do conflito, os interesses em jogo e a expansão geográfica das operações bélicas, que afetaram a todos os continentes. Era o resultado do processo de intensificação progressiva da globalização, embora ainda não claramente perceptível como hoje, que não excluía e ainda não exclui a projeção do poder militar em seus vários propósitos – atrair, pressionar, coagir ou impor.
Em julho de 1940 foi a vez de Havana sediar uma conferência dos países americanos e, nessa reunião, ficou decidido que qualquer atentado de um Estado não americano a um país do continente, comprometendo sua integridade ou inviolabilidade territorial, soberania ou independência seria considerado uma agressão aos demais condôminos. E assim aconteceu quando, em 7 de dezembro de 1941, os japoneses atacaram Pearl Harbor, território dos EUA no Havaí. Em consequência, o Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo nazifascista em janeiro de 1942, tendo como resposta o início do torpedeamento e afundamento de navios mercantes nacionais por submarinos alemães e italianos. Foram 35 navios torpedeados, dos quais 33 afundados, causando a morte de mais de mil irmãos brasileiros. Em 31 de agosto daquele ano, o Brasil declarou guerra à Alemanha e Itália, tendo decidido, em fevereiro de 1943, constituir a Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater no teatro de operações (TO) europeu. Em julho do ano seguinte, o primeiro contingente da FEB seguiu para a Itália, entrando em combate em 16 de setembro de 1944.
LIVRO RECOMENDADO:
1942: o Brasil e sua guerra quase desconhecida
|
Em 1940, o Exército tinha um efetivo de apenas sessenta mil homens e uma missão militar francesa prestava orientação operacional à nossa força terrestre desde o início da década de 1920. Sem dúvida exitosa na 1ª Grande Guerra, a doutrina francesa se mostrara ultrapassada no conflito em pauta. Assim, o Exército teve de migrar para a doutrina norte-americana, uma vez que a FEB iria integrar um Corpo de Exército dos EUA no TO europeu. Em pouco mais de um ano, foi necessário preparar pessoal para o exercício de novos cargos e para empregar equipamentos e armamentos então desconhecidos. Os manuais de operações precisaram ser traduzidos, a metodologia de planejamento e a tática operacional foram adaptadas e novas formas de exercer a disciplina e a liderança militar tiveram que ser estudadas, assimiladas e praticadas.
Foi difícil selecionar 25 mil brasileiros aptos para compor a FEB, entre os 110 mil convocados e voluntários, pois as exigências das normas de seleção do Exército dos EUA não eram fáceis de serem atendidas com uma população com tão graves carências sanitárias. As condições de combate no front italiano seriam terríveis, particularmente no inverno. Havia outros óbices a dificultar a mobilização, reunião e preparação da FEB. Um deles era o lapso desde o último conflito armado externo do país, a Guerra do Paraguai terminada há setenta anos, e outro óbice foi a guerra psicológica adversa, explorando o sentimento de inferioridade de grande parte da população. A contrapropaganda dizia ser mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil mandar uma força expedicionária para combater o Eixo nazifascista. Em momento de grande inspiração, foi exatamente a figura de uma cobra fumando que passou a ser o símbolo da FEB, como um provocativo autodesafio. Pois o soldado brasileiro, síntese do povo desta Nação, fez o símbolo se transformar em realidade e a cobra fumou nos campos de batalha do TO italiano.
A FEB reuniu gente de todas as regiões do Brasil. Teria sido mais fácil, em termos meramente operacionais, fazer a convocação e reunião apenas na região sudeste e no Rio Grande do Sul, onde as condições de higidez da população eram melhores e se concentravam as unidades mais bem constituídas do Exército. Porém, optou-se por uma decisão de cunho político-estratégico, considerando a importância de a FEB ser um feito nacional e não apenas regional, a servir de exemplo para as futuras gerações de todo o país e fator de coesão nacional. Assim, a composição da força teve mais de 50% de cidadãos do sudeste, cerca de 15% da região sul e outros tantos do nordeste e os demais distribuídos entre as regiões norte e centro-oeste.
O Brasil não tinha indústrias têxteis nem de calçados capazes de produzir uniformes e coturnos em condições de durar no clima e na topografia onde os combates seriam travados. Praticamente tudo, até mesmo meias, luvas, camisas, ceroulas, mantas e lençóis foram fornecidos pelos americanos, cujo apoio logístico foi de primeira qualidade, sendo a opinião de muitos pracinhas que eles se alimentavam melhor no front do que em casa no Brasil. Além desse material, o equipamento, as viaturas e o armamento só foram recebidos na Itália, pois os EUA não tinham certeza de que o Brasil mandaria, realmente, uma força expedicionária para a Europa e não queriam desperdiçar meios caso isso ocorresse.
As potências viam o Brasil como um país pleno de recursos, mas subdesenvolvido, periférico e mestiço, como se essa última característica fosse algo negativo. Havia um misto de desprezo, benevolência, interesses e preconceito racial similar ao arianismo alemão, que se estendia, logicamente, ao soldado brasileiro. Eis aí um grande desafio a vencer, pois a tendência seria uma cobrança de resultados sem considerar a inexperiência que, normalmente, prejudica o desempenho de tropas novatas, de qualquer país, ao entrarem em operações.
LIVRO RECOMENDADO:
|
4. Na guerra o início é sempre difícil
No início de 1943, o emprego de tropas inexperientes do Exército dos EUA na Tunísia resultou em significativas e, segundo alguns estudiosos, humilhantes derrotas impostas pelo veterano Afrika Korps de Rommel em distintos combates durante a Batalha de Passo Kasserine. O batismo de fogo do Exército dos EUA, no front do Atlântico, na 2ª Guerra Mundial é assim relatado por AMBROSE (pag. 166 e 169):
“A Batalha de Passo Kasserine envolveu veteranos [alemães] e novatos [norte-americanos] – o verdadeiro problema, antes e durante a batalha, era se os americanos impediriam que uma derrota tática se transformasse em um desastre estratégico. E isso eles conseguiram. O problema depois da batalha era se eles aprenderiam com os seus erros” (traduzido por este autor).
Além de destacar a falta de experiência das tropas norte-americanas, o mesmo autor aponta as deficiências observadas na sua preparação:
“Elas não receberam treinamento intensivo nos EUA – levou meses para que recebessem seu equipamento e, então, o treinamento na Inglaterra ficou difícil – os oficiais e soldados mostraram essa falta de adestramento” (traduzido por este autor).
Mas não foram só os norte-americanos, mas também ingleses e franceses sofreram sérios reveses quando seus exércitos não preparados e sem experiência foram batidos em Dunquerque (França) e no sudeste da Ásia entre 1939 e o início de 1943.
Anos mais tarde, no início da Guerra da Coreia em 1951, o Exército dos EUA entrou no conflito com soldados convocados, ao contrário dos Fuzileiros Navais (Marines) que empregavam soldados profissionais. O inimigo era o Exército da Coreia do Norte que, então recentemente, tinha concluído sua participação na Revolução Chinesa, combatendo durante anos ao lado das vitoriosas forças de Mao Tse Tung. O resultado nos primeiros combates foi o mesmo de Passo Kasserine, exceto os Marines que, embora sofressem reveses importantes, demonstraram disciplina de combate, equilíbrio emocional e preparo profissional.
É a História Militar quem explica os reveses da FEB, nos primeiros meses no front, ao entrar em choque com as fortes posições na cadeia dos Montes Apeninos, defendida por um inimigo experiente, aguerrido, com efetivo suficiente e bem equipado. Portanto, atacar, recuar em ordem e permanecer no front sem ser substituída foi um mérito.
Há quem deprecie as vitórias da FEB por não terem sido decisivas na derrota do Eixo. Ora, ela era apenas uma das 99 divisões de combate aliadas na Europa e em um TO secundário. As suas vitórias foram compatíveis com uma divisão de Infantaria a pé (sem blindados), sendo importantes para o IV Corpo de Exército do Exército dos EUA ao qual pertencia. A FEB, como qualquer divisão, era do nível tático e não estratégico. Substituiu um Corpo de Exército dos EUA e o Corpo Expedicionário Francês, ambos veteranos, que foram transferidos para o TO prioritário na França, o que constituiu mais uma contribuição para a campanha aliada. A FEB entrou em combate com preparação incompleta e venceu difíceis desafios até se tornar uma força combatente eficaz, que demonstrou o valor da gente brasileira e projetou o Brasil no mundo.
5. A chegada ao TO italiano e o roteiro da FEB
A FEB chegou à Itália com o primeiro contingente em julho de 1944, o qual entrou na fase final de preparação e teve seu batismo de fogo em 16 de setembro, atuando com êxito contra posições avançadas alemãs diante cadeia de montanhas dos Apeninos.
Naquele momento, o norte da Itália estava em mãos da Wehrmacht, que vinha conduzindo uma eficaz ação retardadora de nível estratégico, desde a Sicília, aproveitando as sucessivas linhas de alturas ao longo da península italiana, onde eram excelentes as condições de defesa. Seu objetivo era impedir o acesso ao sul da Alemanha, já engajada em uma luta mortal ao leste contra a URSS e ao oeste contra os demais aliados, pois uma terceira frente aberta, próximo ao coração daquele país, lhe seria fatal. Além disso, era importante para o esforço de guerra alemão a posse do norte da Itália, por sua base industrial e por ser um elemento de barganha relevante em uma eventual negociação de paz com os aliados. Portanto, é muito simplório o argumento de que o Exército Alemão estivesse combatendo sem o engajamento dos anos anteriores, pois além dos motivos destacados, isso não combina com o histórico e as tradições daquele país.
Os aliados tinham o V Exército dos EUA a oeste e o VIII Exército Britânico a leste, ambos enquadrando tropas de seus países e de outros aliados. A FEB foi enquadrada pelo IV Corpo de Exército (IV CEx) do V Exército de Campanha (V Ex) dos EUA.
Após a conquista de Roma, o prosseguimento dos aliados na Itália visava a conquista de Bolonha, a fim de abrir o acesso ao norte da península, onde poderia impedir a retirada das forças inimigas para os Alpes, de modo a proteger o sul da Alemanha. O comando aliado tinha o propósito de chegar a Bolonha antes do Natal de 1944, mas a poderosa defesa alemã nos Apeninos conseguiu barrar a ofensiva anglo-americana em toda a frente, inclusive na que tocou à FEB. Após os insucessos de novembro e dezembro, as operações aliadas foram interrompidas pela chegada do rigoroso inverno europeu, só sendo retomadas em fevereiro de 1945.
Os pracinhas entraram em operação a partir de Livorno, onde começou o roteiro da FEB, destacado na FIGURA 1. As primeiras ações, em meados de setembro de 1944, tiveram como unidade base o 6º Regimento de Infantaria (Regimento Ipiranga de Caçapava-SP) e venceram posições de retardamento alemãs diante dos Apeninos, onde duas poderosas linhas sucessivas de defesa – a Linha Gótica e a Linha Gengis Cã – bloqueavam a progressão para o norte, respectivamente, em Monte Castelo e Castelnuovo e em Montese e Zoca. Nos Apeninos, ocorreram os combates mais sangrentos e gloriosos da FEB, entre novembro e abril de 1945, com a participação do 1º Regimento de Infantaria (Regimento Sampaio do Rio de Janeiro-RJ), 6º Regimento de Infantaria e 11º Regimento de Infantaria (Regimento Tiradentes de São João Del Rei-MG). Rompida a barreira dos Apeninos, a FEB entrou em aproveitamento do êxito, no vale do Rio Pó, para estabelecer contato com os aliados no sul da França. Nesse deslocamento, liderado pelo Esquadrão de Reconhecimento Mecanizado da FEB, foi bloqueada a retirada da 148ª Divisão Alemã, em Collechio-Fornovo. Em 28 de abril, a divisão alemã se rendeu e foram aprisionados cerca de vinte mil combatentes alemães e italianos. Foi a primeira vez na Itália que uma força da Wehrmacht de tal magnitude se rendeu aos Aliados.
Nos Montes Apeninos é que se travou a grande batalha da FEB. Muitos civis, inclusive escritores, desconhecem que batalhas duram semanas ou meses e são uma sucessão de combates com avanços, paradas temporárias e recuos. Monte Castelo era um dos pontos fortes no limite avançado da Linha Gótica e foi um dos duros combates para rompê-la, como será descrito a seguir.
6. Monte Castelo, triunfo da vontade e afirmação do valor
Entre 24 de novembro de 1944 e 21 de fevereiro de 1945, houve cinco ataques à região de Monte Castelo, que causaram 423 baixas às forças brasileiras e 1,5 mil ao inimigo. Os ataques realizados em novembro e dezembro de 1944 não tiveram êxito por vários motivos (FIGURA 2).
Os dois primeiros ataques, em 24 e 25 de novembro, foram realizados sob o comando norte-americano e com participação forças dos EUA e da FEB. O alemão demonstrou mais uma vez seu valor como combatente e a importância conferida à posição, pois a cada sucesso brasileiro ou americano, contra atacava e recuperava o terreno perdido. No ataque de 29 de novembro, sob comando da FEB, o Regimento Sampaio foi empregado antes de completar seu adestramento, tendo realizado uma desgastante e longa marcha noturna sob chuva forte, chegado à posição de ataque em cima da hora e iniciado a ação em jejum. Para agravar a situação, na noite de 28 de novembro, o alemão contra atacara em Belvedere-Mazzancana e desalojara a força norte-americana que protegeria o flanco do Regimento Sampaio, cujo ataque recebeu fogos de frente e de flanco.
O fracasso da ofensiva anglo-americana contra Bolonha, em toda a frente dos Apeninos, indicava a necessidade de uma parada tática e o início do inverno, que seria o mais rigoroso em décadas, aconselhava esperar o fim da estação para retomar operações de movimento. O comando aliado avaliou mal o valor defensivo do terreno, o poder de combate necessário para derrotar o inimigo e os efeitos das condições climáticas. As chuvas e a falta de teto impediam apoio aéreo e a lama restringia o apoio de blindados. A região montanhosa permitia a defesa com força reduzida, ainda mais por um exército aguerrido, equipado e experiente, reconhecido como o mais profissional do mundo. O general Mascarenhas de Morais, comandante da FEB, sempre alertou que o efetivo empregado nos quatro ataques sem êxito a Monte Castelo era insuficiente. No entanto, os reveses também se deveram, evidentemente, à nossa inexperiência e preparação incompleta. Essas deficiências foram superadas durante a paralisação das ações ofensivas de vulto, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945, quando as operações se resumiram aos confrontos entre pequenas frações, principalmente nas inúmeras patrulhas de combate e reconhecimento realizadas naquele inverno. A FEB se adestrou, de fato, no front e não em campos de instrução à retaguarda. Até então, atacar, recuar em ordem e permanecer no front sem ser substituída já fora um mérito.
Em meados de fevereiro de 1945, o comando aliado retomou a ofensiva sobre Bolonha, cabendo ao IV CEx a conquista da linha de alturas Monte de La Torraccia-Monte Castelo, para iniciar o rompimento da Linha Gótica em sua zona de ação. O IV CEx tinha recebido uma experiente divisão norte-americana, especializada em operações de montanha – a 10ª Divisão de Montanha (10ª Div Mth). Até então, a FEB atuara em Monte Castelo ao lado de forças do Exército dos EUA compostas, em grande parte, pela reunião de remanescentes de unidades de artilharia antiaérea e de outros apoios, reunidos na Task Force 45, após aquelas unidades serem transferidas para a França, haja vista a limitada atuação da Luftwaffe na Itália.
A narrativa a seguir tem como base o livro de UZÊDA (pág. 91). O ataque a Monte Castelo (MC) começaria por uma ação preliminar da 10ª Div Mth em 20 de fevereiro, sobre Belvedere-Mazzancana, onde iria criar um flanco na posição alemã, facilitando o avanço da FEB para conquistar MC (FIGURA 3). A força brasileira partiria de Mazzancana para MC às 05h30 de 21 de fevereiro, tendo a divisão americana em seu flanco esquerdo, retomando a progressão à mesma hora para conquistar La Torraccia. O comando do IV CEx acreditava poder apoiar, desde La Torraccia, o assalto a MC, mas a evolução do combate fez acontecer exatamente o contrário. Após a conquista de MC, a FEB prosseguiria para conquistar La Serra, ou seja, o ataque norte-americano iniciaria antes e terminaria antes, enquanto o brasileiro começaria depois e terminaria depois.
A FEB atacou MC com o Regimento Sampaio (RS), tendo um batalhão do Regimento Tiradentes (RT) à sua direita para conquistar Abetaia. O RS empregou o I batalhão (I-RS, em verde na figura) à esquerda, para conquistar Fornace e cota 875, ficando em condições de prosseguir até cota 930 (entre MC e cota 1036). O III batalhão (III-RS, em amarelo na figura) ia à direita, realizando o ataque principal para conquistar MC, e o II Batalhão (II-RS, em branco na figura) ficou em reserva. Após a conquista de MC, os três batalhões ficariam em condições de prosseguir para La Serra, particularmente o II-RS.
No final da tarde de 20 de fevereiro, a 10ª Div Mth conquistou Belvedere e Mazzancana, com o apoio aéreo do 1º Grupo de Aviação de Caça da Força Aérea Brasileira (o Senta a Púa). Assim, às 05h30 de 21 de fevereiro, após alguns entreveros com remanescentes alemães em Mazzancana, o Regimento Sampaio desembocou no ataque (FIGURA 4), tendo a 2ª Companhia de Fuzileiros (2ª Cia – Cap Ramalho) do I-RS se infiltrado antes do nascer do sol e da hora do ataque, surpreendendo a posição alemã e conquistado seu objetivo em Fornace, de onde passou a apoiar o III-RS, ataque principal do regimento, e a 3ª Cia (Cap Yedo Blauth) do seu batalhão, que vinha à sua esquerda para conquistar cota 875.
O III-RS ficou detido e a 3ª Cia do I-RS, que prosseguia para cota 875, recebeu fogos de sua esquerda, da região de cota 1027. A 10ª Div Mth deveria ter partido para cota 1036 às 05h30, mas um contra-ataque alemão a impediu de iniciar sua progressão simultaneamente com o I-RS. Em consequência, a cota 1027, que deveria estar de sua posse, ainda estava em mãos do inimigo. Assim, o comandante da 3ª Cia empregou um dos seus pelotões (Pel) de primeiro escalão (Ten Brandi) para eliminar a posição de 1027, o que foi conseguido com esforço. Esse contratempo levou à redução do ritmo de progressão da 3ª Cia, pois o Pel do Ten Brandi fora desviado do objetivo inicial, reduzindo o poder de combate empregado sobre a cota 875. O Cap Yedo empregou, então, o Pel reserva pela direita que, após um renhido combate, conquistou o objetivo.
Às 08h00, a situação era a seguinte:
- o III-RS, ataque principal a MC, estava detido nas encostas do monte;
- o II-RT estava acompanhando o III-RS, a meio caminho de seu objetivo – Abetaia;
- a 10ª Div Mth não ultrapassara a linha de partida, pois sofria um contra-ataque alemão;
- o I-RS, ataque secundário, estava progredindo com êxito e já conquistara a linha Fornace-cota 875, tendo conquistado também cota 1027, que antecedia a cota 1036, na zona de ação da 10ª Div Mth, após coordenar as ações com aquela divisão.
O comandante do I-RS percebeu a oportunidade de prosseguir sobre MC, uma vez que a única posição que o impedia de acessar o monte era a cota 1036, ainda posse do inimigo. Ele poderia empregar sua reserva, a 1ª Cia (Cap Everaldo), mas era necessário mantê-la em sua posição, pois se o contra-ataque alemão desalojasse a 10ª Div de Mth poderia incidir diretamente sobre o posto de comando do batalhão e envolveria suas Cia pela retaguarda, comprometendo todo o ataque. Assim, pediu ao comandante do RS (Cel Caiado) o reforço da 5ª Cia do II-RS, batalhão reserva do regimento, mas o Cel Caiado a negou, provavelmente, por ter considerado ser ainda cedo para empregar parte da reserva do regimento. Diante da negativa do comandante do regimento, o comandante do I-RS decidiu correr o risco e empregou sua 1ª Cia, determinando que ela deixasse apenas um Pel (Ten Adail) dando proteção ao posto de comando e à retaguarda do batalhão, para a eventualidade do contra-ataque alemão à 10ª Div Mth ter êxito.
A 1ª Cia progrediu com dois pelotões de fuzileiros, ultrapassando a 3ª Cia, e atacou cota 1036, coordenando com a 10ª Div Mth, pois ela estava na zona de ação do vizinho (FIGURA 5). O pelotão do Ten Aquino conquistou cota 1036 e lançou-se sobre cota 930, entre a anterior e o MC. A artilharia da FEB intensificou seus fogos que, auxiliados pelos fogos de flanco, das posições conquistadas em cota 1027 e 1036, lograram deter o contra-ataque alemão. Como resultado dessas ações, a 10ª Div Mth pôde reiniciar seu ataque a Monte de La Torraccia já bem à frente, a partir de cota 1036, e o III-RS retomou sua progressão, provavelmente, por que os alemães em MC tenham deslocado parte do dispositivo para fazer frente ao I-RS, que ameaçava seu flanco direito. Eis o ataque secundário cumprindo o seu papel doutrinário de facilitar a progressão do ataque principal.
Diante do êxito do ataque secundário, o Cel Caiado atualizou seu estudo de situação e decidiu reforçar o I-RS com a 5ª Cia do II-RS.
Entre 13h30 e 15h00, a 1ª e a 3ª Cia do I-RS e a 5ª Cia do II-RS, recebida em reforço, cerraram para a região entre cota 1036 e MC (cota 930), a fim de tomar o dispositivo para assaltar o monte (FIGURA 6). O III-RS, ataque principal, também progredia com maior impulsão e tinha o II-RT à sua direita avançando para Abetaia e impedindo que o inimigo batesse o flanco do III-RS. Às 15h00, o I-RS estava com suas Cia em condições de investir sobre MC, mas ocorreu um fato insólito. Uma das Cia da unidade da 10ª Div Mth, que iniciava seu deslocamento para cota 1036, se perdeu e entrou na zona de ação da 2ª Cia do I-RS em Fornace, inclusive, atacando uma posição dessa subunidade e matando um soldado brasileiro por engano. A Cia norte-americana continuou e se colocou entre as três Cia que se preparavam para flanquear o monte, e o próprio MC. Houve um retardo de uma hora até o problema ser resolvido com a saída da tropa americana de zona de ação do batalhão. O alemão teve, por isso, a possibilidade de retirar do MC parte do efetivo que o defendia e algum armamento pesado, ciente de que a posição não poderia mais ser mantida.
Por volta das 16h00, após uma intensificação vigorosa dos fogos da artilharia da FEB, martelando o MC, o I-RS assaltou a posição e por volta das 17h30, chegavam ao objetivo esse batalhão e o III-RS, havendo até hoje uma disputa pelo troféu de ter sido o primeiro a chegar àquele que se tornara uma questão de honra para a FEB (FIGURA 7).
A 10ª Div Mth só conquistou La Torraccia no dia seguinte, tendo contado com o apoio de fogo da FEB realizado de MC. O II-RS atacou e conquistou La Serra em 24 de fevereiro.
O General Eisenhower pareceu antever as dificuldades das operações na Itália, ao considerar a topografia e o valor do soldado alemão. Antes mesmo de existir a FEB, ele assim escreveu em carta ao General Marshall, Chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA (ATKINSON): “até o italiano, defendendo um país montanhoso, é muito difícil de expulsar, e o alemão é um problema real. A luta na Tunísia parece oferecer uma boa indicação do que podemos esperar quando encontramos o alemão em posições defensivas (…) onde o terreno é favorável a ele”.
A conquista do Monte Castelo e La Serra foi o triunfo da vontade e a afirmação do valor do soldado e da gente brasileira, inspirando a confiança do comando do IV CEx, que se consolidou com as vitórias de Castelnuovo, Montese e Fornovo em março e abril de 1945.
7. Montese – a mais sangrenta vitória
Em Montese, a FEB lutou o mais sangrento combate do Exército Brasileiro em guerra externa desde a Guerra do Paraguai, realizando uma operação digna dos mais relevantes elogios. O combate começou em 14 de abril, mas só no dia seguinte foi conquistada a famosa torre da vila, pelo Pel do Ten Iporan, e os alemães começaram a ser varridos da localidade. A consolidação, no entanto, concretizou-se em 16 de abril. Foram 426 irmãos mortos ou feridos e 453 alemães aprisionados. Em homenagem aos “libertadores”, como a FEB ficou conhecida, uma Praça de Montese ganhou o nome Piazza Brasile. Egydio Squeff, correspondente de guerra de O Globo, assim escreveu em 16 de abril de 1945:
“Montese já não existe. Nenhuma casa intacta – podemos avaliar o efeito terrível dos disparos de artilharia. Casas destroçadas, as manchas de sangue assinalam a violência da batalha com que os alemães a defenderam. Portas destroçadas, leitos vazios, cômodos em desordem. Desde que começou a batalha a população abandonou a cidade. Os brasileiros venceram os nazistas, entre os quais se achavam muitos prussianos, num combate épico de ruas, de casa em casa, – ficaram mortos e feridos muitos combatentes nossos.”
Montese e Zoca faziam parte da Linha Gengis Cã na zona de ação da FEB. O rompimento dessa linha de defesa alemã consolidaria a ruptura da cadeia dos Apeninos, garantindo o flanco das forças do V Ex EUA que investiam sobre Bolonha, objetivo principal da ofensiva iniciada em 20 de fevereiro. A partir de Montese e Zoca, a FEB prosseguiria no vale do Rio Pó para fazer junção com os aliados na França e, ao mesmo tempo, teria condições de impedir a eventual retirada de forças alemãs para os Alpes, onde poderiam apresentar nova defesa como, de fato, aconteceu.
Foi o general Mascarenhas de Moraes quem propôs à FEB o desafio de receber a missão de conquistar Montese, obtendo o concorde do comandante IV CEx, general Crittenberger. A FEB faria a segurança do flanco esquerdo da 10ª Div Mth.
Montese é uma vila situada mais a esquerda de toda uma linha de alturas que recebeu o mesmo nome. Ao 11º RI (Regimento Tiradentes – RT) coube a missão de conquistar essa linha de alturas e decidiu empregar seus batalhões conforme apresentado na FIGURA 8: o III-RT ao centro, no ataque principal para conquistar Serreto-Paravento-Montelo; o II-RT à direita; e o I-RT à esquerda para conquistar a Vila de Montese (O1) e cota 726 (O2). Portanto, a vila era um objetivo de um dos ataques secundários do RT. No entanto, foi nela a luta mais acirrada e sangrenta e, pela primeira vez, a FEB envolveu-se em um combate urbano, cujas características são especiais, tais as dificuldades envolvidas. Sua conquista foi feita pela 2ª Cia do I-RT, como é mostrado resumidamente na FIGURA 8. O detalhadamente do ataque a Montese será feito a seguir e tem por base a narração de KLEIN (Cap. 6).
O I-RT atacou às 09h35 de 14 de abril com a 2ª Cia (Cap Sydney) no ataque principal para conquistar a Vila de Montese (O1) e cota 726 (O2); a 1ª Cia no ataque secundário, protegendo o flanco esquerdo do batalhão; e a 3ª Cia em reserva (FIGURA 9).
A 2ª Cia (FIGURA 10) empregou o 1º Pel (2º Sgt Nunes) à esquerda para conquistar cota 759, progredindo por Montaurígola, uma lombada que dominava ameaçadoramente a direção de ataque do 3º Pel (Ten Iporan), ao centro, que tinha à sua direita o 2º Pel (Ten Rauen), ambos dirigindo-se à Vila de Montese. Por volta das 11h00, o 2º Pel topou com um campo de minas, sofrendo pesadas baixas por ficar, também, sob fogos de metralhadoras, morteiros e artilharia, e permaneceu detido por mais de três horas. O Ten Rauen tentou neutralizar uma posição de metralhadora que causava baixas no Pel e foi ferido mortalmente com um tiro na cabeça.
Às 13h30, o 1º Pel ainda não havia conquistado a cota 759, o que tornava muito arriscada a progressão do 3º Pel ao centro, pois receberia fogos de flanco e da retaguarda. A ordem foi mantida e o Ten Iporan prosseguiu o movimento, lançando o 3º grupo de combate (3º GC), do 3º Sgt Racioppi, em primeiro escalão, para não concentrar um grande efetivo à frente e oferecer alvo compensador ao inimigo em cota 759. Os fogos da artilharia e morteiro alemães haviam cortado as linhas telefônicas, que eram estendidas nos ataques em região montanhosa, pois as comunicações com rádio eram precárias.
Após um curto deslocamento, o GC do Sgt Racioppi ficou detido em um campo de minas. O Ten Iporan foi à frente e verificou não ser um campo minado, mas sim de armadilhas improvisadas, o que facilitou sua remoção e o reinício do deslocamento. O Pel seguia o GC do Sgt Racioppi com o 2º GC (3º Sgt Mathias), o grupo de comando e o 1º GC (3º Sgt Rubens) à retaguarda. A cerca de 150 m da orla da vila, o 3º GC ficou detido por fogos vindos da localidade. O Ten mandou o 2º GC manobrar pela esquerda do que estava detido, apoiado pelos fogos deste último, e mandou o 1º GC cerrar à frente.
Neste momento a situação era a seguinte:
- o 3º Pel tinha perdido a ligação com a Cia, pois os cabos telefônicos estavam rompidos e os rádios estavam se comunicação;
- o Ten Iporan não sabia que o Pel do Ten Rauen estava detido mais à retaguarda e que estava avançando sozinho sobre Montese;
- o Ten Iporan enviou um mensageiro para informar ao Cmt 2ª Cia a posição e a situação do Pel, próximo à vila; e, nesse ínterim,
- o 1º Pel Fzo conquistou a cota 759 e, com isso, a 2ª Cia passava a ter uma reserva constituída por esse Pel, e o Ten Iporan já tinha a sua retaguarda protegida.
Porém, o 2º GC do 3º Pel também foi detido pelo inimigo próximo à orla da vila (FIGURA 11). O Ten Iporan empregou seu último GC, manobrando mais pela esquerda, de modo a aproveitar a proteção do terreno arado que formava “degraus” até próximo ao casario. O 2º Sgt Nestor da Silva1, Adjunto do Pel, ficou coordenando a base de fogos realizada pelos dois GC que estavam detidos, a fim de cobrir a progressão do 1º GC e do Cmt Pel.
O 1º GC progrediu com certa facilidade até próximo à orla da vila, mas a resistência inimiga, com fogos ajustados, retardava seu avanço, o que levou o Ten a impulsionar pessoalmente o ataque como último recurso. Quando se encontravam a cerca de quarenta metros das primeiras casas, os dois Grupos de Obuses que apoiavam o 11º RI, sem conhecimento da situação do Pel, desencadearam fortes concentrações sobre aquela área. O alemão abrigou-se no fundo de suas trincheiras, para proteger-se dos fogos, e não percebeu que o GC brasileiro, buscando abrigo nas edificações, passou por entre suas posições, aproveitando-se da ação do inimigo de se abrigar no fundo das tocas. Ao saírem dos abrigos, após a suspensão dos fogos de artilharia, os tedescos foram surpreendidos pelos brasileiros à sua retaguarda e postos fora de combate.
Às 15h30, o 3º Pel entrou em Montese e o Cap Cmt 2ª Cia mandou o 1º Pel do Sgt Leôncio se reunir ao Ten Iporan para auxiliar nos combates na localidade. Ao transpor a crista de Montaurígola, descendo da cota 759, a artilharia alemã desencadeou fogos dobre o Pel, causando dezenove baixas e forçando o seu retorno à posição anterior.
O 2º Sgt Nestor, adjunto do Pel, com o 3º GC, e o Ten Iporan, com os demais grupos, iniciaram a limpeza das orlas da vila, para consolidar a vitória parcial e preparar-se para rechaçar algum contra-ataque, como era praxe ser feito pelo alemão sempre que perdia uma posição. O 1º e o 2º GC foram reunidos no centro do dispositivo, mas as ações do 3º GC demoraram até o final da tarde, destacando-se que seu comandante, o 3º Sgt Racioppi, permaneceu combatendo mesmo ferido.
Por volta das 18h00, Montese estava nas mãos da FEB e, às 19h00, chegou o Cmt Cia, trazendo os remanescentes do Pel do Ten Rauen e dois Pel (Ten Nunes e Ten Granja) da 3ª Cia, antes na reserva. Começaram, então, as operações de limpeza da vila, ou seja, o combate casa a casa. Durante toda a noite artilharia, morteiros e algumas resistências alemãs ainda não dominadas engajaram as forças brasileiras no casario.
Em 15 de abril pela manhã, o Pel do Ten Granja ocupou a cota 726 (O2), concretizando o cumprimento da missão pelo I-RT (FIGURA 12). Porém, as operações de combate urbano prosseguiram até o dia 16 de abril, sob o maciço fogo da artilharia inimiga. A 3ª Cia estabeleceu posições defensivas na cota 759 (onde antes estava o 1º Pel da 2ª Cia), para barrar um sempre possível contra-ataque alemão.
Montese demonstrou o amadurecimento operacional da FEB como reconheceu o general Crittenberger, Cmt IV CEx, ao se referir de maneira elogiosa à brilhante vitória de nossas forças, as únicas a conquistar os objetivos impostos para 14 de abril: “na jornada de ontem, só os brasileiros mereceram minhas irrestritas congratulações; com o brilho de seu feito e seu espírito ofensivo, a divisão brasileira está em condições de ensinar às outras como se conquista uma cidade” (PORTALFEB).
8. O legado da FEB para o Exército e o Brasil de hoje
A FEB foi a semente da ascensão do Brasil na América e no mundo. O envolvimento na 2ª Guerra Mundial mostrou que o Brasil precisava se tornar uma potência para garantir sua segurança e que eram necessários planejamentos estratégicos de governo, então inexistentes, para vencer os obstáculos decorrentes da opção de ser forte. O Exército, inspirado e motivado por sua participação na guerra foi um dos principais vetores do Projeto Brasil Potência, ainda inacabado. Na guerra, se forjou uma liderança atuante, com visão de grandeza e compromisso irrestrito com a Nação, cuja experiência e ensinamentos se disseminaram por todos os setores do país, inclusive nas lideranças civis.
No retorno, foi corrigida a incoerência política de o país ter combatido regimes totalitários na Europa e viver sob um regime ditatorial. Getúlio Vargas caiu sem nenhuma reação popular, a despeito da real liderança que ainda exercia no Brasil, caracterizando a opção da sociedade pela democracia. O espírito democrático fincou raízes, fortalecido na convivência com os aliados, e se ramificou em todo o país. Os desafios à democracia ainda seriam vividos ao longo das décadas posteriores, consequências das disputas ideológicas na Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética.
A opção democrática e a convivência com as potências ocidentais na 2ª Guerra Mundial levaram ao alinhamento com o ocidente na Guerra Fria, com reflexos nos embates políticos internos, agravados pela fragilidade das instituições políticas até o final dos anos 1970. Os anos 1960 e 1970 foram decisivos, mas a opção pela democracia ficou patente no apoio da Nação ao regime militar contra as tentativas da esquerda armada revolucionária de impor o regime socialista no Brasil, financiadas e orientadas por países totalitários socialistas como a União Soviética, Cuba e China. Os presidentes militares sempre reconheceram que o país vivia um regime de exceção, autoritário e não totalitário, e tinham o propósito de redemocratizar o regime, após a neutralização da luta armada, como de fato ocorreu. A influência das potências ocidentais, particularmente dos EUA, cresceu com a participação do Brasil na guerra e ainda hoje é muito forte nos campos econômico, científico-tecnológico, industrial e cultural, embora venha perdendo espaços para outros atores desde o final do século passado.
A FEB projetou o país mundialmente, pois o Brasil foi um dos países aliados convidados a compor as forças de ocupação na Áustria após a rendição alemã. Quando a Organização das Nações Unidas (ONU) discutiu a composição do seu Conselho de Segurança, na Conferência de Dumbarton Oaks em 1944, os EUA propuseram o Brasil para constituí-lo como membro permanente, mas o Reino Unido foi contra e conseguiu fazer prevalecer a candidatura da França. A partir do conflito, o Brasil passou a compor diversas missões de paz da ONU e a ser um interlocutor cada vez mais consultado em diversos temas da agenda global. No tocante à América do Sul, foi assumindo uma posição de destaque, em comparação com a Argentina, fruto de nossa firme posição adotada no conflito, ao contrário do vizinho, cuja postura fora sempre simpática ao Eixo, só a mudando nos últimos meses da guerra quando o desfecho já estava definido.
LIVRO RECOMENDADO:
An Army at Dawn: The War in North Africa, 1942-1943, Volume One of the Liberation Trilogy
|
Logo após o retorno da FEB, foi criada a Escola Superior de Guerra, primeiro instituto de altos estudos estratégicos do país, cujos métodos de planejamento serviram de base para vários planos e programas de desenvolvimento dos governos a partir dos anos 1950. O país se conscientizara de que precisava se tornar uma potência mundial, pois não poderia ser surpreendido mais uma vez despreparado para se defender como ocorrera ao ser atacado em seu litoral. A projeção internacional estimulou o Projeto Brasil Potência, mais uma intenção do que realização de fato, mas que mobilizou todas as expressões do poder em prol do desenvolvimento nacional, visão que prevaleceu até o final dos anos 1980.
A participação do Exército na guerra e seus feitos no TO italiano fortaleceram a credibilidade e a reputação da instituição perante a Nação, que a ele recorreu em momentos decisivos da história política do Brasil até o início dos anos 1990. O Exército se modernizou e reformou vários de seus setores, tendo desfrutado de um poder de militar terrestre diferenciado na América do Sul, durante algum tempo, embora hoje esteja em condições deploráveis em termos de equipamento e adestramento, não por sua culpa, mas pela baixa prioridade do setor de defesa, agravada desde o início dos anos 1990.
A autoestima, coesão e civismo saíram robustecidos do conflito e foram fatores de motivação para o desenvolvimento nacional, que se concretizou com os significativos avanços em setores da indústria, agropecuária, pesquisa, ciência e tecnologia e serviços.
A FEB também contribuiu para o processo de emancipação da mulher, graças à relevante participação das enfermeiras na Itália, considerando que, à época, eram poucas as atividades profissionais onde as mulheres encontravam espaços. A sua ida à guerra não era bem vista pelas autoridades, ainda que fosse à retaguarda, compondo o Serviço de Saúde, e foi desencorajada oficial e extraoficialmente. Houve tentativas de boicote, inclusive de mulheres influentes na política nacional. As enfermeiras da FEB responderam escrevendo uma história de inestimável valor. Vários livros narram episódios em que se destacam o desprendimento, a competência e a abnegação das brasileiras que serviram à Pátria tão longe. Elas estão entre as precursoras da emancipação das mulheres no Brasil, com destaque, pois demonstraram, com sua capacidade, a possibilidade de aproveitamento do sexo feminino em distintas atividades, inclusive em condições desafiadoras e repletas de difíceis obstáculos.
9. Finalizando
A FEB permaneceu em combate no front, sem substituição, durante 239 dias, desde seu batismo de fogo em 16 de setembro de 1944, até a vitória final em 8 de maio de 1945. Poucas divisões do Exército dos EUA, desde o norte da África até à Europa, entre novembro de 1943 e maio de 1945, estiveram ininterruptamente mais dias nas frentes de combate do que a FEB.
O Brasil não estava preparado para uma guerra, mas lavar a honra da Pátria pedia mais do que apenas ceder bases aeronavais aos aliados, como foi feito no nordeste para apoiar a invasão do norte da África em 1942-1943. Por ser apenas uma divisão, a essência da história da FEB teria de ser o combate das pequenas frações, companhias e batalhões. Soldados, cabos, sargentos, tenentes, capitães e comandantes de unidades venceram o maior desafio do guerreiro – enfrentar o fogo inimigo com equilíbrio emocional, competência e coragem. É preciso conhecer doutrina, tática e História Militar para avaliar a FEB sem cair na servidão intelectual de aceitar, sem questionar, opiniões das fontes de metrópoles culturais. As do lado aliado, algumas vezes, dissimularam erros de seus comandos e as do lado ariano, da mesma forma, omitiram feitos de forças mestiças nos reveses sofridos. Ambas, muitas vezes revelam preconceito.
LIVRO RECOMENDADO:
|
Amor à Pátria, sentimento do dever e camaradagem, forjados em riscos comuns uniram os pracinhas, impondo-se às diferenças e preconceitos de cor, credo, classe social e ideologia. A FEB deu ao Brasil a visão de sua grandeza e da posição que precisava ocupar no contexto global. Porém, infelizmente, essa é uma história desconhecida dos brasileiros.
“A história também é fiadora do projeto de uma nação que se pretende grande, perene e respeitada. É o selo desse compromisso transmitido de geração a geração e fortalece a fraternidade entre os cidadãos de um país. Se a história mantém unida a nação, os heróis que conduziram o país em momentos decisivos são os seus protagonistas. Eles se tornam merecedores da gratidão e respeito do povo por tomarem atitudes corajosas e decisivas e assumirem responsabilidades com sacrifício pessoal, em prol da nação, diante de situações extremas. – Pátria, história e heróis são símbolos, sínteses e imagens de princípios e valores morais e éticos inspiradores de nobres ideais. Ao enaltecê-los, uma nação com vocação de grandeza propõe referenciais de excelência que motivam a busca da perfeição e torna o [seu] povo combativo, disciplinado, altivo, empreendedor e unido. Ou seja, constrói a própria grandeza” (PAIVA).
A FEB é mais cultuada na Itália do que no Brasil. Em todos os locais onde a FEB combateu, o italiano ergueu um monumento ou lançou uma placa em homenagem ao soldado brasileiro libertador.
O Padre Antônio Vieira (1608-1697) certa vez disse: “Se servistes à Pátria e ela vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis e ela o que costuma”.
Nota do autor
Este artigo contém trechos de outros, de minha autoria e de palestras sobre a FEB, ministradas em diversas oportunidades.
Referências
AMBROSE, Stephen E. The Supreme Commander: The war years of Dwight D. Eisenhower. Anchor Books, 2012.
ATKINSON, Rick. An army at dawn. New York City – NY. Henry Holt and Co, 2007.
KLEIN, Klaus Erich. FEB – II Guerra Mundial. Conselho Nacional de Oficiais R2.
PAIVA, Luiz Eduardo Rocha. Lei Moral, Liberdade e História: tripé da grandeza. Revista do Clube Militar, Nº 442 (agosto-setembro-outubro/2011).
PORTALFEB. http://www.portalfeb.com.br/longa-jornada-acoes-em-combate-montese/. (acesso em 23-06-2015).
UZÊDA, Olívio Gondim de. Crônicas de Guerra. Alagoas. Imprensa Oficial, 1947.
Notas
1 Hoje coronel reformado, com 97 anos, pai do coronel de cavalaria Nestor (Turma AMAN 1972). Foi promovido a 2º tenente durante o ataque a Montese e assumiu o comando do 2º Pel, substituindo o tenente Rauen. Pela sua bravura nesse ataque, recebeu a Cruz de Combate de 1ª Classe.
*Luiz Eduardo Rocha Paiva é general-de-brigada , aspirante a oficial pela AMAN em 1973 e promovido a general-de-brigada 2003. Entre seus muitos altos estudos, possui doutorado, mestrado e pós-graduação pela ECEME, ESAO e FGV. Estagiou na 101ª Air Assault Division, do Exército dos EUA, foi Observador Militar da ONU em El Salvador e fez o Curso de Estado-Maior na Escola Superior de Guerra do Exército Argentino. Comandou o 5º Batalhão de Infantaria Leve (Regimento Itororó), em Lorena/SP, quando cumpriu missão de pacificação em conflito entre o MST e fazendeiros no sul do Pará, em 1998. Foi Chefe da Assessoria Especial do Gabinete do Comandante do Exército, comandou a ECEME e foi Secretário-Geral do Exército. É Professor Emérito da ECEME, membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil e colaborador do Centro de Estudos Estratégicos do Exército. Recebeu diversas condecorações e medalhas nacionais e estrangeiras e publica artigos sobre temas políticos e estratégicos em jornais e revistas nacionais e estrangeiras.
Excelente post! Meu pai foi militar, fuzileiro e depois bombeiro, vim de uma infância onde cantávamos hinos e canções quase que todos os dias na fila da escola, aprendemos a valorizar a pátria desde criança, e meus amigos também carregaram isso em suas vidas, mas hoje, infelizmente houve uma doutrinação, ensinamentos opostos, e agora temos uma geração que só valoriza a bandeira nacional para torcer por um time, que nem honra sua camisa.
Exatamente Allan, mas aos poucos penso que vamos mudando isso. É trabalho de formiguinha. Muito obrigado, forte abraço!
Bem detalhado, rico em fatos e relatos. Digno de ficar nos registros históricos como uma obra de referência à juventude brasileira.
O artigo é realmente excelente, José. Muito obrigado pelo comentário e por nos acompanhar. Forte abraço!
Excelente Matéria, Por favor, se possível acrescente a este Texto, os Fatos ocorridos e a Movimentação Tática com relação ao cerco e a captura da Divisão da Wehrmacht , Muito Obrigado e um Abraço.
Olá Marco, vamos avaliar uma matéria com sua sugestão, que é muito boa. Muito obrigado e um abraço!
Cada vez mais mim surpreendo com os artigos publicados no Velho General, simplesmente excelente; o que mais fico triste é que nossos Heróis são mais reconhecidos fora do Brasil de que pelo seu próprio povo, um FA das margens do rio Tejo / Portugal.
Obrigado Enoque! Realmente, é preciso divulgar mais a FEB no próprio Brasil, aos poucos vamos fazendo isso. Grato por comentar, forte abraço!
Sensacional.
Olívio Gondim de Uzêda, meu bizavô, escreveu o “Crônicas de Guerra” que está citado na sua referência bibliográfica (Ele foi Major, voltou tenente-coronel e ao falecer, general de brigada).
Interessante, Guilherme. Orgulho de seu avô! Grato por comentar.
Um abraço, Albert.