Por Paulo Roberto da Silva Gomes Filho* |
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A Turquia e a Síria dividem uma fronteira de 822 Km, um pouco menor do que a fronteira entre o Brasil e o Uruguai. A linha foi criada em 1918 quando, derrotados na I Guerra Mundial, os turcos do antigo Império Otomano perderam para a França o território que viria a se tornar a Síria. É por essa fronteira que a Turquia recebeu em seu território boa parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil na Síria, iniciada em 2011. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), mais de 60% de todos os refugiados da guerra civil na Síria estão na Turquia. As consequências políticas, militares, econômicas e sociais desse fluxo migratório são facilmente imagináveis.
Na confusão de interesses envolvidos no conflito sírio, nem sempre grupos armados e exércitos que combatem juntos possuem os mesmos objetivos. Mas, os turcos sempre se posicionaram contra o governo sírio de Bashar al-Assad, apoiando grupos contrários ao governo. Até outubro do ano passado, esse era um apoio indireto. A partir daquele momento, entretanto, especialmente na região de Idlib, no noroeste da Síria, as tropas dos dois países passaram a se enfrentar diretamente. E as consequências têm sido uma tragédia humanitária ainda maior na região.
Outubro do ano passado marcou os acontecimentos na Síria porque os Estados Unidos, um ator fundamental no desenrolar dos acontecimentos, que até aquele momento atuava fortemente no enfrentamento de grupos terroristas, por decisão do Presidente Trump, reduziu significativamente a sua presença militar na Síria. A Rússia, por sua vez, outro ator fundamental no conflito, é responsável pela manutenção de Bashar Al-Assad no poder. Seu apoio econômico e militar ao regime garantiu a situação atual na qual o governo sírio recuperou o controle sobre a maior parte do país.
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A retirada do grosso das tropas norte-americanas da Síria possibilitou um engajamento maior dos turcos no conflito. As forças militares do país tentam implementar a ideia de seu presidente, Recep Erdogan, de criação de uma zona de segurança, ao longo da fronteira turco-síria, de 30 km de profundidade, para onde planeja repatriar a maior parte dos milhões de refugiados sírios que estão em seu país. Na região nordeste da fronteira, a operação foi relativamente bem sucedida. Já na porção noroeste, na província de Idlib, as coisas se complicaram.
Ocorre que os sírios, decisivamente apoiados pelos russos, decidiram recuperar o controle sobre todo o território do país, especialmente em Idlib. As forças sírias atacaram posições turcas no início deste mês de fevereiro. A ofensiva redundou em baixas de ambos os exércitos. Mas o resultado mais visível do recrudescimento do conflito foi o repentino e significativo aumento do número de pessoas que fugiram da área. Cerca de setecentos mil já saíram de Idlib desde dezembro. Este é o maior volume de deslocados em um período tão curto de tempo nos quase dez anos de conflito.
Ou seja, a ação militar turca havia sido planejada para tentar dar uma solução para os mais de 3,5 milhões de refugiados, mas, ao contrário, está piorando significativamente a situação, na medida em que, ao reverso do planejado, agravou-se a situação humanitária.
Para tentar reverter a situação, os turcos podem optar por uma escalada militar na região, aumentando a presença de tropas para garantir a criação da zona de segurança. Mas isto, além de significar um enorme custo econômico, esbarra no poderio militar russo que apoia os sírios. Os russos controlam o espaço aéreo na área e, com isso, uma grande ofensiva turca contra os sírios está praticamente descartada.
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Assim, é fundamental o esforço diplomático de parte a parte. Russos e turcos sempre estiveram em lados opostos no conflito da Síria. Mas, apesar disso, os presidentes Erdogan e Putin desenvolveram um diálogo pessoal e próximo. A recente aquisição, pelos turcos, das baterias antiaéreas russas S400, além da declaração de que os dois países mantêm uma “parceria estratégica” são comprovações desse novo nível de relacionamento. No momento, ambos os lados voltam a negociar, cada um defendendo seus próprios interesses. Os russos, pregando o desarmamento dos grupos rebeldes que enfrentam o presidente sírio e os turcos, exigindo a criação de uma área segura na fronteira para onde possam ser enviados os milhões de sírios que estão na Turquia.
Há ainda, um aspecto a destacar em toda essa crise. Os EUA, que sempre foram um ator fundamental na região, retiraram-se e não mais são focados pelas luzes da ribalta. Esta distância é uma novidade na geopolítica da região. Trata-se de um vácuo que enfraquece a liderança norte-americana, pois fragiliza a confiança de aliados na perenidade do apoio da superpotência e dá margem para o surgimento de novos protagonistas, como a própria Turquia e a Rússia, que ganha destaque passando a ser a única potência extrarregional com liberdade para atuar influenciando os destinos do conflito.
*Paulo Roberto da Silva Gomes Filho é Coronel de Cavalaria do Exército Brasileiro. Foi declarado aspirante a oficial pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1990. É especialista em Direito Internacional dos Conflitos Armados pela Escola Superior de Guerra (ESG) e em História Militar pela Universidade do Sul de Santa Catarina; possui mestrados em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) e em Defesa e Estratégia pela Universidade Nacional de Defesa, em Pequim, China. Foi instrutor da AMAN, da EsAO e da ECEME. Comandou o 11º RC Mec sediado em Ponta Porã/MS. É autor de diversos artigos sobre defesa e geopolítica e atualmente exerce a função de assistente do Comandante de Operações Terrestres, além de ser o gerente do Projeto Combatente Brasileiro (COBRA). E-mail: paulofilho.gomes@eb.mil.br.