Por Robinson Farinazzo* |
Em junho de 1967 a Marinha dos Estados Unidos (US Navy) fora investida de pesadas responsabilidades no Teatro de Operações Norte Vietnamita. Parte das operações postas sob seu encargo consistiam em missões do tipo BDA (Battle Damage Evaluation, Avaliação de Danos pós Batalha) conduzidas pelos enormes bombardeiros nucleares supersônicos North American RA-5C Vigilante (Figura 1) convertidos em aeronaves de reconhecimento eletrônico e fotográfico. É aqui que começa esta epopeia.
O Vigilante não era um avião comum, pois, pesando 28,6 t, com 23,3 m de comprimento e 16,1 m de envergadura, foi a maior e mais pesada aeronave que já operou regularmente num porta-aviões da US Navy. Tinha duas turbinas tão potentes que, quando decolava de bordo, era ouvido mesmo nas cobertas mais distantes do convoo. Sua complexa manutenção exigia vinte horas de trabalho em hangar para cada hora de voo. Acresça–se a isto o fato de que não possuía leme de cauda, nem ailerons, o que tornava a sua pilotagem para lá de desconfortável para alguns aviadores. Mas era um bom avião.
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RA-5C Vigilante Units in Combat
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As missões de Battle Damage Evaluation estavam entre as mais arriscadas da Guerra do Vietnã, pois consistiam em fotografar os alvos já bombardeados em território inimigo por outras aeronaves da Marinha e da Força Aérea. Acontece que a operação era feita sem escolta, e os artilheiros vietnamitas já estavam em alerta, pois sabiam que após a chuva de bombas vinham as aeronaves de BDA. Dezoito Vigilantes foram perdidos assim.
Sabedora das exigências operacionais que incidiriam sobre seus pilotos, a US Navy esmerou-se em seu treinamento. As tripulações (o piloto e o RAN, o oficial que acumulava as funções de reconhecimento e navegação, Reconnaissance Attack Navigator) passavam meses navegando a baixa altura na velocidade de 480 nós, fotografando instalações, pontes e bases no meio oeste americano. O coroamento consistia no treinamento de FCLP (Night Field Carrier Landing Practice, Treinamento para pouso à bordo noturno realizado em pista terrestre). Esta manobra consiste em toque e arremetida noite afora numa pista em terra firme com todas as sinalizações, luzes e marcas de pista encontradas num convoo, incluindo o espelho de pouso. Contava também com a presença de um LSO (Landing Signal Officer, Oficial Sinalizador de Pouso), para avaliar o desempenho dos pilotos.
Na aprazível noite de verão de 14 de junho de 1967, na Base Aeronaval de Sanford, no estado da Flórida, nada menos que seis aeronaves RA-5C dividiam-se entre a pista de taxi, perna do vento, perna base, final, perna contra o vento e perna do través ao redor da pista 27-09. O vento era calmo, temperatura 29o C, CAVOK.
Às 23h00, o RA-5C Bureau Number 149314, recém saído de um PAR (Program Aircraft Rework, uma mescla de nossos PROGEM com ALTERNAV), pilotado pelo Lieutenant Commander (LCDR, Capitão de Corveta) Butler e tendo como RAN o ENS (Ensign/Guarda Marinha) John Barry Smith, após realizar reabastecimento quente com 7.000 lb de combustível JP-4, alinhou com a RWY 27 e decolou para a primeira das seis séries de toques e arremetidas programadas para aquela noite.
A regra do jogo consistia em decolar com flap 10, subir curvando para 600 pés AGL, e, ingressando na perna do vento com não mais que uma milha de afastamento do eixo da pista, girar base, gear down, full flaps, “enquadrar” o espelho e vir para o pouso, atento as recomendações do LSO. Então tocar dentro dos limites assinalados para convoo, decolar de novo com flaps 10, gear up e reiniciar a sequência. Tudo coordenado com a Torre e as outras cinco aeronaves gravitando no circuito de tráfego.
Esta simples manobra consumia 1.000 libras de JP-4. Tudo correu bem na primeira passada do 314, não tendo o LSO que fazer correções de monta e o piloto arremeteu sem precisar fazer uso do afterburner, atingindo 600 pés e reingressando na perna do vento. Girou base e ingressou na final com 4.800 lb, tocou a pista e arremeteu conforme previsto. Já no ar, o LCDR Butler constatou a parada do motor direito, e, sabendo que estava baixo, lento, “sujo” e pesado, instantaneamente ordenou a ejeção do navegador.
Cabe aqui uma explicação crucial para entendimento do caso. Os assentos ejetáveis em uso no RA-5C eram os extremamente confiáveis North American HS-1 (Figura 2) e podiam ser acionados de duas maneiras: puxando a cortina acima da cabeça do piloto ou agarrando os punhos laterais. O RAN Smith comandou o seu puxando a cortina, e antes que atingisse o solo com seu paraquedas, o avião jazia numa bola de fogo na lateral da pista, a trinta metros de onde o afortunado navegador aterrou. O piloto não teve tanta sorte, pois sua ejeção provavelmente deve ter se iniciado enquanto a aeronave efetuava um roll em voo já em stall para o lado do motor apagado, e ele foi lançado horizontalmente, ou, na pior das hipóteses, obliquamente em direção ao solo. Acrescido da baixa altura em que se encontrava em relação ao terreno, temos uma equação fatal.
Ele morreu no local e deixou cinco filhos menores.
O relatório do acidente concluiu que o motor direito apagou devido a ingestão de F.O.D. (Foreign Object Damage, Dano por Objeto Estranho), ocorrido quando uma braçadeira mal ajustada se soltou e foi sugada pela turbina. Butler poderia ter soltado o manche e usado o punho lateral para ejetar? Sim, poderia, e talvez isto tivesse salvo sua vida, porque ele o teria feito com o avião ainda nivelado. Mas mataria Smith, porque no delay de 1,45 segundos entre a sua ejeção e a de Smith, o navegador já estaria fora do envelope. A decisão altruísta do piloto em manter o avião reto e horizontal, sacrificou sua vida, mas proporcionou ao seu colega a única chance de se ejetar nos últimos milissegundos possíveis que aquele acidente permitiria. Foi o primeiro milagre daquela noite. Uma noite que levaria duas décadas para terminar…
Semanas depois, Smith completou o treinamento, foi enviado ao Vietnã no USS Ranger e cumpriu seu turno de serviço, tendo dado baixa da Marinha em seguida, tornando-se posteriormente um bem sucedido comentarista de assuntos aeronáuticos na imprensa.
Vinte e três anos se passaram e chegamos ao ano de 1990. Smith agora é dono de um veloz avião Mooney Bravo e acaba de tirar seu certificado IFR. Um artigo de sua autoria relatando o acidente é publicado na revista Pacific Flyer. Para sua surpresa, o ex-Guarda Marinha recebe uma carta comovente de dois pilotos navais, Richard e John Butler, relatando serem filhos do falecido piloto do RA-5C e que, após lerem seu artigo, gostariam de conhecê-lo.
Na ocasião, Smith estava em Bullhead City, Arizona, e pretendia viajar para San Antonio, Texas, distante 900 NM, mas havia uma frente fria dificultando o trajeto. Desviar para o sul implicava entrar no espaço aéreo internacional mexicano. Ao norte, as montanhas do Colorado forçavam um grande desvio. Ele resolveu então ligar para os irmãos Butler e marcar o encontro em San Diego, na Califórnia (200 NM dali). E o antigo radio navegador dos anos 1960 voou para lá com seu avião a fim de encontrar os jovens pilotos de combate dos anos 1990 da US Navy.
A reunião se deu no aeroporto da cidade, e juntou na mesma mesa três homens com algo em comum: o fio que conduz a vida. Smith ofereceu um brinde à memória do LCDR Butler, “o homem que lhes trouxera à vida e salvara a minha”. Embora tivesse um efeito de catarse nos irmãos Butler, foi uma tarde feliz, com duas gerações de aviadores navais confraternizando e, embora o velho RAN não soubesse ainda, sua vida seria salva mais uma vez em decorrência daquele encontro.
No dia seguinte, o veterano do RA-5C decolou sozinho em seu Mooney Bravo matrícula N79807 rumo a Salinas, Califórnia, uma viagem de 400 NM. O tempo estava bom, com visibilidade ilimitada. Smith cruzava a 10.000 pés quando seus problemas começaram.
O piloto automático começou a derivar a aeronave ora à esquerda, ora à direita. Smith checou a pressão da bomba de vácuo: estava totalmente a zero. Uma falha grave. Gradualmente, todos os instrumentos vácuo-alimentados (giro-atitude, giro-direcional etc.) foram perdendo a confiabilidade. Para sorte dele, estava totalmente VMC/VFR e pôde pousar em Salinas não obstante a pane parcial do painel.
Se, ao invés de optar por encontrar os Butler na ensolarada Califórnia, ele tivesse escolhido voar para o Texas através da frente fria, seriam grandes as chances de entrar em atitude anormal e se acidentar em virtude do problema com a bomba. A rota escolhida lhe permitiu sobreviver a uma falha que podia ser catastrófica. Mais uma vez o antigo piloto de RA-5C salvara sua vida, onde quer que estivesse.
Esse foi o último milagre da noite que começara em 14 de junho de 1967.
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Apêndice: o Vigilante e o HS-1
Amplamente usado na Guerra do Vietnã, o RA-5C Vigilante foi equipado com o assento ejetável HS-1 desenvolvido para a versão anterior da aeronave, a A-3J de bombardeio. O assento era otimizado para alta velocidade, daí a designação HS (High Speed), e foi classificado para ejeções de alta pressão dinâmica (“High-Q”); em outras palavras, foi projetado para salvar a tripulação em velocidades muito altas a qualquer altitude. Entre as otimizações foi incluído um sistema de correias para retração dos braços e tornozelos e uma placa sob o assento para melhorar a ascensão e assim obter separação segura (clearance) do estabilizador vertical (leme/deriva). Ele era grande e pesado, mas essa última característica era um fator considerado no projeto para ajudar nas cargas aerodinâmicas. Tinha um paraquedas estilo mochila e esperava-se que fosse utilizado com traje pressurizado. O HS-1 foi usado em muitas ejeções no Vietnã e teve maior sucesso especialmente em alto “Q”, incluindo ao menos seis ejeções a 700 KEAS.
*Robinson Farinazzo é Capitão de Fragata (FN) RM1, expert em tecnologia aeronáutica e articulista de Defesa. Com mais de trinta anos de carreira militar, extensa experiência de campo e formação superior em Administração de Empresas, é Editor do Canal Arte da Guerra. E-mail: robinsonfarinazzo@gmail.com.
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Linda história Comandante. Feliz Natal!
Feliz Natal e um excelente 2020, Luiz!
Está aí uma história para virar filme, e não essas bobagens tipo Top Gun, Águia de aço… Tantas histórias verídicas e boas, mas cinema é business, ainda mais nos dias que vivemos com megafusões.
Realmente daria um excelente filme!