A Amazônia, mudanças climáticas e crimes contra a humanidade

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Área inundada da floresta amazônica, 14 de julho de 2005 (James Martins/Wikimedia Commons/CC BY 3.0).
Área inundada da floresta amazônica, 14 de julho de 2005 (James Martins/Wikimedia Commons/CC BY 3.0).

Iniciativas para equiparar crimes ambientais aos crimes contra a humanidade e a segurança internacional já ocorrem alguns anos, e vem se consolidando uma linha de pensamento, bases legais e mecanismos de ação.


Este artigo foi publicado originalmente em setembro de 2019. Algumas informações podem não estar atualizadas; no entanto, a intenção de alerta quanto à Amazônia permanece atual.


No último mês a Amazônia virou pauta internacional, com a publicação de uma série de matérias sobre o tema na imprensa nacional e internacional; a onda, aparentemente, foi inaugurada, ou ganhou amplitude, com as matérias da The Economist (Deathwatch for the Amazon) e Foreign Policy (Who Will Save the Amazon (and How)?) – coincidência ou não, na esteira do fechamento do acordo Mercosul-UE, seguido de perto pela divulgação de dados sobre as queimadas na região.

Não é preciso repetir aqui a série de postagens em redes sociais, declarações, ofensas e discussões, boa parte improdutivas e amplamente divulgadas pela mídia. O presidente da França, Emmanuel Macron, fez declarações trazendo novamente à tona a questão de internacionalização da Amazônia. Em grupos de interessados em defesa, espalhou-se a discussão sobre a possibilidade de o Brasil sofrer uma invasão por parte da França ou outras potências estrangeiras.

A Legião Estrangeira francesa não vai invadir a Amazônia amanhã; no entanto, é preciso avaliar uma série de iniciativas e debates que vêm ocorrendo em diversos organismos internacionais que, a médio e longo prazo, podem ser motivo de preocupações bastante sérias para o Brasil, se não tivermos uma estratégia consistente e bem executada para garantir um bom uso da Amazônia, bem como garantir nossa soberania sobre a região.

O meio ambiente começou a fazer parte das preocupações mundiais há algum tempo, possivelmente no final dos anos 1960; mas para efeito desta análise, podemos assumir que as questões ambientais e das mudanças climáticas – concorde-se ou não com elas – já são uma pauta mundial consolidada e não deixarão de ser em nenhum horizonte previsível, influenciando políticas comerciais, econômicas, diplomáticas e de segurança, e podendo vir a influenciar também conceitos de soberania, direitos humanos e crimes internacionais.

Conceitos de Responsabilidade de Proteger e Crimes contra a Humanidade

O conceito diplomático de soberania de acordo com o Tratado de Westfália, de 1648, pelo qual um estado é soberano dentro de suas fronteiras, foi aceito até aproximadamente meados dos anos 1990. Nesse período, após as atrocidades nos Bálcãs, Ruanda e outros incidentes, a comunidade internacional iniciou um debate que culminou na Cúpula Mundial da ONU em 2005, na qual os Estados Membros se comprometeram com o princípio da “Responsabilidade de Proteger”. Este princípio estabelece que cada estado tem responsabilidade na proteção de suas populações contra genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade, e baseia-se em três pilares:

  • 1º) A obrigação dos estados de proteger a sua população de violações dos direitos humanos;
  • 2º) O dever da comunidade internacional em prestar assistência aos estados que falhem em cumprir sua responsabilidade, e
  • 3º) Caso se esgotem os meios pacíficos, a comunidade internacional pode tomar as medidas de segurança que considere aplicáveis, inclusive com o uso da força, para fazer cumprir o princípio.

Portanto, este conceito de soberania se dissocia do tradicional entendimento westfaliano no que tange a estados “manifestamente falhando” em relação à sua responsabilidade de proteger seus cidadãos contra crimes de guerra, genocídio, limpeza étnica ou crimes contra a humanidade.

Em relação à definição de “crimes contra a humanidade”, ainda não há um tratado internacional com uma definição definitiva, mas o Estatuto de Roma, de 1998, é o documento de maior consenso entre a comunidade internacional, com uma lista de atos específicos que podem configurar o crime, a saber:

  • Assassinato;
  • Extermínio;
  • Escravização;
  • Deportação ou transferência forçada de população;
  • Prisão ou outra privação grave da liberdade física em violação das regras fundamentais do direito internacional;
  • Tortura;
  • Estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável;
  • Perseguição contra qualquer grupo ou coletividade identificável por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de gênero, conforme definido no parágrafo 3, ou outros motivos que sejam universalmente reconhecidos como inadmissíveis pelo direito internacional, em conexão com qualquer ato referido neste parágrafo ou qualquer crime dentro da jurisdição do Tribunal;
  • Desaparecimento forçado de pessoas;
  • O crime do apartheid, e
  • Outros atos desumanos de caráter semelhante que causam intencionalmente grande sofrimento ou sérios danos ao corpo ou à saúde mental ou física.

No final de 2017, a ONU noticiou que a Comissão de Direito Internacional trabalhava num projeto para uma possível Convenção de Crimes contra a Humanidade que poderia ser o primeiro tratado sobre o tema. Na época previa-se que o projeto duraria dois anos e seria apresentado aos países-membros em 2019. Até a publicação deste artigo, não encontrei notícias atualizadas sobre este assunto.

Crimes ambientais

Não há, ainda, uma legislação penal internacional definida em relação à crimes ambientais. Em setembro de 2016, a Promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) publicou um documento de no qual anunciava sua intenção de processar crimes de destruição ambiental. O documento afirmava que se concentraria, entre outros, em crimes que resultem na destruição do meio ambiente.

Como visto no tópico anterior, o TPI, através do Estatuto de Roma, abrange crimes de guerra, genocídio, limpeza étnica ou crimes contra a humanidade; não há nada a respeito da questão ambiental. O artigo 8 faz certa referência a crimes ambientais, mas no contexto de uma guerra.

É importante notar que a percepção mundial a respeito das questões ligadas à destruição ambiental, o aquecimento global e seu impacto no futuro do planeta têm aumentado significativamente. Cada vez mais se estabelecem entidades e mecanismos para medir, discutir e agir sobre a questão.

Há iniciativas e sentenças judiciais a respeito do tema. Em outubro de 2018, por exemplo, um tribunal em Haia obrigou o estado holandês a reduzir suas emissões de CO2 em pelo menos 25% até 2020, em comparação com os níveis de 1990. Outro exemplo: no início de 2018, em resposta a uma ação de 25 crianças apoiadas pelo think tank colombiano Dejusticia, a Suprema Corte da Colômbia ordenou ao governo do país a apresentação de um plano de ação que garanta o direito a um ambiente saudável à população.

Há iniciativas que focam na proteção da “riqueza comum” e no “planeta vivo”: em 2008, o Equador colocou a “Natureza” em sua constituição. Em 2010, a Bolívia criou uma lei para a “Mãe Terra”. Em setembro de 2017, uma associação nos EUA registrou pedido para que o Rio Colorado seja reconhecido como uma entidade jurídica. A Nova Zelândia reconheceu o rio Whanganui como uma entidade legal. Essas iniciativas vão abrindo novos horizontes judiciais em relação à questão, indicando mudanças na consciência coletiva sobre o tema.

Ecocídio

O crime de Ecocídio fez parte de rascunhos do Estatuto de Roma e removido em 1996. Em março de 2010, a advogada britânica Polly Higgins apresentou uma proposta de emenda ao estatuto à Comissão de Direito das Nações Unidas.

Higgins propôs que o ecocídio seja definido como “danos extensos, destruição ou perda de ecossistemas de um determinado território, seja por ação humana ou por outras causas, a tal ponto que o desfrute pacífico dos habitantes desse território tenha sido ou será severamente diminuído”. Desde então, a pressão para alteração do estatuto vem aumentando significativamente, com juristas e entidades trabalhando neste sentido.

No Brasil, está em trâmite no Senado um projeto de lei que tipifica o crime de ecocídio para punir os responsáveis por tragédias ambientais, que estabelece pena de reclusão de quatro a 12 anos e multa para quem der causa a desastres ambientais, com destruição significativa da flora ou mortandade de animais, atestada por laudo pericial reconhecendo a contaminação atmosférica, hídrica ou do solo.


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Mudanças climáticas como ameaça à segurança internacional

Em agosto passado, os ministros da Defesa da União Europeia se reuniram em Helsinque, na Finlândia, para discutir o efeito das mudanças climáticas em defesa e segurança. Após a reunião, Federica Mogherini, a Alta Representante da União Europeia para Assuntos Estrangeiros e Política de Segurança, falou sobre a discussão. Segundo ela, “a União Europeia foi uma das primeiras a identificar as alterações climáticas como uma ameaça à segurança, um desafio à segurança, e um multiplicador de ameaças à segurança”.

Há também debates para envolver o Conselho de Segurança da ONU em questões climáticas. Diversas ideias têm sido discutidas, desde as mais simples, como manter o Conselho informado sobre como operações de manutenção da paz podem ser afetadas pelas mudanças climáticas, até o envolvimento do Conselho em diplomacia preventiva para questões como a competição por água em bacias hidrográficas internacionais, até temas mais sensíveis, como criar um análogo climático ao princípio de “Responsabilidade de Proteger”.

Mais recentemente, no início de setembro, o almirante James Stavridis, da Marinha americana, em artigo publicado na Bloomberg, alega que, devido às mudanças climáticas, “a Amazônia em chamas afeta o mundo inteiro”. Ele diz que à medida que o planeta esquenta, os padrões climáticos se tornam menos previsíveis e ocorrem tempestades cada vez mais destrutivas; e que o derretimento do gelo nos polos está causando o aumento do nível do mar.

Stavridis associa o mar em ascensão a uma maior probabilidade de furacões no Atlântico, que ameaçam as complexas infraestruturas navais dos EUA. Ele acrescenta que, de acordo com o almirante Denny McGinn, ex-encarregado das instalações da Marinha americana, não é uma questão de se, mas de quando ocorrerá um evento catastrófico.

Ele encerra a matéria afirmando, de forma clara, que “os americanos precisam entender como essas crescentes nuvens de fumaça sobre a Amazônia são uma ameaça direta à nossa segurança nacional”.

Durante a pesquisa para este artigo, tive oportunidade de trocar mensagens com Francesco Femia, fundador do CCS (The Center for Climate and Security), um think tank americano voltado para essa questão cujo conselho é formado por militares de vários países. Fiz a ele duas perguntas. A primeira, “qual é a posição do CCS sobre a Amazônia, de maneira ampla, e especificamente sobre as recentes repercussões internacionais sobre incêndios na região”, e a resposta foi:

O aumento do desmatamento na Amazônia acelerará as mudanças climáticas e isso poderá ter sérias consequências para a segurança regional e internacional. Para piorar a situação, as mudanças climáticas projetadas provavelmente diminuirão a precipitação na Amazônia e aumentarão os incêndios acidentais. O governo brasileiro deve agir rapidamente para impedir incêndios, propositais e acidentais, bem como agir preventivamente a longo prazo, para interromper o desmatamento e criar resiliência às mudanças climáticas. Existe um crescente consenso internacional de que os riscos de segurança das mudanças climáticas devem ser enfrentados com uma resposta proporcional, conforme refletido pelo Conselho Militar Internacional de Clima e Segurança (IMCCS, The International Military Council on Climate Security). O Brasil deve reconhecer o consenso de segurança sobre as mudanças climáticas e agir em conformidade”. Ele acrescentou ainda que está de acordo com a visão do almirante Stavridis.

Ao ser questionado sobre a visão do CCS sobre qual deveria ser a linha de ação da comunidade internacional (a segunda pergunta), ele foi ainda mais enfático:

A comunidade internacional deve trazer à tona as preocupações das comunidades militares, a fim de garantir que o governo brasileiro entenda as duras consequências de segurança da ameaça climática, bem como os riscos mais amplos. O Conselho Militar Internacional de Clima e Segurança é uma clara demonstração dessa preocupação e deve ser considerado um exemplo de como o governo brasileiro está se movendo na direção errada”.

A posição da entidade ficou bastante clara, e provavelmente reflete o pensamento de boa parte da comunidade internacional.

Conclusão

A questão climática e o aquecimento global entraram na pauta mundial e isso é irreversível. Repetindo a afirmação do início deste artigo, estão se consolidando uma linha de pensamento, as bases legais e os mecanismos de ação. Sem entrar no mérito da questão ser ou não legítima, é fato que crimes ambientais já são vistos como ameaças à segurança mundial e, mais cedo ou mais tarde, serão classificados como crimes contra a humanidade e/ou contra a segurança internacional. Possivelmente irão alterar o princípio da “Responsabilidade de Proteger”.

Michele Bachelet, a Alta Comissária para os Direitos Humanos da ONU, esta semana falou sobre a “aceleração drástica do desmatamento da Amazônia”, citando “a situação dos povos indígenas na Amazônia devastada por incêndios e desmatamento desenfreado”.

Portanto não é uma questão de se vai acontecer: isso vai acontecer em algum momento, e com isso estarão estabelecidas as bases para sanções e intervenções. Em paralelo, think tanks, pesquisadores, acadêmicos e a imprensa vem reforçando essa linha de pensamento, de forma que, além da base legal, há também uma opinião pública mundial favorável a essa linha de pensamento e ação.

Precisamos de uma política séria para a Amazônia; se queremos evitar possíveis sanções, discussões sobre internacionalização ou intervenções, é fundamental que o país tenha uma estratégia abrangente, bem planejada e bem executada em várias frentes, desde o desenvolvimento da região e sua exploração sustentável, até uma comunicação eficiente em diversos níveis, passando, obrigatoriamente, por uma Defesa consistente e efetivamente dissuasória.

É possível que a crise atual se encerre e saia das manchetes, em detrimento de outras notícias mais prementes. Mas até quando? Vamos aguardar que qualquer coisa que ocorra na Amazônia possa ser classificada como “crime contra a humanidade” ou “ameaça à segurança internacional”, à nossa revelia – ou pior, com a anuência de segmentos significativos de nossa sociedade?

Não devemos ter ilusões. Para todos os efeitos práticos: se o clima mudou ou não, e se isso afeta ou não o futuro da humanidade, são meros detalhes. O ponto é que a comunidade internacional assim o entende, e vai agir de acordo com esse entendimento. Se nada fizermos, o país corre o risco de a médio ou longo prazo, tornar-se um pária internacional, com sérias consequências para o futuro da nação. Devemos trabalhar para que isso não aconteça.

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4 comentários

  1. Se o Andrade tivesse sido eleito e povo se alimentando no lixo ninguém falaria nada. Realmente era inimaginável que o Brasil fosse ameaçado, tudo o que discutiamos era sobre comparações entre as nossas forças armadas e nações vizinhas, agora vemos nosso país sendo alvo de um conluio internacional que pode resultar em uma coalizão da Otan.

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