Por Andre Santarelli de Paula*

O policiamento convencional falha em áreas de alta degradação social devido à ausência estatal e ao crime organizado; é preciso presença contínua, inteligência e retomada da legitimidade para combater a complexa realidade dessas regiões.
Ao aplicar o policiamento ostensivo fardado na preservação da ordem pública, qualquer comandante ou chefe de agentes de segurança sempre irá elaborar suas estratégias com ênfase no que as Secretarias de Segurança Estaduais usam como critérios de segurança e/ou a sensação de segurança, sendo elas índices criminais —roubos, furtos (tanto de pertences como de veículos) —, e sempre há uma atenção maior para crimes contra vida, como por exemplo homicídio e latrocínio. Outro ponto que se usa como critério é a percepção do cidadão da segurança, que podemos exemplificar com operações policiais e a presença de viaturas. Essa seria uma maneira simplória e bem didática que qualquer comandante de agentes de segurança usa ao redor do mundo.
No entanto, quando aplicamos essa estratégia com locais de alta degradação social, observamos falhas que são, independentemente do resultado, as que irei explanar mais adiante. O que vemos e identificamos como área de Alta Degradação Social (ADS): são áreas em que primeiro há uma ausência do Estado e, em alguns casos, até abandono, gerando impacto pela ausência ou precariedade em atribuições (do Estado) como saneamento, infraestrutura, urbanização, coleta de lixo e outras funções que degradam o ambiente em que as pessoas vivem. Além de deixar o ambiente perceptivelmente insalubre, gera um aspecto visual horrível (de desordenamento e degradação). Inevitavelmente (e forçosamente) seus moradores acabam por se acostumar e internalizar essa condição.
O reflexo disso é uma série de efeitos e resultados, como a proliferação do comércio irregular e sem espaços para expansão como, por exemplo, um bar de música ao vivo que se transforma em festas irregulares, mais conhecidas como “bailes funks”. Isso atrai o pior da sociedade (em diversos aspectos, condutas e valores). O crime organizado coopta essa ausência estatal exercendo uma regularização ilícita no local, ampliando essa degradação pela imposição de regras, regulamentação econômica, leis e tráfico de drogas. Nesse momento, o Estado quase sempre reage com as forças de segurança combatendo esses narcotraficantes, que muitas vezes são enérgicos e agressivos, tento em vista seu armamento e táticas (dos narcotraficantes). Após essas ações, que muitas vezes tem um resultado positivo, restabelecendo a ordem, o Estado se retira. Como já perdeu ou não implementou sua legitimidade, o narcotráfico volta e mantêm sua dominância do ambiente e oprime ainda mais os moradores.
As pessoas que moram nesses locais são vitimizadas inúmeras vezes. Inicialmente pela ausência ou ineficiência do Estado (cuja ação deveria ser multidimensional, efetiva e contínua), depois pela violência física e opressão decorrentes de agentes armados não estatais e, posteriormente, pelo efeito colateral da repressão do Estado, atuando para o retorno da ordem (mesmo que tal ação acabe por se repetir inúmeras vezes no decorrer de longos períodos de tempo).
ADS são identificadas com esses aspectos: ausência ou ineficiência do Estado gerando condições degradantes no convívio social, econômico e no aspecto visual, com presença do crime organizado impondo suas leis, vontades e cultura (ou melhor, narcocultura) e, por fim, o efeito colateral de ações policiais. Ao aplicar as estratégias policiais tradicionais com os critérios estabelecidos pelas secretarias de governo em ADS, observávamos que independente da ação, não há uma causa com consequência, pois já que a área territorial perdeu totalmente (ou em partes) a legitimidade estatal para facções criminosas, estas podem impor leis de silêncio, de tal forma que, qualquer que seja o delito ocorrido na área, não será notificado ou será notificado em outra áreas, como um boletim de ocorrência falso (o que, por sua vez, não irá refletir de forma alguma o que se constata no cotidiano).
O planejamento estratégico elaborado e executado pelos agentes de segurança não poderá dar certo (pelo anteriormente exposto) pela presença da lei do silêncio e de registros que não correspondem à realidade daquela área territorial. Como consequência, a análise de tais registros traz propostas de ações que não correspondem à plena realidade que se apresenta no terreno.
Na prática, digamos que no sistema de segurança local apareça uma quantidade elevada de ocorrências de roubo em uma avenida movimentada e, para os olhos de quem realmente não conheça a área, elaborar um ponto de estacionamento na faixa de horário de maior índice criminal poderia ser uma solução rápida e teoricamente eficaz para esse tipo de aumento criminal. Poderá ocorrer então, em um curto lapso de tempo, a percepção de que esses índices não foram reduzidos. Ou pior, podem ter aumentado, pois um fator desses delitos é que não aconteceram no local onde foram indicados inicialmente (registrados) e, sim, em um “Baile Funk” dentro da ADS na madrugada.
Outro exemplo bem comum é que em determinada ADS ocorra um grande aumento no número de homicídios. Novamente, com os olhos de quem não conhece bem essa área, será elaborada uma grande operação de saturação, com o contingente policial oriundo de vários programas de policiamento, em diferentes faixas de horários e, após um período, o número de homicídios volte a baixar. Porém, o que efetivamente havia ocorrido inicialmente, foi uma briga territorial entre duas ou mais facções criminosas.
São dois exemplos de fracasso e êxito no policiamento em que, fazendo uso de estratégias convencionais, não teremos o resultado real e tampouco um diagnostico verídico da situação. Esses são apenas alguns parcos exemplos de um ambiente operacional complexo, mas acredito que essas circunstâncias são inúmeras e particulares, assim como podem ser detectadas em inúmeras ADS, ou seja, esses exemplos podem estar na casa das centenas.
Quais são as opções de estratégia de que os operadores de segurança podem dispor em ADS? Resta esclarecido, pela experiência, que não há uma formula padrão. Por sinal, ressalto que se for imposta uma rotina nessas ações, provavelmente o comandante irá fracassar. Não imediatamente, mas em algum ponto de sua estratégia isso irá acontecer, porque o crime organizado se adapta muito facilmente às ações policiais. Portanto, a primeira coisa que se deve ter em mente no planejamento, é que não devemos colocar em uma rotina, a estratégia como um todo. Um segundo ponto, por sinal importante, é a busca por legitimidade, que consiste na efetiva retomada do estado (do poder legítimo do Estado, não devendo ocorrer nenhum espaço para governança não estatal/alternativa) dentro dessas ADS. O contingente policial que, inicialmente adentra diuturnamente na ADS, mesmo que tais incursões não resultem em nenhum ilícito apreendido e nenhum criminoso preso, é um componente importantíssimo da ação de governança estatal (legítima), pois, quando a população vê os policiais nas ADS, há uma perceptível e visível sensação de alivio sentida pelos moradores e um recuo (mesmo que pequeno) dos narcotraficantes.
Essa ação policial, empregada 24 horas por dia e sete dias por semana, gera um aumento desse alivio (pela retomada da ordem), e, em momento quase simultâneo, contata-se um aumento no volume de informações enviadas por intermédio de “disque denúncias”, o que por sua vez, gera aumento da produtividade policial (que deve visar, primordialmente, em criminosos foragidos da justiça, autores de delitos, membros de facções criminosas e seus colaboradores). Devem também aumentar as apreensões de drogas.

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O que é fato a notar é que esse tipo delito está diretamente relacionado com a força financeira das facções criminosas. Aumentar as apreensões de veículos, mas não grandes operações de trânsito (esse também se encaixa em um meio tradicional de estratégia de policiamento), mas, sim, em veículos usados pelos criminosos ou que tenham características específicas que os criminosos procuram e, por fim, aumentar a apreensões de armas, já que estas são o maior meio material de execução dos ilícitos. Neste momento deve-se observar que podemos dividir os armamentos em dois tipos quanto ao seu emprego, dando ênfase a calibres de alta velocidade, como fuzis de assalto, material que encontra emprego em ilícitos extremamente violentos, e nesse caso o agente de segurança deve mapear essa apreensão. Ela reflete a força da organização criminosa nas ADS.
Do ponto de vista tático, em ADS, temos que ter certeza de que quando se iniciam os planos estratégicos supracitados, o crime organizando não ficará inerte e, muito menos, entregará com facilidade a “legitimidade” (nesse contexto, a prática constatável no terreno) alcançada pelos narcotraficantes, portanto é esperado um aumento de confrontos, com possivelmente uma elevação de índices criminais na área de ADS e em regiões próximas. Nada mais é do que a forma de resistência das ORCRIM (ou o resultado desta). O que é preciso observar são as táticas reativas empregadas pelas ORCRIM para impedir o avanço estatal na retomada da sua legitimidade, onde elencamos uma delas que é a cooptação de moradores para atuar diretamente ou indiretamente para o narcotráfico.
O narcotraficante ajuda, com seus meios ilícitos de receptação e resultados dos roubos, os moradores locais que, muitas vezes, não tem a opção de recusar essa oferta, seja por necessidade, seja por temor da opressão. Essa pretensa ajuda tem um preço, uma retribuição imposta e exigida pelos criminosos. Podemos citar como exemplo a exigência de que filmem toda entrada das forças de segurança, em suas incursões diárias, bem como o ato de hostilizar as equipes policiais durante a prisão de criminosos no interior das ADS. Todos esses são exemplos de atuação indireta de moradores contra os policiais, já que as ações diretas podem ser percebidas quando as ORCRIM cooptam parcela da população para realizar ações ilícitas, podendo ser elencadas entre estas a participação em roubos, tráfico de armas, drogas e mesmo de pessoas. Uma parcela dessas ações diretas, esquecida pela maioria dos estudiosos, é a da aplicação de uma opressão violenta contra os demais moradores das ADS, comerciantes e agentes públicos que por lá atuam, sendo também identificados os agentes armados do crime organizado aplicando, simultaneamente, a lei do silencio nessas áreas.
Outra tática de resistência das ORCRIM são atuações com veículos de mídia (a arena informacional). É importante destacar que não há uma ligação direta com a mídia na grande maioria dos casos e, sim, um perceptível interesse de “vender notícia”. Um ponto a ressaltar, neste contexto, é o fato de que os agentes da mídia estariam inseridos, culturalmente, na chamada “Bandidolatria”, uma “cultura” onde o criminoso não é o principal ator da matéria e, sim, a ação policial, destacando de maneira negativa e desinformativa as ações da polícia. Em consequência disto, outro ponto a ressaltar (como propósito das ORCRIM) é a desestabilização das forças de segurança, como a degradação da sua imagem bem como de sua legitimidade em ações policiais.
Essas ações da mídia podem gerar uma terceira tática usada pelas ORCRIM, que é a atuação junto dos Poderes Legislativo e Judiciário. Com matérias sensacionalistas e atuação de ONGs geram-se dados usados por intermédio de um “representante” político, podendo desencadear em medidas judiciais contra policiais, suspensão de operações e compartilhamento de dados sigilosos, havendo com isso o comprometimento das estratégias e das operações de segurança nas ADS.
Destaco aqui dois pontos que quase sempre geram as estratégias acima citadas por parte das ORCRIM na retomada de legitimidade em uma ADS: os narcotraficantes buscam entrar em confronto com as forças policiais e, neste momento, há um aumento da letalidade. Inicialmente é um ponto de certa forma positivo (em determinado contexto, deixando claro), pois demonstra que a análise e percepção do comandante de forças de segurança estava correta, identificando uma ADS (com a consequente presença de atores não estatais armados, pretendendo manter a área sob seu domínio, negando-a às forças estatais e ao ordenamento legal).
No entanto, ONGs e parcela da mídia exploram isso negativamente, retirando essa dado da matéria, colocando a ação recortada no espaço/tempo e colocando a luz sobre a letalidade propriamente dita (e não, como seria de se esperar, focando no aspecto do ator não-estatal armado, que mantêm uma área sob seu jugo). Quase invariavelmente, se atem ao número que está se elevando, muitas vezes ignorando dados decrescentes dos outros delitos, do perfil do narcotraficante e sua agressividade. É necessário destacar sempre que a apreensão de drogas é um dos pilares estratégicos, pois a mesma está relacionada direta ou indiretamente a toda expansão da violência empregada pelas organizações criminosas. O resultado acaba vindo de forma lenta porém significativa.
As mudanças que as forças de segurança precisam realizar devem ser separadas em três frentes: inicialmente destaco o treinamento tático particular voltado às características (incluindo a geográfica) da ADS. Necessito salientar as características peculiares das construções, porque em ADS que abrangem uma área territorial muito grande ou uma área muito densa, o combate aos narcotraficantes apresenta particularidades que se iniciam pela escolha do armamento e munição adequados, evitando efeitos colaterais e também visando a locomoção e mobilidade das tropas no terreno e edificações. É necessário desenvolver cursos específicos e treinamento diário. As táticas usadas não podem permanecer as mesmas, pois as ORCRIM se adaptam e fazem intercâmbio de conhecimentos com outras organizações, gerando risco à aplicação tática engessada ou convencional. Portanto, os operadores policiais devem relatar a percepção de qualquer indicio de tática usada pelos narcotraficantes, tanto para uma ação de contramedidas (com um banco de dados para subsidiar qualquer ação jurídica e resposta a ação desinformacional perpetrada).
A próxima frente envolve a inteligência policial, que irá obter informações a respeito dos narcotraficantes e suas posições hierárquicas dentro da ADS, subsidiando o contingente operacional com percepções e conhecimento a respeito da capacidade logística dos criminosos, bem como os impactos das operações realizadas, relatando o enfraquecimento ou fortalecimento do grupo criminoso, promovendo o mapeamento das convergências criminais e das redes de ilícitos e lícitos, desde o estabelecimento comercial que comercializa alimentos para os narcotraficantes (por exemplo) até os grupos de investidores que possam agir na execução de obras na construção civil, ações sociais e entretenimento. Neste momento, aqui cabe destacar os grupos que atuam no campo cultural, que deve ser mapeado com ênfase no comportamento dos moradores das ADS. Todos esses fatores devem ser levados em conta no plano estratégico, quando favorecem o ganho territorial e a “legitimidade” (que busca ser angariada) do narcotráfico.
A última frente é a da arena informacional.
Agentes de segurança deverão “mapear” reportagens, bem como ações do contingente operacional para que, quando da atuação de ONGs ou de corporação midiática que acabe por divulgar alguma reportagem que tenha claros indícios de desinformação, possam disponibilizar o máximo de dados reais dos narcotraficantes e suas ações, com a finalidade de combater a desinformação gerada (com as consequentes e desejadas, pelos narcotraficantes, ações de desgaste, em todas as esferas, para o contingente policial empregado, bem como, de forma mais ampla, à instituição como um todo).
As frentes citadas possuem como finalidade subsidiar o planejamento estratégico na área que possui ADS, gerando bancos de dados para que as ações contra as ORCRIM não se percam no tempo e tenham continuidade de forma técnica, eficaz e legal.
*Andre Santarelli de Paula é oficial da Policia Militar do Estado de São Paulo. Comandante da 1ª Companhia do 16º BPM/M, subunidade com a competência do policiamento ostensivo e manutenção da ordem pública na região da Vila Andrade, com especial destaque à Comunidade de Paraisópolis. Bacharel em Ciências Policiais de Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco e, também, bacharel em Ciência Política pela Universidade Anhanguera. Pós-graduado em Atividade Policial e Direito Operacional pela Faculdade Rogério Grecco. Pós-graduado em Balística Forense pela Universidade Verbo Jurídico.








