Os Dez Mandamentos da Religião Atlantista

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Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

Por Jean Daspry*

Imagem meramente ilustrativa, gerada por inteligência artificial.

A influência dos EUA na OTAN, através dos “Dez Mandamentos da Religião Atlantista” que ditam a política europeia; a submissão da Europa alinha-se à ideia de que verdades inicialmente ridicularizadas se tornam autoevidentes.


Toda verdade passa por três fases. Primeiro, ela é ridicularizada. Depois, enfrenta forte oposição. Depois, é considerada como sempre autoevidente” (Arthur Schopenhauer). E é isso que estamos testemunhando tanto na vida política interna quanto no campo da vida política externa. Ontem, zombamos de Cassandra [1]. Hoje, nós a ignoramos. Mais precisamente, seus principais detratores se apropriam descaradamente de seus oráculos. Temos um exemplo particularmente esclarecedor disso com o problema de qualificar o papel da OTAN no cenário de segurança europeu após a cúpula desta organização em Haia, em 24 e 25 de junho de 2025.

Donald Trump trata seus “pretensos” aliados europeus sem a menor consideração. Basta isto para que alguns intelectuais ingênuos, apoiados pelo alto clero midiático, gritem alarmados [2]. Eles simplesmente se esquecem que a Aliança Atlântica nunca foi considerada por Washington como um fórum de consulta entre iguais, mas como um lugar onde seus “idiotas úteis” se submetem ao seu pensamento generoso e aos seus ditames imperiosos. Um tipo de Igreja na qual, desde 1949, prevalecem os Dez Mandamentos da religião atlantista em sua forma mais ortodoxa. Quais são eles? Como diz o Guia Michelin: vale a pena o desvio.

PRIMEIRO MANDAMENTO: Adorareis cada dia mais o Deus da América, vosso benévolo Salvador diante de todas as ameaças que pesam sobre a velha Europa e o resto do Velho Mundo.

Lembre-se, pobre camponês de memória curta, que você deve sua liberdade à grande América que sucessivamente o resgatou das garras dos soldados nazistas (Segunda Guerra Mundial) e depois do urso vermelho (Guerra Fria)! Não tem preço. Que outro país lhe pode fornecer tanta segurança e estabilidade a um custo tão baixo neste mundo imprevisível e perigoso? Certamente não a ONU ou a OSCE, sem mencionar o bode europeu, um tagarela inútil.

SEGUNDO MANDAMENTO: Vocês se curvarão a todas as horas do dia e da noite diante do “novo xerife da cidade”, o tio Donald, apesar de sua distância do dogma 5 [3] da Bíblia e dos profetas dos atlantistas convictos.

Dentro da Igreja Atlantista, que alguns chamam de “família ocidental”, vocês se envolverão dia após dia em um exercício salutar de reverência diante do único detentor da Bíblia da OTAN. E isso apesar de alguns erros do homem com a mecha loira em relação à interpretação do Artigo 5 do Tratado de Washington, que define uma cláusula de assistência mútua. Graças a estes exercícios de prostração, você poderá obter sua Salvação eterna pela graça do Todo-Poderoso Eterno.

TERCEIRO MANDAMENTO: Cantareis todos os dias que Deus fizer, o catecismo da “Nação Indispensável”, vosso único caminho de Salvação na selva, no “Velho Oeste” do planeta.

Uma religião tem verdadeiro valor somente através de seu dogma e sua liturgia. É sempre essencial recordar as virtudes incomensuráveis daquele por meio do qual o Bem chega ao continente europeu há mais de sete décadas. Sem ele, o que seríamos de nós sem ele “que veio ao nosso encontro, senão um coração adormecido, senão esta hora parada no mostrador do relógio, o que seria de nós sem ele senão este gaguejar[4]. Nem mais, nem menos. Um frágil esquife varrido pelas tempestades dos mares.

QUARTO MANDAMENTO: Venerareis o principal oficial da OTAN, sumo sacerdote da religião da OTAN perante o Eterno e único depositário das Tábuas da Lei da união entre as duas margens do Atlântico.

Uma religião só tem verdadeiro valor por meio da prática diária da liturgia por seus oficiantes mais zelosos. Este é o momento perfeito. O atual, originário de Batávia, está completamente à vontade nesse exercício de servilismo diante do homem mal-educado de juba amarela [5]. Nunca a OTAN teve um secretário-geral tão subserviente e servil como o atual. Ele é o arquétipo do lacaio prostrado diante de seu mestre, com o qual sonham os atlantistas bem-humorados. Aleluia!

QUINTO MANDAMENTO: Terás em alta estima o SACEUR [6] como Deus supremo pelo seguro de segurança contra todos os riscos que ele te garante 365 dias por ano durante os “maus tempos” que a Europa decadente atravessa.

Um homem nas sombras, aquele de quem alguns brincalhões zombam sob o termo “a mão da irmã (pronuncia-se à maneira americana) nas calças de um zuavo [7]”, é um dos mais importantes pilares do monstro da OTAN. Seu braço armado é sua força. Seus evangelhos intangíveis, como a força do vínculo transatlântico e a conexão de segurança entre os dois lados do Atlântico, fazem com que seja temido como o Juízo Final. É uma boa política apreciá-lo sem a menor restrição.

SEXTO MANDAMENTO: Vocês trabalharão incansavelmente pela expansão contínua de nossa Santa Mãe, a Igreja Atlantista, para as ovelhas perdidas do Leste e do Sul da Europa.

Quanto mais numerosa ela for e quanto mais assiduamente for frequentada por seu rebanho, mais a Igreja prosperará e poderá entregar seus imensos benefícios aos seus adoradores incondicionais! Estamos longe do mantra ultrapassado do famoso “fora da zona” da época da Guerra Fria. A OTAN pretende ser a polícia de um mundo virado de cabeça para baixo ao se expandir em todas as direções da bússola. Que seja dito nas casas da França e de Navarra!


LIVRO RECOMENDADO:

O assassinato de uma nação: Como os Estados Unidos e a OTAN destruíram a Iugoslávia

• Michael Parenti (Autor)
• Edição português
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SÉTIMO MANDAMENTO: Você sempre e somente comprará equipamento militar americano que seja tão eficiente quanto barato e que lhe garanta dias brilhantes.

É óbvio que, em nome da eficiência (operacional e financeira) e da interoperabilidade (entre as forças armadas colocadas à disposição do SACEUR e outros comitês militares), os estados europeus devem adquirir apenas equipamentos militares fabricados nos EUA. Isto é excelente para a OTAN e para a economia americana! [8] Em Bruxelas, pensamos americano, falamos americano, comemos americano e, claro, só compramos americano. Claro!

OITAVO MANDAMENTO: Nunca, jamais comprareis equipamento militar europeu, e muito menos francês, de má qualidade e a preços exorbitantes, que não vos proteja da ira dos “desagradáveis”.

Consequência do sétimo mandamento, o oitavo é autoevidente. O conceito de equipamento militar europeu soa como uma palavra suja na esfera atlantista. Como podemos imaginar, por um único segundo, que poderia ser diferente? Você nunca cospe na mão generosa que o alimenta com sua generosidade. Pensar, mesmo que brevemente, em armas não americanas é um pecado mortal que pode levar à excomunhão e a uma passagem só de ida para o Inferno!

NONO MANDAMENTO: Vocês se submeterão às exigências da defesa do continente europeu, organizada unicamente dentro da onipotente e onisciente Aliança Atlântica, localizada nos distantes subúrbios de Bruxelas.

Somente isso permitirá que vocês enfrentem eficazmente as múltiplas ameaças que pesam sobre vocês, europeus inconscientes que são. Vocês organizarão a defesa do seu território dentro da OTAN como se fosse um redemoinho, como sempre foi desde o ano da graça de 1949. É evidente, mas é melhor dizer, que vocês nunca cederão às sereias falaciosas do primo Júpiter com suas profissões de fé europeia (Cf. seus discursos na Sorbonne).

DÉCIMO MANDAMENTO: Recusar-se-á energicamente a ceder às sereias falaciosas da chamada defesa autônoma europeia em nome da não duplicação.

O que ela realmente é? A soma de suas impotências. Como salientou o cientista político Hal Brand no rescaldo do fiasco de Munique: “A Europa está se tornando um ator secundário aos olhos do mundo[9]. E isso é ainda mais verdadeiro quando ela se entrega à submissão ao grande mestre americano e aceita, sem lutar, ficar sob a forte influência deste último e de seu nariz falso, que é chamado de Organização do Tratado do Atlântico Norte. Para o inferno com a Europa e seus adoradores.

* * *

Munidos deste catecismo da religião atlantista — uma espécie de obra-prima da segurança do Velho Continente — os Estados europeus viverão em paz eterna, protegidos do monstro vermelho cujos tanques se preparam para rolar sobre o asfalto da capital da nossa Doce França. Temos uma dívida de gratidão com Nicolas Sarkozy por sua decisão histórica em 2009 em relação à OTAN. Ele reintegrou a França na estrutura militar integrada da Aliança Atlântica, que o general De Gaulle havia decidido deixar em 1966.

O pequeno Nicolas então justificou seu afastamento da boa e velha doutrina gaullista enfatizando a defesa europeia. Aos seus olhos, Washington abrigava suspeitas legítimas sobre o projeto francês que visava se libertar do controle americano na área de segurança. Após nosso retorno à OTAN, tudo ficaria bem no melhor dos mundos possíveis e o projeto de defesa europeu poderia continuar vivo. O resto nós sabemos. Fala por si…

OTAN Para Sempre

Estamos de fato perante um mundo novo… onde só o poder conta[10]. E, ao contrário do que Emmanuel Macron — fã de comédia involuntária — declarou, urbi et orbi, em novembro de 2019, a OTAN não está “em estado de morte cerebral”. Como a Fênix, a Aliança Atlântica possui um poder sagrado, o de ressurgir regularmente de suas cinzas neste ambiente líquido, neste mundo líquido e imprevisível que é o nosso no século XXI. A realidade, a realidade impressionante para o nosso incorrigível Cândido, se reafirma. É verdade que a natureza da ideologia é ignorar a realidade, ou seja, a desigualdade, a assimetria da relação euro-americana.

Um belo exemplo do conforto da renúncia da velha Europa diante do irmão mais velho Sam. Mais uma vez, “os europeus regressaram coletivamente ao seu torpor[11]. A cúpula de Haia é um ato simbólico que mal esconde sua covardia. Como se fosse uma reviravolta da história, o comportamento dos europeus em relação aos Estados Unidos no âmbito da OTAN é notavelmente semelhante ao dos antigos aliados da URSS no extinto Pacto de Varsóvia. Entender-se-á que, para viver feliz neste Mundo Inferior, os corajosos e intrépidos Estados europeus devem e continuarão, ne varietur [12], a seguir à risca as prescrições dos Dez Mandamentos da Religião Atlantista!

Amém …


Publicado no Le Diplomate.Media.

*Jean Daspry é o pseudônimo de um alto funcionário público francês, doutor em ciência política.


[1] Na mitologia grega, Cassandra é uma profetisa do deus Apolo que possuía o dom de anunciar profecias nas quais ninguém acreditava, sendo considerada louca.

[2] Pierre Buhler, L’Europe sous une double emprise de l’Amérique, Le Monde, 13-14-15 de julho de 2025, p. 31.

[3] O “dogma 5” na Bíblia não é uma expressão geralmente usada para se referir a um dogma específico, mas sim a um conceito ou ensinamento que pode ser interpretado a partir dos textos bíblicos. O termo “dogma” refere-se a uma verdade fundamental de fé, frequentemente associada ao cristianismo, considerada inquestionável.

[4] Adaptação livre da canção de 1965 de Jean Ferrat “Que serais-je sans toi ?” sobre as palavras de Louis Aragon.

[5] Gilles Paris, “Guerre en Ukraine : la mise en garde de Trump à Moscou”, Le Monde, 16 de julho de 2025, p. 2. Lembremos que quando Donald Trump fala, na OTAN ou em Washington, Mark Rutte demonstra uma flexibilidade que beira a abnegação.

[6] SACEUR, ou Supreme Allied Commander Europe (Comandante Supremo Aliado da Europa), é um dos dois comandantes estratégicos da OTAN. Ele lidera o Allied Command Operations (ACO) e é responsável pelas operações militares da OTAN. O cargo é tradicionalmente ocupado por um general ou oficial-general dos EUA, que também acumula a função de comandante do US European Command. Atualmente, o SACEUR é o tenente-general Alexus G. Grynkewich, da Força Aérea dos EUA, que assumiu o cargo em 4 de julho de 2025. O quartel-general do ACO, conhecido como Supreme Headquarters Allied Powers Europe (SHAPE), está localizado em Casteau, perto de Mons, na Bélgica.

[7] Soldado argelino pertencente a um corpo de infantaria ligeira da armada francesa, criado na Argélia em 1831 e caracterizado por um uniforme vistoso e colorido.

[8] Antoine Margueritte, Ukraine: “Tout argent consacré à l’achat de matériel américain plutôt qu’à notre industrie renforce notre dépendance”, www.marianne.net , 16 de julho de 2025.

[9] Ivan Krastev, “Même s’il est organisé à la manière d’une cour impériale, le gouvernement de Trump est révolutionnaire”, Le Monde, 1º de março de 2025, p. 33.

[10] Fareed Zakaria, “Le système construit après 1945 peut survivre en dépit de la défection américaine”, Le Monde, 1º de março de 2025, p. 32.

[11] Gesine Weber, “Les Européens doivent dessiner une Europe post-Amérique, l’Ukraine sera leur premier grand test”, Le Monde, 4 de março de 2025, p. 27.

[12] Cópia fidelíssima; de acordo com o Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque De Holanda Ferreira, é uma locução latina que significa “Para que nada seja mudado”.

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