Por Giuseppe Gagliano*
A predileção do Ocidente pela criação de narrativas vencedoras, ao invés de enfrentar a realidade dos fatos no terreno, dificulta a resolução diplomática de conflitos.
A guerra de informação assumiu um papel central nas estratégias ocidentais, transformando-se de mero apoio a objetivos de guerra mais vastos em um fim em si mesma. O principal objetivo agora é controlar a narrativa vencedora, considerada mais crucial do que enfrentar a realidade dos fatos no terreno. Desta perspectiva, a vitória virtual alcançada através da manipulação das percepções públicas é considerada mais significativa do que qualquer sucesso concreto no campo de batalha.
Esta estratégia visa criar uma realidade imaginada que ressoe com o público, tanto em nível nacional como internacional, através de meios de comunicação complacentes e narrativas simplificadas. O objetivo é alinhar ideologicamente as sociedades ocidentais contra um inimigo comum, apresentado como extremista e como uma ameaça à democracia e aos valores compartilhados. Esta abordagem cria um alinhamento social e político rígido, o que torna difícil o desvio da linha oficial e prende os governos a falsas expectativas.
Um exemplo significativo desta estratégia é a incursão da OTAN na região de Kursk, escolhida pelo seu forte valor simbólico. A operação, se fosse bem sucedida, teria permitido que as forças ucranianas ganhassem uma influência significativa em negociações, talvez forçando a Rússia a reduzir a sua presença em Donbass. No entanto, o fracasso da incursão reforçou a determinação da Rússia em continuar suas operações na Ucrânia, aumentando ainda mais a desconfiança no Ocidente. A utilização de equipamento militar alemão em uma área historicamente significativa como Kursk evocou memórias de invasões passadas, alimentando o sentimento de ameaça existencial percebida na população russa.
Este foco na guerra de informação e na criação de narrativas vencedoras pode levar a uma desconexão da realidade e a decisões baseadas em percepções distorcidas. A retórica simplificada, centrada em conceitos como “nossa democracia” e “nossos valores”, procura gerar um consenso unânime contra qualquer forma de extremismo percebido. No entanto, esta abordagem corre o risco de aumentar as tensões e levar a uma escalada involuntária de conflitos.
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Historicamente, a Rússia foi atacada diversas vezes em seu flanco ocidental, como durante as invasões de Napoleão e Hitler. A memória destes acontecimentos está profundamente enraizada na consciência coletiva russa, tornando a escolha de Kursk para uma incursão militar um ato particularmente provocativo. A Batalha de Kursk em 1943, um dos maiores confrontos de tanques da história, representa um momento crucial em que a União Soviética repeliu com sucesso as forças nazistas, marcando um ponto de virada decisivo na Segunda Guerra Mundial. A presença de equipamento alemão em Kursk reabre hoje feridas antigas e intensifica a percepção russa da agressão ocidental.
O Ocidente, através destas ações simbólicas, pode acreditar que está minando a segurança e a estabilidade da liderança russa, procurando retratar a Rússia como uma entidade frágil e vulnerável, pronta a entrar em colapso sob pressão. Contudo, estas estratégias correm o risco de ter o efeito oposto, fortalecendo o nacionalismo russo e consolidando o apoio interno à liderança de Moscou. A sensação de ser atacado pelo Ocidente poderia, de fato, unir ainda mais a população russa em torno do seu governo, reduzindo as possibilidades de desacordo interno e comprometendo as esperanças de uma mudança de rumo político.
A estratégia ocidental de enfatizar narrativas vencedoras em detrimento da realidade concreta apresenta, portanto, um perigo significativo. Ao procurarmos manter uma imagem de força e coesão interna, corremos o risco de perder de vista os fatos no terreno e de tomar decisões baseadas em percepções distorcidas ao invés de avaliações estratégicas racionais. Esta desconexão poderá levar a graves erros de cálculo, aumentando a possibilidade de confrontos diretos e não calculados entre a Rússia e a OTAN.
Em conclusão, a prioridade dada à guerra de informação e à criação de narrativas vencedoras corre o risco de tornar a resolução diplomática de conflitos mais difícil. A escolha de explorar símbolos poderosos como Kursk não só agrava as tensões entre a Rússia e o Ocidente, mas também torna mais complexo o regresso ao diálogo e à cooperação. À medida em que a desconfiança mútua se aprofunda, aumenta o perigo de uma guerra total, empurrando as partes para uma situação em que as opções pacíficas são gradualmente corroídas em favor de um confronto mais direto e potencialmente devastador.
Publicado no Cf2R.
*Giuseppe Gagliano é presidente do Centro Studi Strategici Carlo de Cristoforis, em Como, Itália. É membro do comitê internacional de assessores científicos do Centre Français de Recherche sur le Renseignement (Cf2R).