Análise estratégica, tática e operacional da ofensiva ucraniana em Kursk

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Tanques ucranianos T-64 de fabricação soviética na região de Sumy, perto da fronteira com a Rússia, em 11 de agosto de 2024 (Roman Pilipey/Getty Images).

Tanques ucranianos T-64 de fabricação soviética na região de Sumy, perto da fronteira com a Rússia, em 11 de agosto de 2024 (Roman Pilipey/Getty Images).

A porosidade da fronteira e a negligência da Rússia quanto aos relatórios de inteligência foram determinantes para o sucesso inicial da Ucrânia, que agora enfrentará dificuldades logísticas para sustentar as posições ocupadas.


Introdução

No dia 6 de agosto, durante a noite, um agrupamento de combate ucraniano constituído por uma ponta de lança blindada promoveu uma incursão furtiva na fronteira entre Sumy (região da Ucrânia) e Kursk (região russa adjacente), contornando o posto de controle de fronteira através de uma rápida manobra em um cinturão florestal situado no ponto de entrada da operação. Nesta manobra ligeira furtiva dezenas de recrutas russos e guardas de fronteira foram capturados para posterior barganha em troca de prisioneiros ucranianos, principalmente do antigo batalhão Azov.

Após ingressarem em território russo, as forças ucranianas, constituídas em 3-6 DRGs (destacamentos de reconhecimento e sabotagem) realizavam rápidas manobras, dispersando-se em assentamentos fronteiriços vazios e sem qualquer tropa ou linha fortificada.

A porosidade da defesa territorial russa e a negligência do alto comando militar em relação aos relatórios de campo da inteligência militar que alertava sobre a concentração e deslocamento de diversas formações de combate ucranianas foi determinante para que estas ganhassem vantagem tática e impulso operacional sem resistência de unidades militares russas, as quais não se encontravam nos assentamentos visados e foram tardiamente acionadas para uma resposta de contenção.

Após a ocupação de vários comandos ucranianos em assentamentos circunscritos a uma área de até 120 km², os combates se nivelaram a Korenevo a noroeste e a Sudzha, cidade situada a leste e cuja importância é definida pelo entroncamento rodoviário cujo controle permitiria às unidades ucranianas formarem novos eixos de progressão e dispersão de unidades em novos assentamentos russos da região de Kursk.

Este estudo buscará analisar aspectos estratégicos, táticos e operacionais dessa ofensiva, a dinâmica dos combates, a natureza da tática empregada pelos ucranianos, as falhas do alto comando militar russo e a pouca efetividade estratégica desta ofensiva para a própria Ucrânia, diante da insustentabilidade de continuar a penetração em novas áreas, desenvolver novos eixos de progressão e os limites de recursos humanos e militares dos ucranianos para manterem a iniciativa operacional ofensiva.

Táticas empregadas, perdas elevadas em pouco tempo de operação e abordagem estratégica das FAU na região de Kursk

Pelo menos três brigadas das Forças Armadas da Ucrânia (FAU), com até 6.000 soldados e armados com equipamento padrão da OTAN, avançaram sobre a região de Kursk.

Na ofensiva, a natureza da operação de ataque das FAU se modificou em relação às suas duas tentativas anteriores de atacar a região de Belgorod; agora as unidades do Exército das FAU estão completamente envolvidas abertamente, ao contrário de formações proxies e não declaradamente vinculadas às forças regulares ucranianas, tais como as que foram manejadas pela inteligência militar ucraniana (GUR) durante a operação de incursão em Belgorod em março deste ano, quando empregaram uma formação paramilitar conhecida como Corpos de Voluntários Russos (RDK).

Em várias análises analíticas do que está acontecendo agora na região de Kursk, surgem constantemente algumas estimativas astronômicas da força do inimigo. Alguém escreve sobre até oito brigadas das Forças Armadas da Ucrânia, incluindo as de elite, como, por exemplo, as 80ª e 82ª Brigadas de Choque Especializadas, as 22ª e 61ª Brigadas de Infantaria Mecanizada, bem como uma dispersão de várias brigadas defensivas e muitos meios de reforço.

É claro que não existem oito brigadas na região de Kursk e mesmo, em princípio, na zona próxima da fronteira. Brigadas ucranianas inteiras raramente são vistas em qualquer lugar agora: muitas vezes as unidades mais prontas para o combate são desmontadas batalhão por batalhão e podem estar localizadas em setores completamente diferentes da frente.

Como componente terrestre das FAU, estiveram envolvidos batalhões da 82ª Brigada Aerotransportada, 80ª Brigada de Assalto Aéreo (considerada uma das mais poderosas, equipadas e rápidas brigadas das FAU), a 22ª Brigada Mecanizada, 88ª Brigada Mecanizada, 103ª Brigada de Tropas Aerotransportadas e unidades do 54º Batalhão de Defesa Territorial, correspondendo ao grupo de ataque principal que deflagrou a operação.

Soldados de tais brigadas começaram a sofrer perdas já em 6 de agosto , diante da dispersão em povoados diversos e diluição do poder de ataque.

No segundo dia, as forças ucranianas conseguiram ampliar a zona de controle nas áreas fronteiriças da região de Kursk. À noite do dia 7 de agosto, até 10 aldeias fronteiriças estavam sob controle direto e indireto das FAU, chegando a 28 assentamentos no dia 12 de acordo com o governador de Kursk.

Muitos comandos ucranianos empregaram prisioneiros recém liberados em um acordo de anistia judicial, sendo remetidos para ataques diretos a fim de criarem pontos de tensão e atrito com as forças russas que chegavam paulatinamente.

Os agrupamentos de combate ucranianos avançaram usando equipamentos soviéticos e da OTAN: tanques T-64BV ou T-80BV, veículos de remoção de minas UR-77, veículos de engenharia IMR-2, BTR-80, veículos blindados de transporte de pessoal com rodas Stryker dos EUA e veículos de combate de infantaria alemães Marder. Muitos destes veículos utilizavam redes antidrones. O uso de artilharia, drones e defesas aéreas desempenharam um papel de apoio crítico.

Atrás deles, mas já no território da região de Sumy – estavam agrupadas mais duas brigadas como reserva. O apoio de fogo para sustentar a progressão foi provido pela 26ª brigada de artilharia, com emprego de sistemas múltiplos de lançamento de foguetes como BM-21 Grad; BM-27 Uragan; obus autopropelido polonês Krab e Gyasinth B e obuses rebocados M-777 de origem norte-americana. Veículos de combate de infantaria individuais (Bradleys americanos) também foram avistados, e nas imagens que surgiram das Forças Armadas Ucranianas rompendo a fronteira, tanques e vestígios de outros veículos rastreados são visíveis.


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• Rodolfo Laterza e Ricardo Cabral (Autores)
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No contexto da ofensiva ucraniana na região de Kursk, de acordo com relatos de campo coletados para este trabalho, além do uso maciço de novos sistemas de guerra eletrônica para combater os drones FPV russos que chegassem na linha de frente, sistemas móveis de guerra eletrônica foram implantados principalmente para bloquear as comunicações russas na área de incursão e progressão. A propósito, isso não foi difícil pela simples razão de que a comunicação russa nos locais foi realizada precariamente por meio de dispositivos móveis entre os recrutas que estavam no posto de observação e os guardas de fronteira do FSB. Ficou claro que foi movendo a guerra eletrônica atrás do grupo de ataque em progressão que os ucranianos alcançaram sucesso inicial na luta contra drones FPV inimigos, ao mesmo tempo em que lutaram simultaneamente contra drones de reconhecimento.

O uso maciço de drones FPV contra as posições russas permitiu não só suprimir os postos russos de tiro e de controle fronteiriços, mas garantiu a aproximação de unidades de infantaria estruturadas em destacamentos móveis de reconhecimento e sabotagem, o que permitiu o controle das estradas na região de Kursk.

No momento da aproximação através da fronteira, as forças armadas da Ucrânia tinham um grupo de combate de mais de mil pessoas em progressão.

No segundo dia após o avanço das FAU, as medidas tentativas de estabilização do front começaram, não sem problemas diversos nas estruturas de combate russas, como má coordenação, lentidão de mobilização de reforços, comunicações falhas e mau gerenciamento das unidades implantadas: a aviação tática trabalhou várias vezes mais ativamente através do emprego dos helicópteros de ataque Ka-52, e a artilharia de longo alcance da reserva foi puxada mais próxima à linha de tensão, com ataques de barragem para suprimir a retaguarda e uso de fogo de contrabateria.

Foram grupos móveis de ataque das FAU que entraram em combate, majoritariamente equipadas com veículos blindados de rodas leves e apoiadas por drones, cuja tarefa era ocupar simultaneamente o máximo de território possível. No segundo dia da ofensiva, surgiram relatos de unidades de infantaria das FAU entrando na região de Kursk e tentando se firmar nas linhas alcançadas.

No mesmo dia 8 de agosto, o Ministério da Defesa da Federação Russa informou sobre a morte de 400 militares e perda de outras 32 unidades de equipamentos militares diversos. Ainda quase considere exagerado esse quantitativo e esteja no contexto de guerra de propaganda, na verdade a metade deste número em soldados e sistemas de armas já é comprometedor da sustentabilidade das operações de combate em muitos dias sucessivos pelas forças ucranianas.

No contexto das perdas, é especialmente importante que um grande número de veículos blindados leves tenha sido perdido conforme imagens e relatos de canais militares russos e ucranianos, nos quais as Forças Armadas da Ucrânia (como em 2022 perto de Kharkov) estejam tentando se mover rapidamente de aldeia em aldeia através do uso de blindados leves, tal como a doutrina de armas combinadas da OTAN preconiza. Grandes perdas únicas no emprego desta doutrina indicam a cobertura de ataques de saturação e de precisão pelas forças russas de locais de concentração, colunas blindadas, pontos de implantação de recursos e pessoal, o que significa que as forças ucranianas são observadas do céu a partir de drones de reconhecimento em missões ISR e trabalham o mais rápido possível em coordenação com a artilharia e aviação tática.

Os veículos blindados leves envolvidos são menos tenazes e há poucos tanques para ataques concentrados a fortificações. Com tais limitações de equipamento, é impossível atacar seriamente as profundezas da defesa em modo contínuo, assim como sem cobertura aérea fica muito difícil consolidar posições em avanço profundo.

O rápido ataque de grupos móveis das Forças Armadas da Ucrânia permitiu que grupos separados avançassem até uma profundidade de 15 km e assumissem o controle de uma seção da faixa de fronteira com uma largura de cerca de 15 km.

Após as forças do primeiro escalão, as reservas ucranianas foram introduzidas em operações de progressão e apoio, e unidades de artilharia foram desdobradas ao longo da fronteira. As principais tarefas de fogo da artilharia e da força aeroespacial da Federação Russa são direcionadas para neutralizar essas forças de reserva desdobradas pela Ucrânia.

O transporte de equipamentos e reforços adicionais no solo desde ontem à noite para as forças armadas da Ucrânia começou a se complicar gradualmente: está se tornando cada vez mais difícil implantar veículos blindados e tanques através dos locais de avanço anteriores.

Entretanto o progresso no terreno realmente estagnou já no dia 10 de agosto conforme denúncia do New York Times a partir de informes de campo: agora o Grupo Norte das Forças Armadas da Federação Russa continua a atacar o território da região de Sumy – e, muito provavelmente, o segundo e terceiro escalões das FAU entrarão em batalha com menos organização e sem condições de afetar radicalmente a situação. Embora as batalhas perto de Sudj, na área de Korenev, continuem e as forças russas não tenham conseguido expulsar as unidades ucranianas da área ocidental da cidade e assegurado o controle do centro administrativo, o sucesso tático em tais operações é apenas um detalhe diante do panorama estratégico desafiador para a Ucrânia e OTAN com o resultado inconclusivo desta ofensiva.

A Ucrânia está com um batalhão atualmente operando dentro de Kursk e vários batalhões com mais de dois mil soldados ao todo na fronteira de Sumy. Como foram ataques furtivos em área porosa e cheia de florestas, tiveram facilidade de realizar uma operação stealth, aproveitando as falhas da inteligência russa que negligenciaram o acúmulo de forças na área.

A questão principal que se deve refletir é a capacidade das Forças Armadas da Ucrânia de fornecer transporte, evacuação de feridos, rotação de pessoal com sincronia diante da necessidade de combate. Se esses fatores não forem devidamente considerados, as tropas em avanço das FAU esgotarão naturalmente os suprimentos trazidos com elas. E então toda a operação cairá no bloqueio e captura de grupos dispersos através de florestas e outros abrigos. Para o desdobramento de forças sérias na região de Kursk, ainda não há espaço e condições suficientes, o que indiretamente pode indicar a natureza diversionária do ataque.

O grande desafio das Forças Armadas da Ucrânia na área de Sverdlikov, que surgiu com o avanço do batalhão de assalto ucraniano, é não apenas manter o terreno ocupado, mas também estruturar uma logística suficiente para abastecer as formações de combate alojadas na zona de ocupação. O terreno ocupado não é fácil: planícies com estradas sinuosas e numerosas faixas florestais, pelas quais é difícil contornar as principais estradas.


MAPA 1: https://t.me/s/RVvoenkor?before=74629.


A porcentagem de danos infligidos a caminhões, blindados e tanques por meio de drones kamikaze (loitering ammunition) como o sistema Lancet 3 está aumentando, assim como o emprego de munições de precisão de artilharia Krasnopol, que está sendo maciçamente usado, o que indiretamente indica a implantação de unidades de artilharia especializadas do lado russo.

A suposta linha de defesa das Forças Armadas da Ucrânia nesta área é de 15 × 15 km, mas o lugar mais estreito na área de Glyakh e Prado Grosso tem a forma de um gargalo de apenas cinco quilômetros de largura. Se as forças armadas da Ucrânia irão transferir reservas para tentar expandir o site, ficará claro nas próximas horas 24-48 horas. Tal decisão faria sentido nas primeiras horas da operação, mas agora, após a transferência das reservas das forças armadas russas para essa direção, a entrada de pelo menos uma brigada adicional condensará as ordens da mesma maneira que na região de Kharkov, que será um presente para a artilharia do grupo russo de combate.

Ao mesmo tempo, não se pode excluir que haverá outra tentativa de atacar a região de Belgorod e, possivelmente, Bryansk, pois as formações ucranianas situadas na fronteira de Sumy englobam uma segunda e uma terceira reservas ainda não plenamente acionadas, embora já bastante depreciadas e desgastadas por contra ataques russos no dia 10 de agosto, quarto dia da ofensiva ucraniana no território de Kursk.


MAPA 2: https://t.me/s/RVvoenkor?before=74629.


Até a data referenciada, novas formações ucranianas foram avistadas na direção de Kursk:

  • 225º Batalhão De Assalto Separado;
  • 130º Batalhão De Reconhecimento Separado;
  • Unidades da 116ª Brigada Mecanizada Separada, além do grupo de drones.

Este mapa também mostra unidades de:

  • 22ª Brigada Mecanizada Separada;
  • 61ª Brigada Mecanizada Separada;
  • 88ª Brigada Mecanizada Separada;
  • 80ª Brigada De Assalto Aéreo Separada;
  • 103ª Brigada De Defesa Territorial Separada;
  • 54º Batalhão De Reconhecimento Separado;
  • Grupo UAV Khorne/Immaterium;
  • Grupo de UAV do Projeto M2.

É importante compreender que as Forças Armadas da Ucrânia utilizarão tais unidades gradativamente para reforçar posições eventualmente tomadas, não empregando força total em um único ataque.

Em conclusão, foram utilizadas pelas forças ucranianas táticas já testadas de acordo com os cenários especificados. Por que isso funciona? Porque na ausência de uma linha contínua de defesa e barragens na forma de lacunas e campos minados, é viável comandos em unidades mecanizadas contornarem postos de controle, obtendo uma progressão rápida com aproveitamento da cobertura de florestas e a presença de clareiras e estradas. Esse cenário facilitado pela geografia e absoluta negligência do alto comando militar russo que desconsiderou informes de campo sobre a presença há quase dois meses de tropas ucranianas se concentrando na fronteira, permitiu aos DRGs ucranianos avançarem nos dois primeiros dias a uma velocidade bastante elevada, aproveitando a ausência de linhas defensivas e baixo efetivo na região.

Objetivos específicos da manobra pela perspectiva ucraniana

Na verdade, observamos com tais incursões ucranianas em Kursk os seguintes possíveis objetivos:

  • Distrair as forças russas de outros setores do front, reduzindo o nível de avanço nas direções Pokrovsky e Toretsk;
  • Desalojar forças russas no eixo norte de Kharkov, facilitando a recuperação pelas FAU de áreas como Glubokoye e Volchansk, gerando derrotas táticas aos russos nesta área e nivelando esse setor do front, atualmente envolto em batalhas posicionais que prejudicam as forças ucranianas que tentam segurar as cidades em escombros;
  • Obter apoio doméstico e propaganda favorável diante de várias derrotas diárias em inúmeros setores do perímetro operacional. Além disso, neutralizar temporariamente a insatisfação cada vez maior da sociedade ucraniana com a mobilização forçada e perdas colossais denunciadas pelos comandantes de brigadas e parlamentares como a Bezuglaya da Comissão de Defesa da Rada;
  • Controlar alguns assentamentos fronteiriços ainda que ao preço de muitas perdas para criar distração e fixação de recursos humanos e militares russos neste setor, além de um sentimento permanente de insegurança na fronteira de Belgorod–Kursk para a população russa;
  • Gerar impacto midiático favorável na mídia ocidental mainstream justificando novas assistências e provisões de recursos bilionários.

Porém, provocar uma realocação de recursos e unidades de combate das Forças Armadas da Federação Russa da região do Donbass, Kherson ou Zaporizhia para reforçar o setor de Kursk sob ataque ucraniano é bastante improvável e impreciso, pois a Rússia tem contingente mais do que suficiente para conter esses ataques ucranianos nas áreas fronteiriças de Kursk, pois muitas unidades das tropas de fronteira do FSB e da Rosgvardia estão envolvidas, além do próprio Exército e VKS, sem necessidade portanto de realocação de brigadas envolvidas em setores do front na Ucrânia.

É importante compreender que não se trata de um ataque em profundidade – as forças ucranianas planejam primeiramente defender as áreas fronteiriças capturadas da região de Kursk e barganhar uma retirada mediante alguma concessão de controle territorial russo nas regiões ocupadas em território ucraniano.

As novas (e velhas) falhas do alto comando militar russo e (novamente) o fator crítico do baixo efetivo russo

Para analisar o teatro de operações de Kursk com máxima verossimilhança com os acontecimentos, leve-se em conta que infelizmente a “névoa da guerra” é agravada pelos problemas de comunicação nas zonas de combate. As Forças Armadas da Ucrânia não só conduzem uma guerra eletrônica ativa, mas também derrubam deliberadamente torres de telefonia celular na região ocupada, a fim de privar as Forças Armadas Russas de canais alternativos.

Entretanto, mediante análise de fontes de campo e de inteligência aberta com graus de veracidade plausível, pode-se depreender uma grave negligência do alto comando militar russo em avaliar as informações repassadas pela inteligência militar local quanto à concentração de forças ucranianas na fronteira de Sumy com Kursk.

Outro grave problema foi que as tropas russas eram inicialmente muito poucas para repelir uma ofensiva limitada – circunstância que se repete neste conflito definido pela escassez de efetivo russo.

O problema da ofensiva das Forças Armadas Ucranianas perto de Kursk pela perspectiva do comando militar russo não é o número de tropas e equipamentos inimigos, mas as táticas de guerra de manobra, para as quais as forças russas não estão ainda preparadas para uma contenção rápida e evoluída, tal como ocorreu na ofensiva de setembro de 2022 em Kharkov, quando as forças ucranianas conseguiram aproveitar a densidade extremamente insuficiente das Forças Armadas russas na região e ocupar rapidamente vastos territórios.

A frente da guerra russo-ucraniana se estende por mais de 1,5 mil km – isso equivale por exemplo à linha de contato que a União Soviética enfrentou em 22 de junho de 1941 durante a operação Barbarossa, com a diferença de que atualmente é ocupada por forças militares e de defesa de fronteira várias vezes menores, em número insuficiente para guarnecer com segurança todo perímetro.

As Forças Armadas da Federação Russa (como as Forças Armadas da Ucrânia) não podem construir um muro impenetrável e contínuo ao longo de toda a fronteira. Ambos os lados dependem de uma rede de apoio consistindo em pequenos grupos de infantaria e campos minados, sendo que reforços e reservas localizados na retaguarda próxima servem a várias dessas posições simultaneamente. Ao mesmo tempo, a densidade de tropas em zonas tranquilas pode ser significativamente inferior à dos locais onde ocorrem combates graves.

Isto é quase sempre suficiente, especialmente se o reconhecimento eficaz por sistemas ISR revelar a concentração das forças atacantes. O exemplo mais marcante foi o fracasso do ataque ucraniano a Belgorod em março deste ano, quando as FAU não conseguiram superar os campos minados, com os soldados russos entrincheirados resistindo ao ataque, permitindo que as reservas chegassem rapidamente e causassem um massacre nas Forças Armadas Ucranianas, tal como se verificou , com estimativas de mais dez mil ucranianos e mercenários estrangeiros mortos.

Mas em locais sem efetivo suficiente, os problemas para a Rússia começam quando ocorre um avanço na primeira linha de defesa aproveitando as lacunas de defesa na área. Desde a época de Balakleya, as Forças Armadas da Federação Russa não têm um antídoto contra grupos das Forças Armadas da Ucrânia em equipamentos leves que se espalham pela retaguarda.

Uma solução poderia ser alocar grupos de operadores de drones FPV para áreas de retaguarda como reserva móvel (e idealmente munições vagantes como os Lancet) e criar as suas próprias unidades rangers capazes de responder rapidamente a tais avanços.

Até que isso seja feito, os sucessos locais das Forças Armadas Ucranianas, como o ataque em curso a Kursk, são inevitáveis.

De acordo com o canal e think tank Rybar, até abril de 2024, a região de Kursk era a zona de responsabilidade do grupo de tropas “Ocidente”: os “nortistas” apareceram mais tarde. Em dezembro de 2023, Alexey Polyakov, o ex-comandante da 144ª divisão durante o período de “guardas”, foi nomeado responsável pelo local. Polyakov era conhecido por desacelerar o avanço das tropas inimigas durante o colapso da defesa das tropas do Distrito Militar Ocidental na região de Kharkov no outono de 2022.

De acordo com o mesmo canal militar, o general Polyakov durou apenas um mês em seu cargo. Após uma inspeção do Estado-Maior das Forças Armadas da Federação Russa, o trabalho de Polyakov foi considerado bem-sucedido (foram abertas trincheiras, estreita interação com voluntários, aulas para treinamento de operadores de drones FPV). Após o relatório bem-sucedido do comandante ao topo, a liderança do Distrito Militar Ocidental recomendou enviá-lo para outra área problemática.

No início de 2024, a direção tática do setor de Kursk era chefiada pelo general Igor Tomshin, tido como inexperiente, embora considerado conveniente para o Estado-Maior, já que redigia relatórios corretos e não exigia recursos adicionais significativos.

Depois que o grupo de tropas do setor “Norte” lançou uma ofensiva na direção do norte de Kharkov, a direção tática foi chefiada pelo tenente-general Esedulla Abachev. Nas condições de ênfase máxima na ofensiva em Liptsy e Volchansk, bem como na revisão dos planos para um ataque preventivo em Sumy, o número de forças confiadas, meios operacionais, bem como a oportunidade de redistribuir recursos militares e humanos que foram “congelados” diante dos interesses do grupo que avançava e a necessidade de forças para defesa de Belgorod acabaram por criar uma situação de negligência e importância terciária para o setor de Kursk, revelando-se comprovadamente insuficiente para o esforço de contenção do ataque ucraniano.

Ao mesmo tempo, um impulso agressivo no campo da mídia começou com sucessos perto de Kharkov e Donetsk, obscurecendo os riscos nas áreas fronteiriças e a iminência de uma operação furtiva de forças ucranianas em alguma zona mal defendida. As teses de que falta vontade de combate às formações ucranianas, de que estão prontas para render-se em massa e estão prestes a realizar negociações de paz começaram a aparecer cada vez com mais frequência nos relatórios oficiais, causando otimismo e possível cegueira cognitiva quanto aos inúmeros riscos ainda existentes com as forças militares ucranianas e com a OTAN – que atua com protagonismo em todo o planejamento operacional, garantia de consciência situacional através de seus sistemas de reconhecimento aeroespacial, gerenciamento estratégico do campo de batalha e infraestrutura logística de suporte contínuo.

Apesar da euforia, muito possivelmente os militares do alto comando do Estado-Maior das Forças Armadas da Federação Russa não prestaram atenção aos relatos da inteligência a respeito de um ataque iminente vindo da direção tática de Kursk, diante das evidências concretas sobre a reunião forças pelas FAU.

Tudo isto confirma mais uma vez que após 2,5 anos de operações militares, o planejamento e elaboração de operações de combate no Exército Russo funciona eficazmente no máximo ao nível tático-operacional, deixando muito a desejar no aspecto estratégico, o que gera crescente insatisfação na tropa e na sociedade russa, principalmente com o general Valery Gerasimov, considerado arcaico e refratário às necessidades de aprendizagem e mudança, conforme evolua a dinâmica dos combates.

Panorama atual (12 de agosto de 2024)

Os combates continuam ferozes na região invadida pelas forças ucranianas na oblast de Kursk, tendo havido estabilização do front pelas forças russas no quarto dia de operação. A cidadela de Korenevo, muito atacada pelas forças ucranianas, contínua sob o controle das Forças Armadas Russas. Há relatos conflitantes da cidade de Sudzha, no qual parte da cidade já está em zona cinzenta. A própria cidade foi significativamente danificada pelo fogo de artilharia e sua captura permitiria à Ucrânia perturbar a distribuição de gás natural para países europeus importadores.

As Forças Armadas da Ucrânia tentaram diversas vezes isolar Sudzha, assumindo o controle da rede rodoviária ao seu redor, buscando estabelecer o cerco operacional da cidade, tentando contorná-la pelo sudeste. No dia 12 de agosto um relatório atualizado do canal militar Rybar apontou controle do distrito pelas forças ucranianas.


MAPA 3: https://www.bbc.com/news/articles/crkm08rv5m0o.


Até o dia 12 de agosto, a profundidade de penetração das Forças Armadas da Ucrânia é de 12 km, a largura é de 40 km, disse o governador Smirnov em reunião com Putin. Cerca de 180.000 pessoas estão sujeitas a evacuação, 121.000 pessoas saíram e foram evacuadas, gerando um grande impacto humanitário à população da região.

Até o momento, ambas forças beligerantes sofreram perdas significativas durante os combates. Conforme pesquisa minuciosa trazida pelos canal militares Voenktor e Military Summary, as forças ucranianas perderam até o dia 11 de agosto, durante os combates na direção de Kursk, até 1.610 militares, 32 tanques, 23 veículos blindados, 17 veículos de combate de infantaria, 136 veículos blindados de combate, 47 veículos utilitários, quatro sistemas de defesa aérea, um sistema MLRS BM-21 Grad.


MAPA 4: https://t.me/s/RVvoenkor?before=74629.


Do lado russo, as perdas também foram significativas – três helicópteros foram destruídos ou danificados, vários tanques, dezenas de veículos de combate de infantaria e peças de artilharia, mais um número desconhecido de pessoal, entretanto no mínimo na proporção de centenas de mortos. A Ucrânia reivindica aproximadamente 40 prisioneiros, ao passo em que vários soldados e oficiais das FAU também foram capturados.

A Ucrânia está atualmente usando as forças de duas brigadas com unidades de reforço em operações ativas, mas está se preparando para introduzir reservas adicionais na zona ofensiva para desenvolver o sucesso (potencialmente até quatro brigadas), por isso é muito cedo para falar sobre estabilização total. O Estado-Maior Geral das Forças Armadas Russas está transferindo reservas adicionais para a região de Kursk para estabilizar a situação, com a intenção óbvia de parar o avanço das forças ucranianas, restringindo sua atividade operacional e avançando para expulsar metodicamente as forças invasoras. As Forças Armadas da Ucrânia, por sua vez, se esforçarão para manter o ímpeto da ofensiva, ampliando a frente de ataques às custas das reservas, com opção de assalto a Sudzha e Korenevo, bem como um plano mais ambicioso de ataque a Kurchatov ou tentando promover incursões em áreas pouco defendidas em Bryansk e Belgorod, embora haja limites em recursos para tais investidas e as perdas crescentes em efetivo e equipamentos estejam degradando muito rapidamente as brigadas envolvidas, criando perda de impulso operacional e revezes táticos crescentes.

Também na possível agenda de ataques midiáticos e demonstrativos por parte das forças ucranianas para lograr alguma posição favorável em futuras negociações de paz com a Federação Russa, está a questão das novas tentativas de organizar desembarques através do Rio Dnieper na área de Energodar e na central nuclear de Zaporizhzhya. Tudo isso é feito às custas das reservas que atualmente estão cada vez mais ausentes na região de Toretsk, Krasnoarmeysk, Pokrovsky e outras áreas de Donbass, onde as forças russas ganharam níveis quantitativos de maior escala de progressão e controle de novas áreas.

A difícil tarefa das Forças Armadas da Federação Russa será frustrar os planos operacionais diversionistas e ousados dos ucranianos, localizar as reservas ucranianas existentes nas áreas onde o Estado-Maior pretende usá-las para gerar novos desgastes à Federação Russa, ao mesmo tempo em que desenvolve suas operações ofensivas em direções que sejam bem-sucedidas para os objetivos russos de capturar toda região de a Donetsk e avançar com maior profundidade na região de Kharkov, principalmente à margem esquerda do Rio Zherebets.

Do ponto de vista das avaliações gerais, aguardaremos o fim da batalha na região de Kursk para no mínimo mais de um mês considerando as incursões ucranianas em Belgorod ocorridas em março deste ano.

Apesar da escassez crescente de efetivo e dificuldades enormes no conflito militar com a Rússia, é impossível não notar que, com a ofensiva em Kursk, as Forças Armadas da Ucrânia conseguiram uma surpresa operacional-tática (assim como durante Balakleya em setembro de 2022) e tomaram a iniciativa operacional devido à vulnerabilidade descoberta na formação de tropas russas na região.

Os próximos dias serão decisivos para o resultado desta operação, que tem levado a críticas crescentes na mídia ocidental mainstream e em canais militares ucranianos pela insustentabilidade logística e perda extremamente elevada de sistemas de armas e tropas que deveriam ser preservadas para uma estratégia de resistência mais consolidada, principalmente no setor norte de Kharkov onde as forças ucranianas se desgastam em contra-ataques infrutíferos para retomar Glubokoye e Volchansk, e permanecem em batalhas posicionais prejudiciais diante dos sucessivos ataques de saturação exercidos pela artilharia e aviação russas com bombas planadoras.

Da mesma forma, o impulso do avanço russo em diferentes direções de Donetsk, aliado à escassez crescente de efetivo qualificado e bem treinado pela Ucrânia para impedir derrotas e perdas de áreas com perdas cumulativas em pessoal, criam crescente insatisfação nas fileiras militares ucranianas e acusações contra a ingerência política do gabinete do presidente Zelensky em relação à estratégia de defesa do país, considerando informações de que o comandante-geral das Forças Armadas da Ucrânia, Olexandr Sirsky, teria se oposto à operação em Kursk.

A realidade baseada no curso dos eventos e complexidade da operação de contenção e derrota das unidades de reconhecimento e sabotagem dos ucranianos que estão dispersos nos povoados indica uma operação de contra-ataque russo que poderá levar vários meses para derrotar os esquadrões e elementos de combate das forças ucranianas, diante da necessidade de limpeza de área e fatiamento de cada ponto para recuperação do terreno.

Em relação à população russa, esta ofensiva ucraniana tende a aumentar a crítica ao alto comando militar russo e à abordagem contida da operação militar especial e a guerra centrada em desgaste com recursos limitados, ao mesmo tempo em que reforça o desejo de mobilização e apoio a ações bélicas mais contundentes contra a Ucrânia e a OTAN.

Em relação ao apoio ocidental, se a ofensiva ucraniana irá gerar efeitos irá depender das próximas duas semanas. Se as forças ucranianas conseguirem se fixar ali, pode-se criar uma enorme hipérbole midiática que pode gerar mais justificativas de apoio.

Guerra centrada em desgaste e atrito com destruição gradual da força inimiga não ocorre sem a lógica do desgaste da própria força beligerante que assim define a estratégia. Toda e qualquer guerra tem alto preço e perdas.


Publicado no História Militar em Debate.


Fontes consultadas

MURPHY, Matt. Ukrainian troops now up to 30km inside Russia, Moscow says. BBC, 11 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/news/articles/crkm08rv5m0o.

HAMBLING, David. Ukraine’s Kursk Offensive Blitzed Russia with Electronic Warfare And Drones. Forbes, 9 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/davidhambling/2024/08/09/ukraines-kursk-offensive-blitzed-russia-with-electronic-warfare-and-drones/.

SEIBT, Sébastian. Incursion into Russia’s Kursk region: A risky gamble for Ukraine? France 24, 9 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.france24.com/en/europe/20240809-incursion-into-russia-s-kursk-region-a-risky-gamble-for-ukraine.

HARDIE, John. Analysis: Ukraine’s bold – and risky – gamble in Kursk. FDD’s Long War Journal, 9 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.longwarjournal.org/archives/2024/08/analysis-ukraines-bold-and-risky-gamble-in-kursk.php.

Canal Telegram Rybar. Disponível em: https://t.me/s/rybar?q=%23%D0%B4%D0%B0%D0%B9%D0%B4%D0%B6%D0%B5%D1%81%D1%82&before=62716.

Canal Telegram RVvoenkor. Disponível em: https://t.me/s/RVvoenkor?before=74629.

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