Por Fabrício Schiavo Avila*
Os Estados estão preparados para mobilizar grandes exércitos convencionais? Esta análise procura esta resposta pela avaliação do Exército iraquiano montado para enfrentar o Irã.
Resumo
A possibilidade de retorno da guerra convencional em larga escala aumenta a cada dia. O conflito que ocorre na Ucrânia desde 2022 demonstra o advento de práticas abandonadas pelos Estados como mobilização de reservistas, volta da conscrição militar e o ressurgimento da guerra de trincheiras. A digitalização dos meios de combate deixou os exércitos com a impressão de que no máximo existiriam brigadas com equipamentos de última geração para enfrentar insurgência em ambiente urbano. O conceito se deteriorou com a retirada norte-americana do Afeganistão em 2021.
Contudo, os Estados estariam preparados para fazer novamente grandes exércitos convencionais? Esse trabalho procura responder ao avaliar o Exército iraquiano e como foi montado para enfrentar o Irã a partir de 1980 e acabou sendo desmobilizado completamente em 2003. Foi uma experiência militar de quase 25 anos sobre a qual existe muita produção bibliográfica. A pesquisa mostra os componentes da organização militar e sua estruturação até nos detalhes do vínculo tribal do oficialato ao Exército. No sentido que a mobilização militar afeta o Estado e como poderia ser resolvido o paradoxo de maximizar poder, sem afetar a sobrevivência e usando a força na política. Igualmente, quais seriam os requisitos e desafios estatais ao montar um grande exército.
Introdução
O uso da força na política apresenta o problema da mobilização da guerra moderna. O Exército do Iraque enfrentou os Estados Unidos da América e seus aliados na Guerra do Golfo de 1991. O objetivo era a defesa do Iraque e a manutenção da invasão do Kuwait com a conscrição de quase um milhão de homens mobilizados no Exército iraquiano [1]. O advento do processo da modernização das forças armadas estadunidenses onde a digitalizações dos armamentos foi demonstrada no ataque, causou impactos profundos nas concepções da guerra para o século XXI [2]. Os estudos sobre armamentos avançou e a confiança na tecnologia pelos militares aumentou. Concomitantemente, a conscrição militar nos estados começou a ser abandonada assim como suas reservas foram gradativamente diminuindo.
Entretanto, o conflito de 1991 suscita várias questões. A massa de iraquianos mobilizados não levou as tropas aliadas ao atrito no deserto, mesmo com a posse dos rios Tigre e Eufrates e a capital Bagdá. As tropas mecanizadas da Guarda Republicana do Iraque não defenderam a infantaria iraquiana entrincheirada no deserto. A hipótese que a alta tecnologia militar dos estadunidenses suplantou as Forças Armadas iraquianas foi a resposta na época sobre o tema.
Conjuntura histórica
Este artigo versa sobre a viabilidade de grandes exércitos no século XXI e o Iraque apresenta um estudo de caso de um grande exército montado de forma rápida por países apoiadores externos [3]. Décadas depois do conflito e sob a análise das tensões do Oriente Médio, percebe-se que existem outros elementos na análise. A invasão do Kuwait pelos iraquianos em 1990 foi gerada pelo sistema internacional depois do colapso da União Soviética do pós-Guerra Fria (VIZENTINI, 1992) [4]. Os Estados Unidos da América foram beneficiados pois testaram novos armamentos, descarregaram estoques de munição da Guerra Fria, estabeleceram novos contratos de rearmamento para aliados, refizeram suas alianças e, de certo modo, amedrontaram seus rivais China e Rússia.
O componente intermediário das forças armadas iraquianas era o exército regular laico, nos moldes ocidentais. Como ocorre na maioria dos conflitos da região, esse tipo de organização militar sucumbe frente à organizações da elite social e da massa organizada pelo partido do regime; no Iraque era o partido Ba’ath.
A palavra Ba’ath significa renascimento em árabe. Esse partido tem origem no movimento de jovens oficiais árabes. Essa nova elite militar via em um tipo de socialismo modificado a redenção dos problemas estatais pós-colonialismo. Pregavam a união de todos os islâmicos na construção de um novo Estado que atendesse aos seus anseios (GIDDENS, 2001:249).
Porém, Cairo e Bagdá romperam politicamente em 1959. No Iraque, nessa época, o general Kassem era o presidente. Enquanto Bagdá se aproximava do Ocidente, Nasser era aliado dos soviéticos. Em 1958, o Ba’ath já era o principal partido da Síria, Iraque, Egito, Argélia e Iêmen. Dentro do mundo árabe de então, sabiam que Cairo, Damasco ou Bagdá, eram os únicos que poderiam aglutinar os Estados árabes em uma causa única. De 1958 até 1962, Nasser conseguiu anular a Síria, na República Árabe Unida (NASSER,1963:234-238).
Kassem no Iraque, até sua queda, conseguiu manter um equilíbrio entre os comunistas e o Ba’ath. A influência soviética estava evidente desde o tratado de 16 de março de 1959, e no mesmo ano Nasser rompia com Kassem. Temendo uma possível revolução, os dirigentes do Ba’ath, conseguiram a criação de uma Guarda Nacional Iraquiana (sob controle do partido), porque não confiavam no Exército. Foi a origem do Exército territorial com uma divisão de infantaria montada para as 19 províncias do país. Este extrato intermediário das forças armadas serviria, 40 anos depois, como a base da insurgência no Estado sob intervenção estadunidense. Em fevereiro de 1963, o partido Ba’ath toma efetivamente o poder no Iraque e instala Aref na presidência (MANSFIELD,1967). Este acaba com as antigas pretensões de fusão com o Egito, prevista para 1966. Esse Ba’ath pró-ocidente, jogou o partido no Egito em uma perseguição ferrenha por parte de Nasser que estava sob influência soviética. O Iraque agora conseguia manter Síria e Iêmen como aliados diretos contra o Egito.
O presidente Aref era um nacionalista árabe, mas não apoiava os comunistas iraquianos. Ainda dentro de sua política, estabeleceu como metas a oposição aos vestígios coloniais e a luta contra Israel. O Ba’ath era socialista pan-arábico. Por isso, os iraquianos apoiariam as revoluções contra regimes conservadores e apoiavam a criação de repúblicas no Oriente Médio.
Na economia, a atuação deveu-se ao incremento da infraestrutura. O Estado do Iraque atuaria efetivamente nas indústrias pesada, média e de mineração, no comércio estrangeiro, nas companhias bancárias, seguros e nas terras aráveis. Somente a agricultura traria algum benefício direto para o povo. As outras funções estão relacionados com a exploração, venda e transporte do petróleo. Em 10 de novembro de 1969, assume al-Bakr como ditador efetivo do Ba’ath no Iraque.
Os anos de 1972 e1973 apresentaram transformações profundas no Oriente Médio (HOBSBAWM, 2005: 393-420). Os egípcios expulsam os soviéticos e fazem a Guerra do Yom Kippur contra Israel. O Egito não reconquista o Sinai, mas a crise do petróleo que a guerra provoca muda a economia mundial. A política da região também muda porque o presidente Sadat começa a aproximar o Egito dos Estados Unidos da América e sua relação com o Iraque passa a entrar em uma fase de entendimento.
Os iraquianos assinam com o Irã um tratado de fronteira em 1975 sobre as partilhas das águas do Chatt-el-Arab que é a principal região de escoamento do petróleo desses países. Por esse mesmo acordo, os iranianos retirariam o apoio aos revoltosos do Curdistão iraquiano. Em abril de 1976, receberiam anistia do governo de iraquiano de al-Bakr e poderiam retornar aos seus lares. Havia rumores de uma união sírio-iraquiana para julho do mesmo ano.
Al-Bakr renuncia, no dia 16 de julho de 1979, por motivos de saúde. Assume o governo Saddam Hussein e o projeto de união é desfeito, talvez pelos rumores que o Ba’ath sírio tenha ajudado Hussein a tomar o poder e, no mesmo ano, a Revolução Islâmica do Irã aconteceu e os soviéticos invadem o Afeganistão. No dia 26 de novembro, os iraquianos atacaram a base aérea de Narjeh, no Irã.
LIVRO RECOMENDADO:
The Iran Iraq War: A military and strategic history
• Williamson Murray e Kevin Woods (Autores)
• Edição Inglês
• Kindle, Capa dura ou Capa comum
Tornando esse panorama ainda mais complexo, no dia 7 de junho de 1980, a Força Aérea israelense ataca e destrói a usina nuclear de Osirak, no Iraque, agravando a conjuntura. Dessa forma acaba com as possibilidades de construção de três ogivas, previstas para 1985. Depois de dois meses, no dia 17 de setembro de 1980, Saddam denunciou o Tratado de 1975 e invade o Irã (FERRO, 2008). Os regimes pró-Ocidente, conservadores ou liberais, estavam muito preocupados com os desdobramentos que a revolução Islâmica Iraniana poderia causar e apoiaram o Iraque.
Saddam Hussein reorganizou o Iraque para a guerra contra os iranianos. Antes do início da invasão ao Irã, dispunha de cerca de somente 222 mil homens nas suas forças armadas e gastava dois bilhões de dólares por ano no orçamento militar. Porém, para vencer a guerra contra o Irã, o presidente iraquiano Saddam deixou sua economia no limite [5].
A Guerra Irã-Iraque apresentou duas fases distintas. Primeiro, uma guerra de movimento, onde as forças de Hussein invadiram o oeste iraniano. A partir de 1982, a guerra apresenta uma reação iraniana (com a tomada da cidade iraquiana de Basra) e vira uma guerra de atrito que se prolongaria até 1988.O ano de 1982 é importante, porque marcaria a descontinuidade do alinhamento do Ba’ath iraquiano do sírio. Depois de 8 de abril, os sírios fecharam a fronteira com o Iraque, por causa do apoio de Saddam à Irmandade Muçulmana. No dia 24 de junho de 1987, rei Hussein da Jordânia iria até Damasco tentar aproximar os partidos. No entanto, a tentativa foi infrutífera. A Líbia começou também a hostilizá-lo, mas o rompimento das relações só viria em 26 de junho de 1985. Somente o escândalo Iran-Gate reaproximaria os dois países, novamente [6]. Ainda no mesmo mês, Tarik Aziz (chanceler iraquiano), vai até a França, requisitar apoio financeiro para a reconstrução da usina nuclear de Osirak.
Temendo o isolamento na região, o Iraque resolve, no mesmo ano, os seus litígios de fronteira com os sauditas. Em1983, receberia cerca de um bilhão de dólares das monarquias pró-Ocidente na luta contra o Irã, mas a sua situação continuava problemática. Aziz foi até o Cairo em busca de apoio.
A França continuava se mantendo uma grande parceira do Iraque. Em 1984, o chanceler foi até Paris. Queria trocar quase quatro milhões de toneladas de petróleo pelo perdão da dívida de 13 bilhões de francos, principalmente, devido à compra de aviões Super Étendard armados com mísseis Exocet. Tanto que, depois da guerra Irã-Iraque, os franceses seriam os principais credores dos iraquianos. A dívida era cerca de três bilhões de dólares, o equivalente a quatro milhões de toneladas de petróleo na época. No mesmo ano, os franceses forneceriam oito caças Mirage F-1EQ-5, igualmente, armados com Exocets. Isso garantiu a superioridade aérea frente ao Irã. No dia 26 de outubro de 1984, os iraquianos reatam suas relações com Washington, rompidas desde 1967. Até essa data, o Egito tinha fornecido um bilhão e trezentos milhões de dólares em armamento e Saddam adquiria dois terços das exportações soviéticas de armas. O Ocidente já tinha enviado a Saddam cerca de seis bilhões de dólares em ajuda, todavia, a dívida externa crescia 12 bilhões de dólares ao ano, por causa da guerra [7].
Comando e estado-maior
O recrutamento iraquiano se refletiu na organização do Estado (GIDDENS, 2001:249). A rede tribal e o partido Ba’ath impactaram no processo de aquisição de quadros. O Estado, como o Exército, estava mergulhado em uma complexa rede social. A imprensa focava somente nas interações das tribos sunitas da região de Tikrit. O que sabemos é que existiam cerca de três modelos de ocupação de cargos públicos, dentro de uma rede de tribos unidas por casamentos (BARAN,2003).
Os membros da Beigat, das tribos sunitas, eram os mais importantes. Faziam parte da tribo Albou Nasser, que compreendia quatro clãs. Os Albou Abdul Ghafour, do próprio Saddam Hussein, os Albou Kattab, dos seus meios-irmãos, o Albou Meslet, de sua esposa e os Albou Najm, de seus cunhados.
As relações de matrimônio dominavam a obtenção de cargos de elite dentro do Estado iraquiano. Isso satisfazia o modelo dos círculos concêntricos, da aliança de clãs por casamentos. Os sobrenomes dos clãs dos ocupantes dos cargos públicos comprova a hipótese (BARAN, 2003). Razzouqi Souleiman al Majidal-Nasseri, comandante da Guarda Especial de Bagdá. Mezahem Saab al-Hassam al-Khatab, comandante da Artilharia Antiaérea. Jamel Yassim Rashid al-Najm, controlava o Partido Ba’ath. Adnam Kheirallah Tulfah al-Meslet, era o Ministro da Defesa. Porém, a extrema coesão tribal do executivo, oculto no regime, não transparecia uma perfeita harmonia entre os poderes locais e o poder nacional colapsando a implantação de um arranjo federativo viável no Iraque.
O segundo modelo de ocupação de cargos era de tribos leais. Podiam compreender tanto sunitas como xiitas. Izzat Ibrahim Khalid al-Douri, um dos quatro vice-presidentes [8]. A Força Aérea possuía como comandantes os generais Hamed Raja Shelah e Hussein Zibin Zeidan. Uma hipótese plausível, é que sua pouca atuação na Guerra de 1991 vinha dessa falta de prestígio, por não possuir membros da tribo de elite.
O terceiro modelo provinha do prestígio adquirido por veteranos de guerra consagrados, como o general curdo Hussein Rashid Hassam Mohammed al-Windawi, mentor da Guarda Republicana e sua forma ofensiva. Abdul Sattar Abdul Qader Mohammed al-Ma’ini, o tanquista de Tikrit. Sultam Hashem, negociador da rendição de 1991. General Salah Abboud Mahmmoud, vice-ministro do Interior, entre outros. Até 2003, o Iraque possuía um Estado-Maior de qualidade e com competência comprovada em mais de 20 anos de guerras.
Essa organização, que estava diretamente ligada ao poder, impactava a conscrição, porque cria um tipo de organização das forças terrestres em três camadas nos países islâmicos. As ligações religiosas e tribais formariam a primeira camada que seria a elite. No Iraque de Saddam Hussein, o exemplo foi a constituição da Guarda Republicana. No período de 1991 a 2003, sua força foi reduzida, mas dentro dos limites das zonas de exclusão aérea, ela conseguia conter os oponentes ao regime iraquiano.
Aspectos do Exército iraquiano de 1990
O presidente iraquiano Saddam Hussein havia montado um complexo militar invejável quando a guerra contra o Irã acabou em 1988. Suas forças armadas possuíam cerca de 845 mil homens e gastava em torno de 13 bilhões de dólares para manter esse aparelho que correspondia anualmente a 42 dólares por militar ao dia [9]. Porém, os dados mostram que o Iraque era um país no limite de suas forças, com quase 6% de sua população total na ativa das forças armadas [10]. Concomitantemente, os gastos militares representavam um terço do PIB [11].
Por sua vez o Irã, mesmo tendo em seu encalço a guerra, a desestabilização pela revolução e seu isolamento no cenário internacional, mostrou que conseguiu ficar aquém de seu limite em 1990. Conseguia gastar cerca de 80 dólares por militar ao dia, demonstrando um fôlego maior de suas tropas no esforço e mantendo uma mobilização em torno de quase 2% de sua população na ativa de suas forças. Porém, como os iraquianos, gastavam um terço de seu PIB com suas forças armadas, não havia recursos para a inclusão dos conscritos após a mobilização.
Essas forças militares terrestres iraquianas eram organizadas nos moldes soviéticos. A doutrina militar soviética tinha a guerra ítalo-abissínia de 1936, como base estrutural para elaboração dos manuais de combate no deserto (GARTHOFF, 1957:116). Os soviéticos recomendavam para a organização das divisões mecanizadas, 13 mil homens [12]. Estes seriam distribuídos em três regimentos, sendo um de tanques médios, outro de tanques pesados e outro de artilharia autopropulsada. Sua função era de exploração e perseguição do inimigo. Conseguiriam manter cerca de 200 carros de combate.
No entanto, a concentração de modernos altos escalões não deixava a tropa flexível para realizar operações. Por influência inglesa, os regimentos no Exército iraquiano seriam denominados de brigadas, notadamente, similar à organização das forças terrestres do Brasil. Mais de cinco mil MBTs e oito mil APCs (de modelo soviético) formavam essa força. Um problema grave durante as guerras foi a manutenção de armamentos de origens tão diferentes, no período de 1980-2003 [13]. Existiam diversos manuais e inumeráveis fornecedores de equipamentos, inclusive de origem brasileira [14].
O Iraque possuía cinco corpos regulares, mais dois corpos da Guarda Republicana, no período de 1980-1991. Mesmo sendo consideradas como unidades blindadas de elite, suas divisões mecanizadas eram constituídas de três brigadas mecanizadas. Todavia, as divisões mecanizadas do Exército regular possuíam duas brigadas mecanizadas e uma blindada (com poder de fogo superior). No nível da brigada mecanizada, tanto as unidades da guarda quanto as regulares mantinham cerca de três batalhões mecanizados e um blindado como força principal de ataque (CORDESMAN e WAGNER, 1999). Os iranianos tinham em cada brigada três batalhões blindados e cinco mecanizados. Comparativamente, no plano tático, a superioridade do Irã era evidente devido ao apoio da Infantaria aos blindados. Entretanto, o apoio da Infantaria era obtido pelo Irã através de ataques realizados com ondas humanas pela milícia política Basj.
O conflito de 1991 é o fim do que seria o último grande exército oriundo das experiências com a mecanização do século XX. Talvez, suas causas mais imediatas estariam dispostas no plano econômico, com reflexos diretos na política. Eric Hobsbawm (2004) explica seu conceito de complexo industrial-militar, onde cada Estado-Nação desenvolveria um grande exército, reflexo de sua capacidade econômica. Dentro da lógica capitalista, todo esse arsenal deveria ser destruído em uma guerra. Contudo, dentro da conjuntura iraquiana, o armamento vinha do exterior através do dinheiro que o petróleo proporcionava. Porém, o comportamento do Exército foi igual aos outros complexos industriais dos países que o produziram.
Ao mesmo tempo, a parcela da população que não seria absorvida pela desmobilização foi atingida pela guerra. As linhas de exclusão aérea deixaram os estadunidenses livres para a manutenção de sua condição de protetores dos sauditas no Sul e de controlar o avanço curdo na Turquia desde 1991. O conflito de 2003 somente colocou os Estados Unidos na vanguarda da proteção de sauditas e turcos porque o regime do Iraque não conseguia mais fazê-lo. Além disso, existiram pretensões de conflito da OTAN contra os iranianos sob o mesmo pretexto das armas de destruição em massa. Estrategicamente, o Irã era um obstáculo logístico para as intervenções estadunidenses simultâneas no Iraque e Afeganistão.
Os parâmetros de análise sobre a guerra moderna recaem sobre o estudo da estrutura do Exército regular iraquiano de 1991. A organização era estimada e as informações são incompletas em período de guerra, mas hoje temos mais informações. A estrutura do Exército regular em 1991 era de cinco corpos de exército. Os corpos eram um tipo de organização que provia a distribuição regional das tropas em setores. O quantitativo de tipos de tropas foi reduzido depois de 1991 (DEPARTMENT OF DEFENSE, 2000). Geralmente, saiu uma divisão de cada corpo, o que acarreta, mais ou menos, dez brigadas. Cada divisão era composta, no período de 1991-2003, por três divisões blindadas, três divisões mecanizadas e nove divisões de infantaria. Com as exceções das divisões de infantaria, que possuíam três brigadas de infantaria, as divisões mecanizadas tinham duas brigadas mecanizadas e uma blindada, e a 6ª Divisão Blindada possuía duas brigadas blindadas e uma mecanizada para reconhecimento. Ao todo eram nove brigadas blindadas, nove brigadas mecanizadas e 33 brigadas de infantaria [15].
As considerações recaem no tipo de organização de tropa que reflete a quantidade de assessores e de armamento que os países em desenvolvimento obtêm. O reflexo desses equipamentos demonstra a diversificação de fornecedores. Os iraquianos ficaram com uma dupla organização em suas brigadas do Exército. Os soviéticos ensinaram a tradição da utilização de corpos em zonas determinadas para a utilização da artilharia como arma de assalto. A tradição inglesa das brigadas permanecia com a necessidade iraquiana de manutenção de operações combinadas nos setores.
Militarmente, as zonas de exclusão aérea depois de 1991 davam aos norte-americanos a administração dos conflitos com os curdos ao norte, protegendo a Turquia, e ao sul a contenção de xiitas protegia a Arábia Saudita. Os problemas aumentavam com a pressão do crescimento demográfico da região. Mesmo com todos os conflitos na região, as projeções indicam um aumento de quase 15 milhões de iraquianos na força de trabalho até 2050 (UNITED NATIONS, 2009).
Neste sentido, as projeções populacionais corroboram o aumento da instabilidade que inclina ao reforço que o número de jovens aumenta a instabilidade política da região em questão. A pesquisa aborda o cenário do possível atrito e a perda da capacidade de manobra, pelas forças armadas convencionais, pelo crescente receio do atrito na esfera da estratégia nuclear. A miniaturização dos armamentos e das ogivas, assim como os avanços da tecnologia, deixaram a guerra defensiva, novamente, como o tipo de guerra mais forte. Neste sentido, afirma-se novamente que a tecnologia corroborou para a obsolescência da mecanização no campo de batalha moderno e não afetou a necessidade da conscrição.
A economia iraquiana não podia desmanchar esse complexo de modo pacífico, tal era a absorção de mão-de-obra feminina e estrangeira em sua economia. Em janeiro de 1985, por exemplo, as mulheres eram metade dos funcionários públicos, um terço dos trabalhadores no setor nacionalizado e um quinto no privado, sem contar a mão-de-obra estrangeira. O Iraque então se volta para um dos antigos inimigos do Ba’ath, atacou o Kuwait, sob o pretexto de pedir uma indenização. A ONU reagiu rapidamente em agosto de 1990 através das resoluções 660 e 661.
O partido Ba’ath iraquiano sempre foi inimigo das monarquias islâmicas conservadoras pró-ocidentais. Com a apropriação do petróleo do país invadido, haveria mais dinheiro para pagar a dívida externa iraquiana crescente. Marrocos, Argélia e Líbano condenaram a ação. Sudão, OLP e Iêmen (talvez pela influência do partido Ba’ath) apoiaram Saddam, assim como a Jordânia. Os jordanianos apoiaram o Iraque, talvez, proteger sua fronteira leste e para acalmar os palestinos que habitam seu território.
LIVRO RECOMENDADO:
The Generals’ War: The inside story of the conflict in the Gulf
• Michael R. Gordon e Bernard E. Trainor (Autores)
• Edição Inglês
• Capa dura ou Capa comum
Na ótica da coalizão, o Ocidente agiria em prol da liberdade de um Estado agredido. Os estrategistas da OTAN sabiam que um enorme exército na região com capacidade de realizar operações externas, representava um perigo considerável aos seus interesses. A Rússia só agiria se existisse algum risco para o Irã que garantia a influência russa no Oceano Índico. O Exército iraquiano perdeu sua capacidade de combate, mas os dois Corpos da Guarda Republicana permaneciam ainda operantes. Como resultado, a coalizão garantia os sauditas e esse modelo conservador pró-ocidental na Península Arábica, além disso, venderia bilhões de dólares em armamentos aos países do Conselho de Cooperação do Golfo. O Iraque perdeu o excedente de efetivo militar mobilizado e agora podia agir para restaurar a ordem em seu território através dos guardas republicanos frente aos xiitas do sul e curdos ao norte.
Dentro desses apontamentos, essa guerra de 1991 demonstrou no primeiro enfoque estratégico, a guerra pela informação como fator decisivo da vitória (COULLON,1992: 148-156). A capacidade do sistema de telecomunicações aeroespaciais, a capacidade transmissão de dados e ordens a longa distância como efeito direto das novas tecnologias dos armamentos. Os americanos conseguiram testar seu sistema de desembarque de tropas na escala global. No plano tático, os ensinamentos mostraram que a superioridade aérea seria determinante para o sucesso, assim como as forças especiais.
Os anos de 1991-2003 foram o período do embargo internacional e de decadência do regime de Saddam Hussein. O contingente de 429 mil soldados dividia um orçamento de um bilhão e meio de dólares. Isso representava 10 dólares por militar ao dia. Porém, a pressão do peso da máquina militar sobre a economia e a população baixou consideravelmente. O PIB estava comprometido em 3% do seu valor com as forças armadas e quase 2% da população estava na ativa. O Iraque não conseguiria mais manter um nível operacional, justamente nas áreas onde o gasto e o serviço técnico são mais exigidos. De acordo com especialistas americanos e israelenses em 1998, os guardas republicanos sobreviventes de 1991 tinham dois terços de recursos e metade dos homens para operar com suas sete divisões completas. Comparativamente, dos 6.700 tanques da Guarda Republicana antes da guerra, somente aproximadamente 2.200 estariam aptos a operar [16]. Os blindados no Exército e os aviões ficariam parados e a Marinha ficou totalmente fora de ação [17].
O colapso econômico do Iraque condicionou as forças armadas a lutarem com poucos recursos financeiros. Invariavelmente, o contexto do conflito de 2003, levou os iraquianos para a guerra assimétrica contra os estadunidenses. A organização trifuncional de atores sociais intercalados acarreta a desmobilização do Exército laico e seu papel como constituição da nação (GIDDENS,2001:249). O país em desenvolvimento, em um contexto de atrito dentro de um conflito assimétrico, mantém uma tropa de elite e a mobilização geral de suas tropas como fez a Ucrânia frente aos russos em 2022. O Exército regular, que necessita de recursos financeiros, não conseguia manter uma capacidade de combate sustentável [18].
Atualmente, o movimento do Iêmen Ansar Al-Allah oferece um exemplo. A falta de uma marinha de superfície não demonstra a falta de comando, controle e comunicações que caracteriza as unidades militares. Os iemenitas, na Guerra Fria, tiveram assessoria militar estadunidense e soviética que proporcionou uma grande experiência na condução de conflitos.
O Hezbollah oferece outro exemplo no sul do Líbano que, em 2006, se tornou de fato a força terrestre do Estado, apesar de não o ser por direito (CORDESMAN, 2006). Além disso, essa organização lançou a mão de recrutamento de quadros para a garantia de suas operações militares. Os dados apontam que uma brigada, de três mil combatentes libaneses, conseguiu segurar cerca de 40 mil israelenses mobilizados para o resgate dos dois soldados sequestrados. A mecanização trouxe para a guerra os sistemas de combate. A tecnologia está tornando os soldados tão eficientes quanto os sistemas e, concomitantemente, a baixa dos preços do armamento no mercado internacional aumenta o poder de fogo das pequenas unidades. Além disso, os novos aparelhos de comunicação permitem o comando e controle das pequenas unidades. A aviação israelense possuía aeronaves de combate como o F-16 para a destruição de sistemas, porém, posse de armamentos digitalizados por soldados fornece certa invisibilidade para os mesmos no plano tático como demonstram os Veículos Aéreos Não-Tripulados (VANTs) na Ucrânia.
Novamente, a pesquisa sobre o Exército iraquiano de 1991 aponta para uma relativa obsolescência da mecanização, mas o fenômeno da digitalização não diminui a necessidade da conscrição. O início do século XXI é análogo ao início do século XX com o ambiente de mudanças tecnológicas, econômicas, sociais e políticas. Os estados em desenvolvimento que optam pelo uso da força na política, desenvolvem outros tipos de forças terrestres como foi o assessoramento da Turquia ao Azerbaijão para enfrentar a Armênia em 2020.
Neste sentido, novas tecnologias proporcionarão o advento de novas organizações militares como a tropa de operadores de drones na Ucrânia, mas as mudanças tecnológicas jamais substituirão a necessidade da quantidade de tropas na guerra convencional como a busca pelos ucranianos pela manutenção de seus contingentes frente aos russos. As dimensões de área e população do Iraque e Ucrânia são similares, assim como rios que dividem seus territórios e a ajuda externa ocidental que montou seu complexo industrial-militar. Resta saber até que ponto os Estados do século XXI conseguirão formar grandes exércitos com o ressurgimento da guerra convencional na Europa.
Referências bibliográficas
BARAN, David. L’Etat-Major de Saddam Hussein. Paris: Ifri, 2003.
CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CORDESMAN, Anthony H.; WAGNER, Abraham R. Lessons of Modern War: Volume IV (The Gulf War). Boulder-CO, Westview Press, 1999.
.Preliminary “Lessons” of the Israeli-Hezbollah War. Washington-D.C. CSIS – Center for Strategic and International Studies, 2006.
COULLON, Jean-Claude. Les Leçons de la Guerre du Golfe. In.: L’Année Stratégique, 1992.
DEPARTMENT OF DEFENSE. Iraq Country Handbook. Quantico: Marine Corps Intelligence Activity, 2000.
DUNNIGAN, James F. How To Make War. New York: Quill, 1993.
FERRO, Marc. O Choque do Islã: séculos XVIII e XXI. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2008.
GARTHOFF, Raymond. A Doutrina Militar Soviética. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1957.
GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a Violência. São Paulo: EDUSP, 2001, 377p.
HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. O breve séc. XX. 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
MANSFIELD, Peter. Nasser e o Nasserismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
NASSER, Gamal Abdel. A Revolução no Mundo Árabe. São Paulo: EDARLI, 1963.
ROTTMAN, Gordon; VOLSTAD, Ron. The Gulf War Armies. Oxford: Osprey Publishing, 1993.
UNITED NATIONS. World Population Prospects: the 2008 revision highlights. New York: United Nations, 2009.
VIZENTINI, P. (Org.). A Grande Crise: a nova (des)ordem internacional dos anos 80 e 90. Petrópolis: Vozes, 1992.
WALTZ, Kenneth. Structural Realism after the Cold War. International Security, Vol. 25, No. 1 (Summer 2000), pp. 5–41.
Publicado no História Militar em Debate.
*Fabrício Schiavo Avila é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, atualmente, é presidente do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE).
Notas
[1] A presente pesquisa versa sobre o Exército do Iraque do início da Primeira Guerra do Golfo de 1980 até o final da Segunda Guerra do Golfo em 1991. As forças armadas iraquianas foram oficialmente desmobilizadas em 23 de maio de 2003 pela coalizão de países que invadiu o Iraque.
[2] Um exemplo foi da Doutrina Gerasimov com o emprego dos Grupos Táticos de Batalha (BTG) no início da Operação Militar Especial Russa na Ucrânia.
[3] O Iraque possui em 2024: 438.317 km² de área e uma população de 46.523.657 habitantes.
[4] O Kuwait possui em 2024: 17.818 km² de área e uma população de 4.294.621 habitantes.
[5] Corresponderia a US$ 24,93 dólares por dia por militar. Seus gastos militares já estavam na casa de 8,89% do Produto Interno Bruto (PIB) e mobilizava 1,8% da população nas Forças Armadas. Índices bastante altos, comparados com os de outros países do Oriente Médio.
[6] O caso Iran-Gate se consistiu na venda secreta de armas norte-americanas para o Irã. A operação consistia na aquisição de recursos para o financiamento dos “contras” nicaraguenses que lutavam contra o regime sandinista (FERRO, 2008).
[7] Os valores financeiros em dólares americanos são do final da década de 1980 e início da década de 1990.
[8] O Iraque possuía na época quatro vice-presidentes distribuídos entre xiitas, sunitas e curdos que formam a sociedade do país de maioria xiita.
[9] Em termos de suprimentos, a média é de 10,6 kg por dia por combatente para tropas mecanizadas. Roupas, alimentos, água, combustível e munições fazem parte dos itens. Em princípio, o Exército iraquiano de 1991 deveria consumir quase nove mil toneladas diárias (DUNNIGAN, 1993).
[10] Comparativamente, 6% da população mundial estava nos exércitos envolvidos na Segunda Guerra Mundial.
[11] Os EUA gastaram a média de 37,5% do seu PIB anual na época da Segunda Guerra Mundial.
[12] As forças militares terrestres iraquianas tinham 23 divisões blindadas e mecanizadas em 1991. A estimativa da época consistia em três bilhões de dólares para formar cada divisão. Atualmente, o valor estimado das forças armadas iraquianas é de 160 bilhões de dólares (DUNNIGAN, 2003).
[13] O mesmo fenômeno acontece agora com a ajuda da OTAN à Ucrânia no conflito que começou em fevereiro de 2022.
[14] O Brasil vendeu blindados de reconhecimento Cascavel, veículos blindados de transporte de tropa Urutu e sistemas Astros de Artilharia.
[15] A análise do artigo é pautada sobre os exércitos regulares que possuem um grande componente de laicização de suas forças e que absorvem grandes quantidades de cidadãos. A Guarda Republicana do Iraque era um pequeno exército mecanizado de elite que possuía um vínculo político e étnico-religioso.
[16] Para ilustrar, abastecer 2.200 blindados requer 800 m³ de combustível na média de 400 litros de um tanque de combustível de um carro de combate (DUNNIGAN, 1993).
[17] Uma grande pergunta ainda sem reposta foi a decisão de Saddam Hussein de enviar a quase totalidade de sua Força Aérea depois da Guerra do Golfo de 1991 para seu antigo inimigo, o Irã.
[18] Os números compreendem US$ 9,58 por militar ao dia. O PIB estava comprometido em 3,08% e 1,86% da população estava mobilizada nas forças armadas.