Por The International Affairs*
O desaparecimento da OTAN sinalizaria que os EUA já não são um aliado confiável; seus aliados começariam a se proteger, muitos europeus se aproximariam da Rússia e Washington estaria em retirada do palco europeu.
“Trump abandonará a OTAN” foi a manchete da edição de janeiro-fevereiro de 2024 do The Atlantic. “Se for reeleito, ele acabaria com o nosso compromisso com a aliança europeia, remodelando a ordem internacional e prejudicando a influência americana no mundo”, alertava o subtítulo, escreve a The Chronicles Magazine.
Anne Applebaum, a autora do artigo, cita com ar de descrença atordoada Donald Trump dizendo em vários momentos que ele “não dá a mínima” para a OTAN, que os conflitos europeus não valem as vidas americanas, e que recuar da Europa pouparia muito dinheiro aos EUA. “A OTAN, fundada em 1949 e apoiada durante três quartos de século por democratas, republicanos e independentes, tem sido há muito tempo um foco particular da ira de Trump”, escreve ela.
É absurdo que quase 80 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e um quarto de século depois da queda do Muro de Berlim, a Comunidade Militar Americana de Kaiserslautern (KMC) na Alemanha continue a ser o maior estabelecimento militar dos EUA no estrangeiro. Este complexo se estende por 16.000 acres e abriga 54.000 militares dos EUA e suas famílias. Só a Base Aérea de Ramstein, contida no CMK, emprega 16.000 pessoas.
Que fechar bases como o KMC e sair da Europa pouparia bilhões de dólares para o contribuinte americano é indiscutível. É igualmente evidente que a presença contínua das forças dos EUA no Velho Continente encoraja a continuação do parasitismo por parte dos membros europeus da OTAN, mais notavelmente a Alemanha. Há décadas que se sabe que quanto mais tempo as forças dos EUA permanecerem, menos os membros europeus da OTAN estarão motivados para investir em sua própria defesa. Dois anos depois do início do conflito na Ucrânia, esta situação não mudou, apesar da retórica muitas vezes histérica sobre a alegada ameaça russa às fronteiras orientais da OTAN.
No que diz respeito ao dinheiro, é digno de nota que o produto interno bruto dos membros europeus da OTAN (ou seja, a UE sem Áustria, Chipre, Malta e Irlanda, mas incluindo a Grã-Bretanha não membro da UE) valia pouco menos de 20 bilhões de dólares em 2022. Nesse mesmo ano, o PIB dos Estados Unidos era apenas 25% superior, situando-se nos 25 bilhões de dólares, mas a América era responsável por mais de dois terços das despesas militares da OTAN. Já em 2014, cada membro da OTAN concordou em aumentar seus orçamentos militares para 2% do seu PIB; em 2023, apenas 11, a maioria membros menores do Leste Europeu, tinham cumprido a promessa.
A lista de membros da OTAN que atingiram esse limite mínimo de 2% não inclui nenhuma das quatro principais potências europeias da OTAN: Alemanha, França, Itália e Espanha. Nem inclui nenhum dos membros menores e ricos da OTAN, como o Benelux, a Dinamarca e a Noruega. Em 2023, as despesas militares dos 31 Estados-membros da OTAN (mais a Suécia, que em breve será membro) ascenderam a quase 1,4 bilhões de dólares, mas os EUA foram responsáveis – deixem-me repetir – por mais de dois terços dessa despesa total. Sem a América, a despesa média com a defesa de todos os outros membros atingiria apenas 1,8% do seu PIB coletivo.
É verdade que dois anos depois de o perigoso urso russo ter iniciado sua “agressão não provocada” na Ucrânia, os europeus ainda não desenvolveram sistemas alternativos de liderança ou de comando e controle, nem resolveram sua falta de fornecimento de munições. Portanto, é lógico que podemos assumir um de dois cenários.
Em primeiro lugar, pode ser possível que os europeus continuem deliberadamente a colocar o fardo de sua própria defesa sobre os EUA, assumindo que a contínua ausência de capacidades de defesa alternativas – como as mencionadas por Goldgeier [1] – forçará os EUA a fornecê-las em uma base ilimitada e pagar a conta. Se assim for, estão agindo em conluio com a camarilha hegemônica global neocon-neoliberal do outro lado do Atlântico, que invoca a impotência da Europa como argumento para o “engajamento” eterno da América.
LIVRO RECOMENDADO:
Evaluating NATO Enlargement: From Cold War victory to the Russia-Ukraine War
• James Goldgeier e Joshua R Itzkowitz Shifrinson (Editores)
• Em inglês
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O mais provável é que os europeus que importam (não ligue para a margem oriental) não acreditam realmente que em um mundo pós-OTAN estariam expostos a um ataque russo, seja imediatamente ou a longo prazo, e que, portanto, não veem qualquer necessidade de se preparar para tal contingência. Se esta visão não representasse o pensamento europeu, então, após a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, os países europeus teriam agido resolutamente para se prepararem para a guerra, independentemente do custo.
O fato de os europeus não estarem tão alarmados com a Rússia como os neoconservadores gostariam que estivessem, a sua decisão não declarada, mas evidente, de permanecerem despreparados para um possível ataque russo, indica que pode haver outro tipo de Estado profundo em funcionamento em Paris, Berlim, Roma e Madri. Ainda há uma classe de altos funcionários europeus em cena, especialmente na França e na Itália, que estão conscientes de que a agenda do consenso neoconservador/neoliberal americano é ruinosa para os interesses fundamentais de seus países. Eles compreendem, mas não podem dizer em voz alta, que é impossível separar o esforço pela continuação da hegemonia americana na Europa – que é inerentemente prejudicial à identidade e aos interesses fundamentais de seus países – da continuação da existência da OTAN.
Applebaum termina seu artigo com o que considera uma previsão apocalíptica. Se Trump, em um segundo mandato, declarar que já não apoia a OTAN, todas as outras alianças de segurança da América também estariam em perigo. “Taiwan, Coreia do Sul, Japão e até mesmo Israel perceberiam que não podem mais contar com o apoio americano automático.” O desaparecimento da OTAN sinalizaria a todos que os Estados Unidos já não são um aliado confiável, e todos os seus aliados começariam a se proteger. Muitos países europeus se aproximariam diplomaticamente da Rússia (horror!), e a América estaria em retirada do palco europeu. Quando percebermos o quanto mudou, será tarde demais.
O que é um cenário de fim do mundo para um neoconservador é um novo amanhecer para um realista. Não apenas a Europa, mas Taiwan, a Coreia do Sul, o Japão e mesmo Israel nunca deveriam ter sido obrigados a depender do apoio militar americano automático, e seria uma excelente ideia desiludi-los – ou, na verdade, a qualquer outro país estrangeiro – de qualquer expectativa no futuro.
Tal como existe hoje uma russofobia visceral entre a elite americana, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial a antipatia pelos Estados Unidos transformou-se em uma mentalidade cultural comum entre os tradicionalistas europeus. Eles temiam e se ressentiam do que consideravam a nova hegemonia. Tal como a russofobia de hoje, este sentimento não estava necessariamente correlacionado com quaisquer atos políticos específicos emanados de Washington. Pelo contrário, tratou cada ato político como um reflexo e uma reafirmação dos motivos nefastos do ator – incluindo a fundação da OTAN.
Em seus primeiros anos, a OTAN era verdadeiramente uma aliança defensiva baseada na estratégia de contenção. Notavelmente, os EUA não agiram para impedir o presidente francês Charles de Gaulle de retirar a França da estrutura militar da OTAN em 1966, enquanto os soviéticos, uma década antes, destruíram grande parte de Budapeste para impedir a Hungria de sair do Pacto de Varsóvia. É também digno de nota que, em grande parte graças à OTAN, a Europa conseguiu evitar mais uma guerra nas décadas carregadas de crise que se seguiram a 1945. Muitas guerras foram travadas na periferia da divisão bipolar, mas nenhuma em seu centro.
A OTAN se tornou rebelde depois do colapso da URSS e sua instável aliança militar. Sua expansão para leste, que George Kennan qualificou como o maior erro estratégico da história americana, deveu-se inteiramente à patologia do regime hegemônico global de Washington pós-Guerra Fria. A aliança ocidental é hoje um anacronismo, uma ameaça crônica à paz e, acima de tudo, o punho de ferro do despertar americano. A visão de uma América e de um mundo livres das patologias da OTAN é, no entanto, por enquanto ilusória.
Já não é possível falar da “América”, um verdadeiro país de 336 milhões de almas, como um ator discreto nos assuntos mundiais. Em vez disso, o que temos é um regime que desistirá da OTAN apenas se houver uma mudança de regime em Washington. Não uma mudança temporária, como a efêmera de janeiro de 2017, mas uma mudança revolucionária que varreria tanto os neoliberais como os neoconservadores, as caras globalistas e coroas hegemonistas da mesma moeda, conclui a The Chronicles Magazine.
Publicado no The International Affairs.
*The International Affairs é um jornal do Ministério das Relações Exteriores da Rússia que cobre uma ampla gama de assuntos de política internacional, diplomacia e segurança global.
[1] James M. Goldgeier é professor de relações internacionais na Escola de Serviço Internacional da American University em Washington, onde atuou como reitor de 2011 a 2017.
O que diabos significa o conceito de “neocon liberal”? Parece-me um termo criado a revelia de qualquer significado …. a não ser classificar de forma supostamente pejorativa a quem não comprtilha a weltanshauung do autor.
Trata-se da tradução do termo do inglês “liberal neocon” (neoconservative, neoconservador). Uma versão da origem pode ser encontrada aqui: https://isreview.org/issue/67/liberal-neocon/index.html.