Ninguém sério em Moscou ou Washington divide o mundo entre bonzinhos e malvados; todos entenderam Maquiavel suficientemente para saber que o mundo é real, independentemente das ilusões forjadas sobre ele.
Os 24 meses de erupção da nova fase da tensão russo-ucraniana nos lega duas convicções. Primeira: o conflito será longo. Segunda: ele não tem solução.
A Rússia entende a Ucrânia como seu espaço vital e a Ucrânia entende sua soberania – inclusive sua autonomia para escolher se ocidentalizar e virar um anteparo à Rússia – como uma questão existencial. Questões vitais e existenciais não se equacionam facilmente. Sendo sincero, não se equacionam nunca.
A solução do litígio demandaria compromissos territoriais. Mas compromissos territoriais exigem resignação. Mas a resignação, em qualquer dos casos, virou sinônimo de humilhação.
Os russos ainda se ressentem da humilhação promovida contra eles por ocidentais, europeus e norte-americanos depois da erosão do Mundo Soviético. Parcelas relevantes de ucranianos, por sua vez, vivem o tropismo de serem eslavos e partícipes sem voz da história da Rússia. Ambos, russos e ucranianos, estão, assim, dispostos a lutar a até seu último homem pela integridade de suas convicções.
O detalhe divergente é que, na suspeita de possibilidade de avanço no ingresso da Ucrânia na OTAN, na União Europeia e na aliança transatlântica com os Estados Unidos – que, ao fim das contas, são sinônimos –, a dissuasão nuclear de Moscou pode ser acionada definitivamente para causar o “esperado” Armagedon.
Se o magnata Donald J. Trump voltar ao poder nos Estados Unidos no pleito de novembro deste ano, a situação vai ficar ainda mais delicada e indefinida. Ele prometeu “resolver a questão em 24 horas”. Isso quer dizer, retrair a participação norte-americana das operações de contenção das forças russas em solo ucraniano, diminuir – ainda mais – a colaboração multissetorial com a Ucrânia e paralisar a sua atuação na OTAN em solo europeu.
Se isso ocorrer, a gente de Bruxelas vai ter que encontrar artifícios para cumprir seus engajamentos morais com os ucranianos em combate. Afinal, foram os europeus que fustigaram o presidente Zelensky a ingressar nessa aventura.
Mas, se frentes ultraconservadoras, como previsto, tomarem conta do Parlamento Europeu nas próximas eleições, os lençóis do presidente ucraniano ficarão bem piores. Os europeus serão convencidos a se alinharem ao possível novo presidente dos Estados Unidos e com a opinião pública europeia e norte-americana, que já se cansou dos moinhos de vento do mundo eslavo.
Quando se falou em um “compromisso suportável” entre russos e ucranianos exatamente um ano atrás, mais de 40% dos europeus eram indiferentes ou contra. Depois da tragédia do 6-7 de outubro de 2023, esse percentual aumentou consideravelmente. Todos os olhares atentos se moveram para o Oriente Médio e mesmo os pensamentos mais benevolentes foram desterrados da Ucrânia.
Naquele mesmo mês de outubro, os senadores norte-americanos bloquearam o apoio de bilhões de dólares aos esforços militares e humanitários ucranianos sob a alegação, cínica ou pragmática, de maior preocupação com suas fronteiras com o México. Não mentiram. Mas, também, não disseram a verdade. No fundo, perceberam o tamanho da armadilha em que caíram naquela região.
Geoestrategicamente, a ameaça vital – mas ainda não existencial – aos Estados Unidos continua sendo a China. Uma aventura contra a Rússia – para, por tabela, fragilizar o principal apoiador da China contra os Estados Unidos, que é a Rússia – poderia até ser uma passagem obrigatória. Mas, nos moldes realizados, acabou se revelando equivocada demais para se suportar por muito tempo.
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Nunca vai demais repetir que o presidente Putin está utilizando agora o mesmo critério utilizado pelo presidente Kennedy quando da crise dos mísseis em Cuba: o interesse nacional. Os documentos russos e norte-americanos de defesa nacional são essencialmente similares. Ninguém sério em Moscou nem em Washington divide o mundo entre bonzinhos e malvados, homens e mulheres, gays e héteros. Todos eles leram – e entenderam – suficientemente Maquiavel e suas decorrências para saber que o mundo é real independentemente das ilusões forjadas sobre ele.
A implosão do Mundo Soviético foi mais simbolizada pelos feitos de novembro de 1989 que pelos dramas de dezembro de 1991. Qualquer alemão minimamente educado sabe perfeitamente bem que o muro foi aberto. Da mesma sorte que qualquer cidadão aferrado ao estudo da história e não ao ensino de história sabe inequivocamente que o muro não caiu. Entretanto, a imagem de queda do muro de Berlim toma conta dos espíritos. Inconsciente e ideologicamente. Essa dominância impede as pessoas – mesmo algumas muito sérias – de perceberem que a grande catástrofe eslavo-planetária ocorreu depois.
A doutrina de novo pensamento do presidente Gorbatchev inaugurada em 1985 permitiu o desconjuntamento do socialismo real. Mas esse pensamento foi forjado e pactuado entre todos os envolvidos. Notadamente entre europeus e norte-americanos.
O presidente Gorbatchev, por conta disso, foi muitas vezes taxado de fraco, vendido e covarde pelos marxistas tardios, pelos comunistas desvairados e pelos esquerdistas desprovidos de racionalidade histórica. Mas esse nobre senhor, falecido em agosto de 2023, foi conscientemente íntegro nas tratativas para o fim do Mundo Soviético. Do contrário, a maior tragédia geopolítica do século XX de que tanto fala o presidente Putin seria ainda mais catastrófica.
O pacto soviético com os liberais era essencialmente de respeito, harmonia e dignidade depois do fim. Mas, mesmo antes do fim, quer dizer, antes de dezembro de 1991 e depois de 1989, o triunfalismo europeu e norte-americano chegou a níveis estridentes e histriônicos.
Acreditou-se e veiculou-se com efusão a vitória do Mundo Livre ante o Mundo Soviético. Mas não foi bem assim.
Seja como for, depois de 1991, esse triunfalismo virou humilhação. Os antigos soviéticos e notadamente os eternos russos foram ostensivamente humilhados. E continuam sendo. Ou alguém tem dúvidas que o presidente Zelensky foi inclementemente conduzido ao erro pelas ilusões vendidas por norte-americanos e europeus?
O resultado de tudo isso foi a invasão do espaço vital russo.
A OTAN jamais deveria ter se expandido depois da implosão do Mundo Soviético. Os europeus jamais deveriam ter se imiscuído na política interna dos ucranianos. O presidente Zelensky jamais poderia ter se vendido ao charme dos tapetes purpúreos de Bruxelas, Genebra, Paris, Berlim, Londres, Nova Iorque e Washington.
O leite foi derramado.
Mas isso não quer dizer a reinauguração da tensão Leste-Oeste e nem a reafirmação de uma Guerra Fria. O mundo de hoje é bem diferente daqueles de 1917-1991 e 1947-1989. Tudo é muito mais perigoso e irregular hoje em dia.
A Casa Branca e o Kremlin possuíam uma linha de comunicação secreta, discreta e direta na contenda de 1962. Norte-americanos e soviéticos se falavam o tempo todo. Minuto a minuto. Tinham, em sua maioria, vivido as tragédias de 1914 a 1945 e, conseguintemente, temiam o Armagedon e faziam de tudo para contê-lo.
Hoje em dia o presidente norte-americano insulta seu homólogo russo para aumentar a sua audiência nas redes sociais…
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Voltando a coisas sérias, não, definitivamente, não se trata de uma Nova Guerra Fria. Mas o único horizonte previsível para a situação russo-ucraniana parece ser o de uma “Paz Gelada”. Não vai ser bom. Mas, acredite-se, será bem melhor do que o Armagedon.