A análise de documentos desclassificados do Projeto Cuba indica a adoção, pelos EUA, de táticas híbridas, que podem ainda estar sendo empregadas em conflitos atuais.
Introdução
A crise dos mísseis cubanos, evento ocorrido há 60 anos, colocou o mundo a um passo de uma terceira guerra mundial, com a participação direta de personalidades como o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), John Fitzgerald Kennedy, do secretário-geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Nikita Khrushchev, do líder cubano Fidel Castro e do secretário de Defesa dos EUA, Robert McNamara, dentre outros líderes mundialmente reconhecidos. Mas as negociações que foram estabelecidas nessa crise representaram um importantíssimo marco balizador para o relacionamento entre as superpotências, contribuindo diretamente para o estabelecimento de algumas regras de convivência que passariam a ser observadas entre os EUA e a URSS durante toda a Guerra Fria.
Uma visão atualizada dos acontecimentos vivenciados em 1962 certamente nos revelará diversos ensinamentos que poderiam estar sendo agora observados, quando se constata que o sistema internacional parece ter perdido os limites e as regras de convivência entres as grandes potências. Diversos eventos recentes demonstram que tais carências agregam um elevado grau de complexidade às relações internacionais neste momento de uma cada vez mais perceptível transformação hegemônica global.
Como exemplos, poderíamos citar o conflito da Ucrânia, a questão de Taiwan, a guerra na Síria, o impasse em Nagorno-Karabakh, o esgarçamento da arquitetura de controle de armas nucleares, tudo sob a impotência e paralisia do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Vivemos um ambiente internacional ainda mais complexo do que aquele vivenciado em Cuba nos idos de 1962 e, talvez, estejamos hoje ainda mais próximos de um conflito mundial de resultados catastróficos do que jamais estivemos.
Se é fato que já não existe mais um confronto ideológico no cenário mundial, por outro lado identificamos um crescente choque de interesses nacionais entre EUA, China, Rússia e União Europeia (UE), apenas citando os países mais relevantes nas crises verificadas no contexto atual. E, também, podemos constatar que a dependência da força militar como ferramenta para alcançar objetivos político-estratégicos pelos principais atores internacionais ainda é uma realidade sempre presente no tabuleiro geopolítico, num mundo em que os arsenais nucleares se expandiram em quantidade e distribuição, em se comparando com a realidade existente no planeta na década de 1960.
Este artigo tem por objetivo realizar uma análise sobre o processo de planejamento estratégico-militar elaborado pelos EUA por ocasião da chamada Crise dos Mísseis de Cuba, procurando identificar aspectos que estariam diretamente relacionados à adoção de um conjunto de táticas híbridas (hybrid warfare), e que podem ainda estar sendo adotadas em conflitos atuais.
A justificativa para o desenvolvimento deste trabalho decorre de argumentos apresentados pelo general-de-exército Valery Gerasimov, chefe do Estado-Maior Geral das Forças Armadas da Federação da Rússia, em uma palestra ministrada em 2013 para a Academia Russa de Ciências Militares. Na ocasião, Gerasimov teria afirmado que os EUA empregariam formas e métodos que envolvem o uso de medidas políticas, diplomáticas, econômicas e outras não-militares em combinação com o uso de força militar, tudo com o objetivo de substituir governos locais existentes por facções “progressistas”, que implementariam um modelo democrático no padrão ocidental e provocariam uma guinada de tais países em direção a um alinhamento aos interesses nacionais norte-americanos.
Neste sentido, o foco central deste estudo foram os documentos dotados do mais alto nível de sigilo, desclassificados em anos recentes, e que regularam o chamado Projeto Cuba, que trata de um planejamento estratégico-militar destinado a estabelecer uma mudança de regime político no país caribenho.
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A hipótese a ser colocada à prova no presente trabalho é a de que o denominado Projeto Cuba envolveu o emprego de um conjunto de ameaças híbridas, segundo a definição apresentada pelo European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats (Hybrid CoE), revelando um modus operandi norte- americano que pode ter sido aperfeiçoado ao longo dos anos e estar sendo replicado em situações nas quais o interesse nacional dos EUA possa estar em jogo.
O conceito de Ameaças Híbridas
Antes de analisarmos o planejamento estratégico militar dos EUA para a crise dos mísseis cubanos, passaremos a realizar uma breve revisão bibliográfica sobre conceitos relativos às ameaças híbridas.
Segundo o European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats (Hybrid CoE) [1], o termo ameaça híbrida refere-se a uma ação conduzida por atores estatais ou não estatais, cujo objetivo é minar ou prejudicar um alvo, influenciando sua tomada de decisão a nível local, regional, estatal ou institucional (European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats, 2023).
Tais ações são, normalmente, coordenadas e sincronizadas e visam atuar deliberadamente nas vulnerabilidades dos atores estatais, podendo ocorrer em diferentes domínios, tais como o político, o econômico, o militar, o civil ou o informacional. São conduzidas utilizando uma vasta gama de meios e concebidas particularmente para permanecerem abaixo do limiar de atribuição, ou seja, impossibilitando a responsabilização pela sua execução e tornando as ações híbridas muito difíceis de prevenir ou responder (ibid.).
A característica principal de uma ação híbrida é sua ambiguidade, uma vez que seus executores propositalmente atuam numa zona cinza entre o internacional e o nacional, o legal e o ilegal, a paz e a guerra. Mas segundo o Hybrid CoE, a ambiguidade é particularmente criada pela combinação de meios tradicionais (convencionais) e irregulares (não convencionais), estes últimos podendo envolver a desinformação, ataques às infraestruturas críticas, operações cibernéticas, atividades criminosas e terrorismo, buscando as ações planejadas ao largo do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA).
A combinação de meios convencionais e irregulares (não convencionais) também foi uma característica destacada por Najžer, ao afirmar que a principal característica de um produto híbrido é que ele resultaria da fusão de dois antecedentes distintos, nem mais nem menos. No caso em questão, Najžer considera, assim como o Hybrid CoE, que as ações híbridas se apoiam em uma combinação entre formas e métodos convencionais e não convencionais, que seriam os antecedentes básicos de uma forma híbrida de conduzir um conflito armado (hybrid warfare) (Najžer, 2020, p. 22).
Na Figura 1 é apresentado um modelo esquemático de como se verifica a integração entre meios convencionais e não convencionais nas ações híbridas.
Alterando a natureza dos conflitos armados
Como foi apresentado na introdução, a análise realizada pelo general Gerasimov, que serviu de motivação para o presente trabalho, conclui que diversas revoltas, que ele denomina “Revoluções Coloridas”, têm se verificado em diversas partes do mundo, dentre elas o norte da África, o Oriente Médio e em vários países da ex-União Soviética (Gerasimov, 2013).
Segundo afirma Gerasimov em sua apresentação, tais conflitos estariam sendo organizados pelos EUA e seus aliados ocidentais com o objetivo de substituir governos locais existentes por facções alinhadas, de modo a viabilizar a implementação de um modelo democrático no padrão ocidental, provocando uma guinada de tais países em direção aos interesses norte-americanos, modus operandi que estaria caracterizando uma alteração na significativa na natureza dos conflitos armados.
Gerasimov elencou, ainda, diversos meios não-militares que estariam sendo empregados pelos EUA para atender aos seus objetivos políticos em países de interesse, dentre eles se destacariam: incentivo à formação de oposição interna, ação radical das forças políticas, alteração das lideranças políticas e militares, guerra informacional, pressões econômicas, entre outras. Tudo com o propósito de provocar um acirramento de contradições internas e gerar conflitos, que eventualmente podem evoluir para a natureza armada, podendo contar com o apoio ostensivo ou velado norte-americano, de forma a proporcionar uma mudança de governo para uma facção alinhada aos interesses dos EUA.
O planejamento estratégico-militar dos EUA para Cuba
Retornando de uma conferência realizada em Havana, no ano de 1992, na qual personalidades norte-americanas, russas e cubanas discutiram as circunstâncias históricas relacionadas à crise dos mísseis, o ex-secretário de Defesa dos EUA, Robert S. McNamara declarou em uma entrevista ao jornal Washington Post (Oberdorfer, 1992) não ter tido qualquer conhecimento à época de que os russos dispunham de sistemas de mísseis de curto alcance com ogivas nucleares táticas completamente operacionais instalados em Cuba durante a referida crise.
Disse, ainda, que foi surpreendido com a declaração realizada no evento pelo general Anatoly Gribkov, principal planejador da operação russa, que afirmara estar o comandante russo no terreno autorizado a empregar os armamentos nucleares táticos no caso de uma invasão dos EUA ao território cubano, sem a necessidade de receber autorização de Moscou para tal. Concluiu McNamara afirmando que as duas nações estiveram muito mais próximas de um conflito nuclear do que ele jamais imaginara, uma vez que o desembarque de uma força militar estava previsto no planejamento existente, e no caso de que tais armamentos fossem lançados contra as tropas norte-americanas, uma retaliação nuclear estratégica teria a probabilidade de 99% de ocorrência.
Além disso, os planejadores norte-americanos desconheciam completamente a existência de 43 mil soldados russos já desdobrados na ilha cubana, então estimados em um máximo de 10 mil pela inteligência militar norte-americana (Plokhy, 2021, p. 24).
Segundo as próprias palavras de McNamara em outra oportunidade, estaria ele, e toda a liderança norte-americana, sob o que denominara “Névoa da Guerra”, e as decisões tomadas, caso implementadas, poderiam ter tido consequências desastrosas, uma vez que estavam baseadas em dados incorretos da inteligência.
O que significa a “névoa da guerra”: a guerra é tão complexa que fica além da habilidade da mente humana a compreensão de suas variáveis. Nosso julgamento e nosso entendimento não são adequados (Robert S. McNamara, tradução nossa, conforme citado por Blight & Lang, 2005, p. 10) [2].
Passaremos a apresentação dos antecedentes e do desenvolvimento do planejamento estratégico militar elaborados pelos EUA para a crise cubana.
Antecedentes
Ainda em 1820, Thomas Jefferson já havia expressado sua convicção de que Cuba deveria ser tratada como um potencial estado norte-americano. A Guerra Hispano-Americana terminou com vitória dos EUA, que passou a controlar o território cubano, assim como o de Porto Rico por meio do tratado de 1898. Em 1901, os EUA impuseram ao governo independente de Cuba uma emenda à sua nova constituição, observando uma proposta elaborada pelo senador Orville H. Platt, que atribuía à Cuba uma soberania limitada, uma vez que autorizava o governo dos EUA a instalar bases militares na ilha, o que foi efetivamente executado por meio de uma base naval na Baía de Guantánamo (Duncan & Stein, 2021, p. 30-32).
De modo a garantir seus interesses econômicos e estratégicos em Cuba, sucessivos governos estabelecidos em Washington buscaram alianças com lideranças políticas e militares cubanas, sendo destas a mais importante a representada pelo general Fulgêncio Batista, que ocupou o poder entre as décadas de 1940 e 1950 (Plokhy, 2021, pp. 34-37).
Mas essa realidade havia começado a ser ameaçada em julho de 1953, quando um grupo de jovens revolucionários pegou em armas contra a falta de eleições e a corrupção generalizada patrocinada por Fulgêncio Batista. Naquele mês teria ocorrido o conhecido ataque dos revolucionários, liderados por Fidel Castro, ao quartel do exército cubano de Moncada. Após uma forte reação das tropas governamentais, os revolucionários foram presos e exilados no México. Em 1956, Fidel retorna à ilha liderando um novo grupo de revolucionários, estabelecendo uma guerrilha na região de Sierra Maestra, até que em dezembro de 1958 o governo de Batista entrasse em colapso, com sua fuga do país. Em janeiro de 1959, Fidel Castro instalava um novo regime em Cuba (Plokhy, 2021, pp. 38-40).
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Pela primeira vez em sua história, os EUA se viam em uma posição similar aos das antigas potências coloniais europeias, que se mostravam cada vez mais intensamente envolvidas com movimentos de independência de suas possessões asiáticas e africanas, a maioria destas tendendo a adotar movimentos pró-comunistas e a buscar alinhamento com a URSS. E isso logo se verificou também em Cuba.
Em meados de 1960, após um programa cubano de reforma agrária ter confiscado terras de empresas norte-americanas, o então presidente Eisenhower decidiu iniciar um planejamento para estabelecer uma mudança de regime em Cuba. A Agência Central de Inteligência (CIA, Central Intelligence Agency) ficou encarregada de elaborar um plano, baseado no apoio à formação de um movimento popular a ser criado a partir de exilados cubanos residentes no exterior. O planejamento foi elaborado; entretanto, Eisenhower não teve tempo (e nem vontade política) de executá-lo, tendo o mesmo sido repassado ao presidente recém-eleito John Fitzgerald Kennedy em janeiro de 1961 (Plokhy, 2021, pp. 41-43).
O Projeto Cuba
O planejamento destinado a atingir o objetivo político de realizar uma troca de regime em Cuba começou a ser elaborado em março de 1960, ainda no governo do presidente Eisenhower, tendo recebido a designação de “Programa de Ações Encobertas contra o Regime de Castro” [3], ou simplesmente “Projeto Cuba”. O projeto envolveria ações, tanto no campo militar, quanto no paramilitar (The White House, 1960).
O desenvolvimento do Projeto Cuba seria desencadeado por fases, sendo que a primeira delas envolveria a infiltração de agentes para coleta de inteligência, a mobilização da oposição ao regime cubano e execução de propaganda por meio de rádio, concluindo com o desembarque na ilha de uma força de guerrilha integrada por exilados cubanos (The White House, 1960, p. 12).
A referida força tarefa seria treinada em campos da CIA na Guatemala e sua missão seria estabelecer uma cabeça de praia e uma base de operações na ilha, de onde partiriam as ações ofensivas para a derrubada do regime cubano. Este seria segmento paramilitar do Projeto Cuba, cujo planejamento foi elaborado sob a orientação do diretor de operações da CIA, Richard Bissell, e pelo general D. W. Gray, representante da Junta de Chefes de Estado-Maior (JCS) [4] do Departamento de Defesa. O planejamento dessa primeira fase recebeu a designação militar de “Operação Zapata” (Central Intelligence Agency, 1961, p. 4).
Uma segunda fase envolveria gestões político-diplomáticas voltadas para a criação de uma força multinacional de paz, aprovada e liderada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). O Projeto Cuba envolveria, ainda, a previsão de envio de uma força militar norte-americana de intervenção rápida, caso a primeira ou segunda fases não fossem bem-sucedidas (Plokhy, 2021, pp. 44-46).
Esta última variante essencialmente militar do plano envolveria, dentre outras ações, um ataque “bandeira falsa” (false flag) de forças cubanas contra o depósito de munições da base de Guantánamo e contra um navio americano fundeado naquele porto, o que proporcionaria a justificativa para uma intervenção dos EUA (Duncan & Stein, 2021, pp. 37-38).
Entretanto, Kennedy se mostrou temeroso da possibilidade de uma ação direta dos EUA em Cuba, particularmente se isso tivesse que ser executado sem o aval da OEA, possibilidade que não poderia ser descartada (Plokhy, 2021, pp. 44-46).
Mas o apoio militar seria essencial, mesmo para a execução da primeira fase. O desembarque de uma força com efetivo calculado de 6 a 8 mil guerrilheiros demandaria um pesado apoio aéreo e naval do EUA, sem o qual a tropa de “Cubanos Livres” teria grandes dificuldades para se deslocar, desembarcar e se manter na ilha. A referida força recebeu a designação de “Brigada 2506” (Plokhy, 2021, pp. 49).
Kennedy aprovou o plano, com a ressalva de que o desembarque deveria ser noturno, a fim de esconder o envolvimento de navios da Marinha americana, e que as aeronaves empregadas fossem caracterizadas como sendo da Força Aérea Cubana, que dispunha de modelos fornecidos pelos EUA. Todo o esforço deveria ser empreendido para tentar descaracterizar ao máximo o envolvimento militar norte-americano. O local escolhido foi a Baía dos Porcos, e sua execução ocorreria na noite de 16 para 17 de abril de 1961 (Plokhy, 2021, pp. 50-52).
A descaracterização do plano original para atender às diretrizes de Kennedy acabou levando a uma série interminável de erros, ocasionando o completo fracasso da operação, pois a Brigada 2506 acabou ficando sem apoio aéreo, sem apoio naval e sem suprimentos, sendo cercada e dizimada pelas tropas de Castro.
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A desastrada ação dos EUA teve reflexos políticos imediatos em Cuba e na URSS. Num discurso proferido no dia 1º de maio de 1961 (Dia do Trabalho), finalmente Fidel Castro declarava ostensivamente que a revolução cubana era comunista e que ele havia solicitado aos seus assessores que elaborassem uma nova constituição socialista para o país. Castro encerrou se discurso com uma frase que seria incorporada ao discurso cubano por décadas: “Vida longa à nossa revolução socialista” (Plokhy, 2021, p. 44). E a URSS não tardou em celebrar um acordo de cooperação técnico-militar com Cuba, que previa o fornecimento de armamentos e sistemas militares soviéticos.
A Operação Mongoose
Mesmo após o desastre representado pela fracassada ação na Baía dos Porcos, o presidente Kennedy ainda considerava ser essencial para o interesse nacional dos EUA a remoção do governo de Fidel Castro do poder. E isto estava particularmente relacionado ao fato de que em 1962 já se avaliava que a influência soviética sobre Cuba era cada vez mais intensa e tendia a crescer ainda mais após a desastrada ação na Baía dos Porcos, o que poderia representar um risco de transbordamento da ação da URSS para o restante da América Latina.
Neste sentido, Kennedy determinou uma revisão do “Projeto Cuba”, que desse origem a um planejamento muito mais detalhado do que os que até então haviam sido redigidos. Colocando em dúvida a capacidade da CIA de conduzir uma operação de tão grande envergadura, particularmente após o fracasso na Baía dos Porcos, Kennedy encarregou o Departamento de Defesa para executar a tarefa. O responsável pela preparação deste novo planejamento foi o general Edward G. Lansdale, chefe de operações do JCS (Office of the Secretary of Defense, 1962).
O planejamento foi concluído a 20 de fevereiro de 1962, e tinha como objetivo político o estabelecimento de uma revolta popular em Cuba por volta de outubro daquele mesmo ano. Para tal, foi estabelecido o seguinte calendário (Office of the Secretary of Defense, 1962, p. 3): início da execução (março), início das ações encobertas em Cuba (abril-julho), apresentação da situação para decisão ao nível político (até 1º de agosto), início das operações de guerrilha (agosto-setembro), início da revolta popular e derrubada do regime (até a segunda semana de outubro) e estabelecimento do novo governo (até o final de outubro).
As decisões táticas ficariam a cargo do próprio general Lansdale, mas um grupo especial de assessoramento de alto nível foi criado para emitir diretrizes políticas e estratégicas sempre que se fizesse necessário. O Projeto Cuba possuía diversos planejamentos específicos, a saber: Plano Básico de Ação em Cuba, Plano de Suporte Político, Plano de Suporte Econômico, Plano de Operações Psicológicas, Plano de Suporte Militar, Plano de Sabotagens e Plano de Inteligência (Office of the Secretary of Defense, 1962, p. 3).
No caso do Plano de Suporte Militar, o mesmo receberia, em 5 de março de 1962, a designação de “Operation Northwoods”, por meio de um memorando encaminhado por Lansdale ao general William H. Craig. Este último fora designado gerente do mencionado Plano de Suporte Militar (Operação Northwoods) no âmbito do Departamento de Defesa (The Joint Chiefs of Staff, 1962a, p.5).
Um outro memorando, este assinado em março de 1962 pelo general Lyman Louis Lemnitzer, chefe da JCS, apresentou ao general Lansdale as diretrizes político- estratégicas para a Operação Northwoods, que as havia solicitado anteriormente (The Joint Chiefs of Staff, 1962a, p.2). A primeira delas determinava que todas as operações militares ou paramilitares, fossem encobertas ou ostensivas, deveriam permanecer unicamente sob a responsabilidade do chefe da JCS. Outras diretrizes importantes foram no sentido de que as operações militares não poderiam envolver diretamente um confronto com a URSS, e que uma intervenção militar dos EUA deveria ser decorrente de uma escalada de tensões e da existência de ameaças que justificassem uma ação direta.
Mas a diretriz também detalhou minuciosamente as “justificativas para a intervenção militar dos EUA em Cuba”, que na verdade seria um rol de ações do tipo “bandeira falsa” (false flag), que deveriam ser implementadas de forma a imputar ao governo cubano a realização de ataques injustificados à alvos militares e civis norte-americanos, inclusive de caráter terrorista. A adoção dessas ações precederia e justificaria uma invasão em larga escala à Cuba, caso necessário.
Um Plano de Dissimulação deveria ser elaborado para simular ações provocativas e agressivas a serem imputadas ao governo cubano. Neste sentido, uma série coordenada e progressiva de incidentes seria realizada na Base de Guantánamo e imediações, assim como no Mar do Caribe, no espaço aéreo adjacente e mesmo em território norte-americano. Dentre os incidentes propostos, destacam-se os seguintes (The Joint Chiefs of Staff, 1962a, pp. 7-11):
- Início de uma intensiva campanha de desinformação, empregando todos os meios de mídia disponíveis;
- Atuação de forças empregando uniformes cubanos nas proximidades da base de Guantánamo;
- Execução de atentados contra depósitos de munições, embarcações e aeronaves militares estacionadas na base de Guantánamo, inclusive mediante o uso de granadas de morteiro disparadas de fora do perímetro da mesma, cuidadosamente desencadeados para obter danos limitados;
- Captura de sabotadores cubanos (na verdade elementos exilados cubanos à serviço da CIA);
- Afundamento de uma embarcação militar norte-americana na baía de Guantánamo, inclusive com “mortos” simulados, que seriam enterrados em funeral de forma a aumentar a comoção. Este incidente teria por objetivo recriar a comoção causada pelo afundamento do navio Maine, da Marinha dos EUA [5];
- Execução de uma campanha terrorista na região da cidade de Miami (Flórida) e eventualmente na própria cidade de Washington, inclusive com a detonação de explosivos em locais cuidadosamente selecionados, e que levariam à prisão de “sabotadores cubanos” e apreensão de documentos comprometedores;
- Derrubada de uma aeronave civil de passageiros em uma rota de Miami para algum país da América Central, que seria executada por um caça norte- americano F-86 dissimulado como uma aeronave MiG da Força Aérea Cubana. Este incidente seria desencadeado contra uma aeronave real adaptada para voar de forma remotamente pilotada, com a ocorrência de mais mortes simuladas. Este incidente foi detalhadamente descrito no memorando.
No que se refere à invasão em larga escala (Operação Northwoods), envolveria um componente terrestre/anfíbio, que recebeu a designação de OPLAN 316-62, e um componente aéreo, que por sua vez recebeu a designação de OPLAN 312-62 (The Joint Chiefs of Staff, 1962b, p. 21).
O planejamento da invasão, constante da OPLAN 316-62 (The Joint Chiefs of Staff, 1962c), envolvia um emprego maciço de meios, incluindo as 82ª e 101ª Divisões Aerotransportadas (respectivamente de Fort Bragg e Fort Campbell), as 1ª e 2ª Divisões de Infantaria (respectivamente de Fort Riley e Fort Benning), a 1ª Divisão Blindada (Fort Stewart), assim como tropas de Fuzileiros Navais. A figura 2 apresenta o esquema de manobra estabelecido pela OPLAN 316-62.
Conclusões
A análise foi realizada na documentação relativa ao Plano Cuba, conjunto de documentos ultrassecretos norte-americanos desclassificados em anos recentes. O trabalho não buscou avaliar a efetividade do referido planejamento, uma vez que a maior parte de suas ações nem sequer chegaram a ser implementadas, como foi o caso específico da Operação Northwoods (OPLAN 316-62). De fato, a única ação ostensiva realizada teria sido a tentativa de desembarque de uma força proxy [6] na Baía dos Porcos. No que se refere às ações sigilosas, devido à sua natureza, não foi possível confirmar que tenham sido realizadas em sua totalidade.
Entretanto, ficou claro que o Projeto Cuba envolveu o planejamento de ações informacionais, terroristas, paramilitares e militares, de caráter ostensivo e secreto, com uso de elementos atuando sob procuração, estando seu objetivo voltado para a substituição do regime político em Cuba.
Foi possível observar também um grande esforço para se evitar escalar o conflito ao nível de guerra convencional em larga escala, mas esta situação também estava planejada na documentação analisada, tudo com o propósito de atender aos interesses nacionais dos EUA.
As ações previstas no Plano Cuba se mostraram coordenadas e sincronizadas de forma a atuar deliberadamente nas vulnerabilidades de Cuba, e para tal se desenvolveram em diferentes domínios, tais como o político, o econômico, o militar, o civil ou o informacional, inclusive com a existência de planejamentos específicos para cada uma destas áreas.
As ações foram especialmente planejadas para permanecerem abaixo do limiar de atribuição, ou seja, impossibilitando a responsabilização pela sua execução para o governo norte-americano, simulando a ação do próprio governo ou forças armadas cubanas, como foi no caso dos ataques planejados à Base de Guantánamo, ou para a derrubada de uma aeronave civil, ou mesmo na execução de atentados terroristas no próprio solo norte-americano.
Tudo isso permite enquadrar as ações planejadas pelos EUA no conceito de ações híbridas, conforme apresentado pelo European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats (Hybrid CoE).
Finalmente, a análise realizada permitiu confirmar que as ações planejadas no Plano Cuba parecem adotar os padrões levantados pelo general Gerasimov, conforme foi também apresentado.
Não é possível afirmar que outros conflitos que se verificam na atualidade teriam participação direta dos EUA em sua gestação e desenvolvimento, e tal confirmação talvez venha a ser obtida somente em várias décadas, quando documentos ultrassecretos norte-americanos venham a ser novamente desclassificados, mas as evidências aqui apresentadas permitem estabelecer uma dúvida razoável de que estratégias similares possam ainda estar sendo desenvolvidas para que o interesse nacional dos EUA seja atingido mediante a contribuição de ações híbridas, como claramente foi buscado por meio do Projeto Cuba.
Referências
BLIGHT, J. G.; LANG, J. M. The Fog of War: Lessons from the Life of Robert McNamara. Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, 2005.
Central Intelligence Agency. (5 de maio de 1961). Clandestine Services History. Record of Paramilitary Actions Against the Castro Government of Cuba. Langley. Disponível em: https://shre.ink/klFK.
DUNCAN, T. K.; STEIN, C. R. Thirteen Days of Tension. New York: Rosen Publishing, 2021.
European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats, 2023. Hybrid Threats as a Concept. Disponível em Hybrid CoE: https://shre.ink/Qna8.
GERASIMOV, V. Cennost Nauki v Predvidenii: Noviie vjzovii trebuüt pereosmiislit’ Formii i Sposobii Vedenia Boeviix Deystviy. Moscou, 2023. Disponível em: https://shre.ink/QnWu.
NAJŽER, B. The Hybrid Age: International Security in the Era of Hybrid Warfare. London: Tauris, 2020.
OBERDORFER, D. Cuban Missile Crisis More Volatile than Thought. The Washington Post, 14 de janeiro de 1992. Disponível em: https://shre.ink/ke6G.
Office of the Secretary of Defense. The Cuba Project. Washington, 20 de fevereiro de 1962. Disponível em: https://shre.ink/klaq.
PLOKHY, S. Nuclear Folly: A History of the Cuban Missile Crisis. New York: W. W. Norton & Company, 2021.
RADCHENKO, S.; ZUBOK, V. (2023). Blundering on the Brink: The Secret History and Unlearned Lessons of the Cuban Missile Crisis. Foreign Affairs, 102, 2023. Disponível em: https://shre.ink/kEVW.
The Joint Chiefs of Staff. Memorandum for the Secretary of Defense. Justification for US Military Intervention in Cuba. Washington, Estados Unidos da América, 13 de março de 1962. Disponível em: https://shre.ink/kalb.
The Joint Chiefs of Staff. Notes Taken from Transcripts of Meetings. Dealing with the Cuban Missile Crisis. Washington, Estados Unidos da América, outubro-novembro de 1962. Disponível em: https://shre.ink/ksHt.
The Joint Chiefs of Staff. Talking Paper for the Joint Chiefs of Staff. Exercise for Forces assigned to CINCLANT for OPLAN 316-62. Washington, Estados Unidos da América, 6 de novembro de 1962. Disponível em: https://shre.ink/kXeA.
The White House. A Program of Covert Actions Against the Castro Regime. Washington, 16 de março de 1960. Disponível em: https://shre.ink/klze.
Notas
[1] O Hybrid CoE é uma organização da sociedade civil sediada na Finlândia, que realiza pesquisas voltadas para o fenômeno das ameaças híbridas, mantendo uma cerrada cooperação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) neste tema.
[2] No original: “What ‘the fog of war’ means is: war is so complex it’s beyond the ability of the human mind to comprehend all of the variables. Our judgment, our understanding, are not adequate.”
[3] No original: “A Program of Covert Action Against the Castro Regime.”
[4] JCS: Joint Chiefs of Staff.
[5] O Maine era um navio encouraçado americano que afundou após uma explosão de causas nunca totalmente esclarecidas, evento ocorrido em fevereiro de 1898, na região do porto de Havana. Centenas de marinheiros norte-americanos foram vitimados no incidente, o que provocou uma comoção nacional e incentivou uma maior intervenção em Cuba.
[6] Elementos atuando sob procuração, no caso os exilados cubanos residentes nos EUA.