Por Carlos Henrique Arantes de Moraes*
A questão do Essequibo entre Venezuela e Guiana mostra que o Brasil, embora com histórico de neutralidade nos conflitos regionais, deve desenvolver capacidade militar suficiente para negar o uso de seu próprio território para qualquer dos lados.
As fronteiras representam importante objeto de geopolítica, sob diversas análises de acordo com o campo de estudo em que são vistas, seja político, jurídico, econômico, geográfico, entre outros. As fronteiras são então elementos essenciais de um Estado e caracterizam a prática de sua soberania.
Neste escopo, no último dia 20 de outubro, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Jorge Rodríguez, anunciou um referendo para o próximo dia 3 de dezembro com a finalidade de perguntar à população venezuelana se concorda ou não com a anexação da região de Essequibo, território da Guiana.
O congresso venezuelano, fortemente influenciado e alinhado pelo presidente Nicolás Maduro, se fundamenta na pauta anti-imperialista dos Estados Unidos sobre a América Latina. Ainda que desmentida pelo governo norte-americano, há receio de ativação de instalações militares no território guianense.
O presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, se pronunciou dizendo que a medida é uma “afronta ao Estado de Direito internacional”.
A região do Essequibo possui mais de 160 mil quilômetros quadrados, o que representa aproximadamente 70% do território da Guiana. A Venezuela argumenta que a região fez parte da área territorial durante o período colonial.
Ao longo do tempo foram diversas tentativas de negociações diplomáticas a fim de solucionar a questão, sem, contudo, escalar para o nível de agressão entre os dois países. As arbitragens internacionais favoreceram o Reino Unido, em um primeiro momento, e a Guiana após a sua independência, contribuindo para uma posição crítica por parte da Venezuela quanto às decisões internacionais.
Como última decisão, a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1962, confirmou que o território pertencia ao Reino Unido. Após quatro anos, em 1966, a Guiana alcança sua independência e manteve sob seu domínio a região de Essequibo. Entretanto, os venezuelanos permanecem contestando a decisão.
Vale ressaltar que em 2015, a descoberta de grandes reservas de petróleo pela empresa norte americana Exxon Mobil recrudesceu o interesse na região, reascendendo a disputa fronteiriça. A partir dessa descoberta, o Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta um aumento de 38% do PIB guianense, assumindo a posição de maior crescimento no mundo. Além do petróleo, a região do Essequibo também se caracteriza pela produção aurífera.
O atual momento do sistema internacional favorece o discurso venezuelano. A invasão russa na Ucrânia, somada aos ataques terroristas do Hamas em Israel, afastam os olhos do mundo da América do Sul e relativizam um possível conflito.
Ainda assim, é muito difícil apostar em uma escalada bélica sobre a questão. A Venezuela teria que receber apoio externo para esse fim, o que provavelmente faria os Estados Unidos intervirem, já que a região é considerada zona de influência norte americana.
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Outro ponto a favor dos venezuelanos é o atual governo brasileiro, declaradamente alinhado a Nicolás Maduro. A liderança brasileira regional pode pesar favoravelmente no campo diplomático. Mesmo assim, é improvável um apoio brasileiro aos venezuelanos caso a disputa evolua para o campo militar.
Para o Brasil, é óbvio que a instabilidade entre seus vizinhos e a possibilidade de um conflito bélico chama a atenção. No entanto, no caso de Essequibo, essa preocupação engloba maiores proporções devido a uma provável utilização de território nacional pelos contendores. A fisiografia da fronteira entre a Guiana e a Venezuela se caracteriza por uma floresta densa ao longo de toda a linha fronteiriça, com ausência de eixos penetrantes. Desse modo, em uma ação militar em qualquer das direções, seria tentadora a utilização das estradas brasileiras para o deslocamento de grandes efetivos, logísticos e de comando e controle.
As estradas existentes na região passam pelo Brasil. Isso, do ponto de vista militar, seria uma linha de ação para uma possível ofensiva a ser considerada, particularmente pela Venezuela – a utilização dessas estradas como Direção Tática de Atuação, ferindo gravemente a soberania nacional.
A historicidade brasileira no que diz respeito a conflitos bélicos na América do Sul é prezar pela neutralidade, inclusive assumindo papel de mediador como já ocorreu nos casos dos conflitos do Chaco, de Letícia e de Cenepa. Vale ressaltar que a neutralidade exige capacidade militar em negar o uso de seu próprio território para ambos os lados.
Por fim, sobre o referendo pode-se concluir que:
- A disputa remonta épocas coloniais, ainda entre as antigas metrópoles;
- As recentes e exitosas explorações petrolíferas na costa guianense recrudescem o conflito;
- O atual momento do sistema internacional, com a guerra entre Rússia e Ucrânia e os ataques terroristas em Israel, possibilita o reaparecimento de antigas questões territoriais;
- Mais uma vez o Brasil demonstra liderança regional frágil para conduzir uma solução de apaziguamento na discussão territorial, principalmente por se tratar de uma área próxima à sua fronteira;
- Ainda que improvável, uma escalada na disputa entre as partes pode acarretar a necessidade de mobilização nacional, mesmo assumindo uma postura de neutralidade;
- Caso a população venezuelana responda ao referendo positivamente, é provável que potências do âmbito mundial se aproximem da região disputando influência, para ambos os lados. Haja vista que ambos os países – Guiana e Venezuela – não possuem força política e econômica para se confrontarem sem apoio externo;
- A América do Sul, mais uma vez, dá sinais de que não é um continente pacífico. Ainda que a ausência de guerras seja constante, questões em aberto que afloram em determinados períodos não permitem garantir um ambiente estável na região.
*Carlos Henrique Arantes de Moraes é major do Exército Brasileiro, turma 2003 da AMAN. Realizou os cursos de Operações na Selva no CIGS, de Aperfeiçoamento de Oficiais na EsAO, de Comando e Estado-Maior do Exército na ECEME e Avançado de Inteligência na EsIMEx. Possui pós-graduação em Ciências Políticas pela Faculdade UNILEYA e mestrado em Ciências Militares pelo Instituto Meira Mattos (IMM) da ECEME.