Empregando táticas que hoje poderiam ser rotuladas como híbridas, o general Giap levou o Vietnã a derrotar duas grandes potências militares, a França e os Estados Unidos.
Introdução
Grande líder militar da campanha de libertação nacional do Vietnã, o general Võ Nguyên Giap foi um dos maiores expoentes no planejamento e condução dos combates de insurgência, da guerrilha e da Guerra Revolucionária. Mas, a partir da campanha de Diên Biên Phú, ficou patente que ele era muito mais do que isso. Empregando extensivamente táticas que, nos modismos de hoje, se poderiam rotular de híbridas, as estratégias militares de Giap permitiram ao Vietnã derrotar duas das maiores potências militares, inicialmente a França e depois os Estados Unidos da América (EUA), colocando-o no patamar dos maiores estrategistas militares da história da arte da guerra.
Mas isso não foi tudo. Giap desenvolveu uma metodologia própria de planejamento estratégico. Com uma visão pouco comum existente na maioria dos táticos, Giap reservava um atenção especial para a logística militar, essencial para o desenvolvimento de operações de grande envergadura, em especial para um país absolutamente carente de recursos materiais, humanos, econômicos e tecnológicos, como era o Vietnã.
Neste artigo, é apresentada uma revisão da carreira do general Giap, destacando sua contribuição para a evolução da arte da guerra, particularmente em decorrência do planejamento operacional elaborado para a campanha de Diên Biên Phú.
As origens, o revolucionário e a gênesis do estrategista
Võ Nguyên Giap (1911-2013) foi um general Vietnamita que desempenhou a função de comandante supremo do Exército do Vietnã nas campanhas contra os franceses e contra os EUA, ambas vitoriosas, permitindo que fosse considerado um dos mais importantes líderes militares do século XX. Mas foi sua atuação à frente do planejamento da campanha de Diên Biên Phú que chamou a atenção para a sua figura, e o elevou de uma categoria de mestre da guerra irregular para o nível dos maiores estrategistas na arte da guerra.
Tendo iniciado sua vida profissional como professor ginasial, em suas aulas de história Giap frequentemente transmitia a seus alunos sua obsessão por Napoleão, e não raras vezes desenhava no quadro negro os esquemas de batalha das guerras napoleônicas (Levanter, 2014, p. 5).
Enquanto colônia francesa, o destino do Vietnã começaria a mudar com a derrota da França frente aos alemães na Segunda Guerra Mundial, fazendo com que as possessões na Indochina acabassem sendo dominadas pelas tropas do Exército Imperial Japonês, e uma campanha de libertação popular baseada na guerra irregular se iniciasse, com forte apoio chinês. E isso também influenciou a vida de Giap, que aderiu ao movimento revolucionário e nele logo atingiu um nível de liderança. Giap foi adquirindo um papel cada vez mais relevante na coordenação das ações irregulares, ensinamentos que colheu no período em que esteve refugiado na China, com base nas ideias de Mao Tsé Tung.
Mas foi por sua iniciativa que o exército regular vietnamita seria criado, ainda em 1944, o que por si só já revelou um esforço considerável. A tropa inicial de um pelotão acabou por dar origem, em menos de 30 anos, a uma força com um efetivo de mais de dois milhões de homens e mulheres, que foi capaz de derrotar em campo de batalha as maiores potências do globo.
A derrota japonesa na guerra, em 1945, somente fez com que o movimento revolucionário vietnamita mudasse o foco e as potências imperialistas a serem combatidas. A partir de setembro daquele ano, tropas inglesas e francesas desembarcavam em Saigon. Os chineses, até então aliados, ocuparam o norte do país.
O exército regular de Giap, sempre apoiado por milícias e forças irregulares, enfrentaria, sob a liderança do general vietnamita, adversários de peso, tais como os generais franceses De Lattre de Tassigny, Raoul Salan e Henri Navarre. Anos depois, e já com maior experiência, as estratégias de Giap também foram capazes de derrotar capacitados generais dos EUA, tais como Paul Harkins, William Westmoreland, Creighton Abrams e Maxwell Taylor.
Dotado da capacidade de combinar com maestria as ações irregulares e convencionais numa mesma campanha e no mesmo espaço de batalha, estratégia que nos dias de hoje alguns denominam como hybrid warfare, esse talvez tenha sido o grande diferencial de Giap, competência que foi desenvolvendo ao longo das inúmeras batalhas das quais participou.
O método de Giap
Como já apresentado, Giap havia adquirido junto à Mao Tse Tung uma visão muito forte sobre a importância dos métodos irregulares para uma campanha de libertação nacional, com fortes bases na atuação prioritária em ambiente rural. E nas palavras de Giap, a melhor estratégia seria uma de desgaste, na qual a guerra deveria ser imposta por longos períodos, de forma a abalar a capacidade de forças convencionais lutarem e resistirem. Conforme as palavras de Giap:
Assim, o inimigo será apanhado num dilema: ter que arrastar a guerra para vencer e não possuir, por outro lado, os meios psicológicos e políticos para travar uma guerra prolongada. (Levanter, 2014, p. 49).
Mas uma das suas facetas mais interessantes era sua obsessão pela logística e pela administração, sem o domínio das quais ele considerava impossível pensar em conduzir qualquer operação de grande envergadura, aspecto ao qual poucas lideranças militares de peso atribuíram tanta prioridade quanto Giap.
Como exemplo, poderíamos citar o seu pioneiro esforço logístico na preparação para a batalha de Minh, em 1951, na qual Giap planejou uma estrutura de fornecimento de 5.000 toneladas de arroz, munição e outros suprimentos, apenas para um combate que durou quatro dias, o que requereu dois milhões de homens-dia de trabalho. Outro exemplo teria sido a ofensiva de Quand Tri, contra as tropas dos EUA, ocorrida na primavera de 1972. A inteligência norte-americana avaliara que uma força de grandes efetivos não poderia se manter e realizar uma ofensiva tão longe de suas bases conhecidas, não considerando que a logística era a preocupação primordial de Giap. E pagaram por esse erro de avaliação (Levanter, 2014, p. 52).
Outros aspecto central no método de Giap era a incessante busca pela eficiência organizacional. Essa era uma característica de suas estratégias, e que se baseava em duas premissas básicas: mobilização permanente e motivação, componentes que permitiriam reverter perdas materiais e humanas, sempre previsíveis em um confronto assimétrico. Sobre esse ponto, o general Maxwell Taylor teria afirmado em 1964 (Levanter, 2014, p. 53): “A habilidade do Viet Cong em continuamente reconstruir suas unidades e fazer mais com as suas perdas é um dos mistérios desta guerra de guerrilha.”
Um outro aspecto muito peculiar do método de Giap estava relacionado ao apoio popular, sempre muito caracterizado como essencial para uma guerra irregular. Mas Giap não pensava dessa forma, ao estabelecer que essa premissa não era necessariamente verdadeira, ao entender que o tratamento rude com a população não garantiria o seu apoio, mas sim, garantiria que ela não trabalharia contra a guerrilha. Muitas vezes as forças lideradas por Giap demonstraram uma incrível habilidade em operar com efetividade em áreas onde a população era predominantemente hostil ou, no mínimo indiferente.
Finalmente, um dos princípios mais importantes do método de Giap era o da dissimulação, segundo ele essencial para uma estratégia convencional num contexto assimétrico. E isso não envolvia apenas a surpresa sobre a manobra a ser adotada, mas particularmente sobre as deficiências existentes. Giap considerava que a percepção que o inimigo tinha de suas tropas era um fator essencial para a estratégia a ser adotada. Como veremos mais à frente na descrição do planejamento da batalha de Diên Biên Phú, tanto os franceses quanto os Vietnamitas estavam exaustos e lidavam com restrições de todos os tipos, mas a vitória tendeu para aqueles que foram capazes de esconder suas deficiências em face dos oponentes. Também na ofensiva contra os franceses em 1944, realizada na véspera do Natal, tal dissimulação foi decisiva, pois Giap decidira aproveitar a data festiva para uma ação decisiva, mesmo sendo o exército popular Vietnamita recém-criado e ainda muito mal organizado. Também na ofensiva do Tet de 1968 (um feriado Vietnamita), contra os norte-americanos, novamente Giap viria a surpreender a inteligência dos EUA.
Um novo patamar: a batalha de Diên Biên Phú
Por meio da campanha de Diên Biên Phú, nosso exército avançou de sua capacidade de realizar ataques de pequena escala contra posições fortificadas, com o objetivo de destruir individualmente batalhões, para se tornar capaz de desenvolver operações em larga escala, eliminando 21 batalhões inimigos. … Nossa grande vitória em Diên Biên Phú se deveu a uma efetiva integração e cooperação entre o exército regular, os exércitos e milícias locais e as forças de guerrilha nos campos de batalha em todo o país. (Giap, 2014, p. 251).
Em outubro de 1953, em uma reunião chefiada pessoalmente por Ho Chi Minh, o general Giap discutia as opções para uma ofensiva prevista para a próxima estação seca do clima vietnamita. Analisando o dispositivo da tropas francesas, chegou-se à conclusão de que seria importante liberar a fronteira com a China, e para tal, as bases francesas de Lai Chau e Hai Ninh precisariam ser eliminadas.
Tomada a decisão no nível político, Giap iniciou seus preparativos naquele mesmo mês, com o envio da Brigada 316 para a região noroeste do Teatro de Operações (TO). Mas nesse interim, os franceses também atuaram, tendo realizado um desembarque aeroterrestre em Diên Biên Phú, adicionando seis batalhões de tropas descansadas à região. A base francesa de Lai Chau foi evacuada, e as tropas se reuniram aos paraquedistas em Diên Biên Phú, totalizando agora um efetivo de 10 batalhões franceses no local. Um dispositivo de posições fortificadas passou a ser construído ao redor da base.
O dispositivo francês passou a ser estabelecido conforme o esquema da Figura 2.
De posse dessa informação, Giap enviou as Brigadas 304, 308 e 312 para reforçar o dispositivo Vietnamita na região. Também a recém-criada Brigada 351, esta dotada de meios de artilharia e antiaéreos, foi deslocada para a região de operações. Diversas ofensivas passaram a ser realizadas em outros pontos do TO, particularmente no baixo e médio Laos, de forma a fixar eventuais reservas francesas.
Em janeiro de 1954, Giap organizou seu posto de comando na frente de combate, constituído por um chefe do Estado-Maior, uma Seção de Operações, uma Seção Logística e um Departamento Político. Segundo as próprias palavras de Giap, “Eu havia tomado parte em diversas campanhas, mas nunca nada parecido com o que estávamos organizando naquela primavera” (Giap, 2014, p. 11).
Mas a estratégia ofensiva, o plano de operações para esta batalha, esta ainda não havia sido definida. Giap nunca tinha empreendido uma ação convencional de tal envergadura. Suas tropas nunca tinham atuado com apoio de artilharia. Existiriam muitas indefinições a serem equacionadas.
Giap elaborou duas linhas de ação, as quais denominou respectivamente de “Ataque Rápido, Vitória Rápida” e “Ataque Constante, Avanço Constante” (Giap, 2014, p. 15).
A primeira delas, o “Ataque Rápido, Vitória Rápida”, envolveria ataques secundários, que seriam direcionados aos pontos vulneráveis do sistema defensivo, atraindo e fixando reservas. Simultaneamente, um ataque decisivo seria desfechado contra o posto de comando, causando pânico no coração do dispositivo circular de defesa francês.
A segunda linha de ação, o “Ataque Constante, Avanço Constante”, envolveria uma estratégia de desgaste, atacando passo-a-passo o perímetro defensivo externo, cercando e destruindo sucessivamente bolsões de resistência, de modo a comprometer progressivamente o sistema defensivo. Esta teria sido inicialmente a opção prioritária, para qual Giap estimara a distribuição das brigadas em três Divisões de Infantaria e os apoios correspondentes, totalizando um efetivo de 42.000 homens.
Segundo Giap, “Eu sempre avaliei que, com o nível de capacidades de combate e armamentos então disponíveis, nós somente poderíamos destruir bases poderosas numa luta passo-a-passo” (Giap, 2014, p. 15). Além disso, ele considerava que os franceses teriam tido tempo para organizar defesas fortemente defendidas.
O lado logístico de Giap estava no grau máximo de atuação. A preparação para esta batalha envolveu a reparação ou construção de milhares de quilômetros de estradas. Pontes e passagens tiveram de ser construídas. A única estrada existente, carroçável apenas, havia sido há muito sido abandonada. Somente com tais acessos reparados, a artilharia poderia ser transportada para suas posições de fogo.
Os períodos noturnos passaram a esconder uma atividade frenética. Longos comboios de caminhões transportavam artilharia e suprimentos. As filas de soldados, que a pé ou em bicicletas, transportavam materiais, armas, munições e rações, pareciam não ter fim.
Mais de 8.000 toneladas de suprimentos teriam que ser deslocados antes que a ofensiva se iniciasse.
O plano de operações vinha se delineando. A Brigada 308 foi designada para uma ataque no sentido no sentido leste, e as Brigadas 312 e 316 atacariam posições mais vulneráveis no sentido oeste.
Entretanto, a aproximação da artilharia se mostrava problemática. Nenhuma das baterias havia sido desdobrada nos locais previstos e nos prazos estabelecidos, particularmente por necessitarem de deslocamentos através de selva e em terreno montanhoso para atingir as zonas de reunião finais, o que exigia um esforço gigantesco do Regimento de Artilharia 57.
Numa reunião final com seu estado-maior, Giap revisou a estratégia, mais uma vez colocando sua opinião no sentido de que a linha de ação do “Ataque Rápido, Vitória Rápida” se mostrava impossível naquelas condições, elencando três fatores determinantes: falta de experiência no ataque a posições fortemente defendidas, ausência de carros de combate e apoio aéreo, e falta de experiência em ataques diurnos. Independentemente da linha de ação, Giap concluiu que tais deficiências precisariam ser sanadas para o desencadeamento do ataque, decidindo por um adiamento da ofensiva para os preparativos e reconhecimentos para a implementação da linha de ação “Ataque Constante, Avanço Constante”. Segundo Giap, o ataque somente seria realizado quando houvesse 100% de certeza na vitória. Após um mês e meio o dispositivo estaria pronto.
Os franceses também vinham se preparando, e seu efetivo agora já contava com 19 batalhões de infantaria, número que poderia aumentar, caso um novo adiamento se fizesse necessário.
Giap determinou, nesse período, que fosse preparado um sistema de fortificações ao redor de todo o dispositivo francês, e que levou à construção de centenas de quilômetros de trincheiras, de modo que seus combatentes dispusessem de abrigo contra os fogos inimigos. Acessos foram construídos para todas as posições de artilharia, permitindo o desdobramento de um fluxo de remuniciamento.
O esquema de manobra de Giap foi o constante da Figura 3.
No dia 13 de março de 1954 o ataque foi iniciado. Giap havia declarado (Giap, 2014, p. 34): “Nós decidimos destruir gradualmente os bolsões de resistência um por um, sempre escolhendo quando e onde atacar. Também pudemos alcançar uma superioridade de efetivos a cada ataque, enquanto consolidávamos nossos ponto fortes e cortávamos as linhas de suprimentos inimigas, até que a base caísse”.
O general De Castries, comandante do Corpo Expedicionário Francês, assistia incrédulo à destruição de cada um de seus pontos fortes em face aos sucessivos ataques vietnamitas. No dia 7 de maio de 1954 a bandeira vietnamita era hasteada sobre o posto de comando do general De Castries. Mais de 10.000 soldados franceses se rendiam.
Conclusão
Conforme pudemos observar, o general Giap demonstrou ao longo de sua profícua carreira militar um pendor inigualável para a condução das operações militares de grande complexidade.
Particularmente na campanha de Diên Biên Phú, as estratégias de Giap, baseadas em um método próprio e inovador, permitiram ao Vietnã derrotar a potência colonial francesa, experiência que lhe permitiria, anos depois, derrotar os EUA, uma superpotência global.
Podemos afirmar que o general Giap constituiu reunir em si e no seu método de planejamento estratégico, tudo do que havia de melhor em Sun Tzu, Jomini, Clausewitz, Napoleão, Júkov e tantos outros.
Seria uma justa homenagem colocar seu retrato em uma galeria ao lado de todos eles.
Referências
GIAP, V. N. (2014). Diên Biên Phú: Memoirs of War. Hanoi: Thé Giói Publishers.
LEVANTER, J. C. (2014). General Vo Nguyen Giap: The Vietnamese Napoleon. Auckland: Pickle Partners.