O que esperar da ofensiva de inverno da Rússia na Ucrânia

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O presidente russo, Vladimir Putin, se reuniu com mães de militares que estão servindo na Ucrânia antes do Dia das Mães em Novo-Ogaryovo, perto de Moscou, Rússia, sexta-feira, 25 de novembro de 2022. O Dia das Mães na Rússia é comemorado no último domingo de novembro (Alexander Shcherbak/Sputnik/Kremlin Pool via AP).

Por M. K. Bhadrakumar*

O presidente russo, Vladimir Putin, se reuniu com mães de militares que estão servindo na Ucrânia antes do Dia das Mães em Novo-Ogaryovo, perto de Moscou, Rússia, sexta-feira, 25 de novembro de 2022. O Dia das Mães na Rússia é comemorado no último domingo de novembro (Alexander Shcherbak/Sputnik/Kremlin Pool via AP).

Mostrando grande capital político em reunião com mães de soldados, Putin deixou claro que derrotar os neonazistas continua sendo um objetivo firme, mas destacou que não há mudança nos planos para o desenvolvimento do país.


Ao ler a transcrição de 18.000 palavras de uma reunião de horas que o presidente Vladimir Putin teve com as “mães dos soldados” na última sexta-feira em Moscou, fica-se com a impressão de que os combates na Ucrânia podem continuar até 2023 – e até além.

Em uma observação muito reveladora, Putin reconheceu que Moscou cometeu um erro crasso em 2014 ao deixar o Donbass como um assunto inacabado – ao contrário da Crimeia – ao se deixar atrair pelo cessar-fogo mediado pela Alemanha e pela França e pelos acordos de Minsk.

Moscou levou algum tempo para perceber que a Alemanha e a França conspiraram com a então liderança em Kiev para impedir a implementação do acordo de Minsk. O então presidente ucraniano, Petro Poroshenko, admitiu em uma série de entrevistas com agências de notícias ocidentais nos últimos meses, incluindo na televisão alemã Deutsche Welle e na unidade ucraniana da Radio Free Europe, que o cessar-fogo de 2015 foi uma distração destinada a ganhar tempo para Kiev reconstruir suas forças armadas.

Em suas palavras: “Conseguimos tudo o que queríamos, nosso objetivo era, primeiro, parar a ameaça [russa], ou pelo menos atrasar a guerra – garantir oito anos para restaurar o crescimento econômico e criar forças armadas poderosas”.

A chamada Fórmula Steinmeier (proposta pelo presidente alemão Frank-Walter Steinmeier em 2016, quando era ministro das Relações Exteriores) sobre a sequência do acordo de Minsk, exigia a realização de eleições nos territórios de Donbass controlados pelos separatistas sob a legislação ucraniana e a supervisão da OSCE; e, se a OSCE julgasse a votação livre e justa, então um status especial de autogoverno para os territórios de Donbass seria iniciado e o controle da Ucrânia de sua fronteira oriental com a Rússia seria restaurado.

Putin admitiu que a Rússia aceitou os acordos de Minsk ignorando os desejos da população russa em Donbass. Para citá-lo, “nós fomos sinceramente para isso. Mas não sentimos totalmente o humor das pessoas, era impossível entender completamente o que estava acontecendo lá. Mas agora provavelmente ficou óbvio que essa reunião [do Donbass] deveria ter acontecido antes. Talvez não houvesse tantas perdas entre os civis, não houvesse tantas crianças mortas sob bombardeios…”

Pela primeira vez, talvez, um líder em exercício do Kremlin admitiu ter cometido erros. A passagem comovente acima, portanto, torna-se uma pedra de toque para as decisões futuras de Putin, à medida que a mobilização russa se aproxima do estágio final e, até o final de dezembro, cerca de 400 mil (o texto original grafa “4 lakh” –o autor do texto é indiano, e, em hindi, o termo lakh é uma unidade que equivale a cem mil) de tropas russas adicionais serão posicionadas em posições avançadas.

O ponto principal é que Putin bateu a porta em outra confusão de modernidades e antiguidades, como em Minsk. Como isso se traduz como realidade política?

Em primeiro lugar, por mais que Moscou esteja aberta ao diálogo sem pré-condições, os negociadores russos estarão atados às recentes emendas à Constituição do país, que incorporou as regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhya como parte da Federação Russa.

Em segundo lugar, a reunião de sexta-feira foi, de qualquer forma, uma iniciativa audaciosa de Putin – arriscada, politicamente falando. Seus interlocutores incluíam mães vindas de regiões distantes, cujos filhos estão lutando ativamente no front de guerra, ou vivenciaram a tragédia de filhos mortos em combate, ou gravemente feridos e precisam de reabilitação prolongada.

Eram mulheres com força de vontade, com certeza, e ainda assim, como uma delas da pequena cidade de Kirovsk, em Luhansk, disse a Putin ao relembrar a morte de seu filho, Konstantin Pshenichkin, na linha de frente: “Meu coração sangra, minha alma congela, tristes lembranças turvam minha mente, lágrimas, lágrimas, e de repente meu filho me pergunta: ‘Mãe, não fique triste, eu vou te ver – você só tem que esperar. Você passará por esta vida por mim e, naquela vida, estaremos juntos novamente’.”

Putin afirmou abertamente – altamente incomum para um líder do Kremlin – que ele foi preparado para a reunião. Mas ele ainda tinha surpresas reservadas. Essas reuniões são impossíveis de serem coreografadas, pois emoções reprimidas estão em jogo na frente das câmeras de TV.


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Assim, Marina Bakhilina, da República de Sakha, mãe de três filhos (um dos quais é um soldado altamente condecorado das Forças Aerotransportadas de elite, 83ª Brigada que foi agraciado com a Ordem da Coragem) reclamou que não há comida quente na linha de frente. Ela disse a Putin: “Você entende o que está acontecendo? Se nosso povo não pode fornecer refeições quentes aos nossos soldados, eu, como mestre de esporte e atiradora CMC (Combat Marksmanship Coach, Treinador de Pontaria de Combate em tradução literal), adoraria ir para lá, para a linha de frente para cozinhar.”

Putin respondeu gentilmente: “Parece que os problemas já foram resolvidos em sua maioria… isso significa que nem tudo está normal…”

O que se destaca nessas trocas francas é o enorme capital político de Putin, derivado da grande consolidação que ele reuniu para fazer com que a nação se unisse a ele. O clima geral na reunião foi de comprometimento com a causa da Rússia e confiança na vitória final. Claro, isso fortalece a mão de Putin.

É aqui que a analogia da Crise dos Mísseis de Cuba em 1962 falha. A opinião pública não era um fator chave há 60 anos. Em poucas palavras, o bom senso prevaleceu em 1962 quando percebeu que qualquer falha em levar em conta os interesses de segurança do poder rival poderia ter um resultado apocalíptico.

A diferença hoje é que enquanto o presidente Joe Biden se isolou e não é responsável por sua busca obstinada por uma derrota russa no campo de batalha na Ucrânia e uma consequente “mudança de regime” em Moscou, Putin insiste em se responsabilizar perante seu povo. Algum político “liberal” ocidental no poder ousará imitar o encontro extraordinário de Putin com as “mães dos soldados”?

Se as dificuldades econômicas levarem à agitação social e turbulência política na Europa Ocidental, os políticos no poder estarão em desvantagem. Putin está lutando em uma “Guerra do Povo”, enquanto os políticos ocidentais não podem nem mesmo admitir que estão lutando contra a Rússia. Mas por quanto tempo pode ser escondido da opinião pública na Polônia ou na França que seus cidadãos estão sendo mortos nas estepes da Ucrânia? Os políticos ocidentais podem garantir que seus “voluntários” não morreram em vão? O que acontece se um fluxo de refugiados da Ucrânia para a Europa Ocidental começar com o avanço do inverno?

Em termos militares, a Rússia desfruta do domínio da escalada – uma posição marcadamente superior sobre seu rival da OTAN, em uma série de degraus à medida que o conflito avança. A aceleração da operação russa em Bakhmut é um exemplo disso. O envio de tropas regulares nos últimos dias mostra que a Rússia está na escada da escalada para encerrar o “moedor” de quatro meses na cidade de Bakhmut em Donetsk, que analistas militares frequentemente descrevem como um eixo da defesa de Kiev na região leste de Donbass.

Uma reportagem do New York Times no domingo destacou a enorme escala de perdas que as forças ucranianas sofreram nas últimas semanas. Evidentemente, o Grupo Wagner de empreiteiros militares russos que estavam combatendo imobilizou as forças ucranianas em posição defensiva, estimadas em cerca de 30.000 soldados, incluindo unidades rachadas “que foram desgastadas por ataques russos ininterruptos”.

A reportagem do Times admite, citando um funcionário de defesa dos EUA, que a intenção russa poderia ter sido tornar a cidade de Bakhmut “um buraco negro de recursos intensivos para Kiev”. Esse paradigma também se repetirá em outros lugares, exceto que as forças russas serão muito mais fortes, muito superiores em número e muito mais bem equipadas e lutarão em posições altamente fortificadas.

Putin deixou claro na reunião de sexta-feira que derrotar os banderistas neonazistas continuará sendo um objetivo firme. Embora a mudança de regime em Kiev não seja um propósito declarado, Putin não se conformará com a repetição do cessar-fogo e da paz como em 2015, que deixou no poder um regime antirusso por procuração dos EUA.

Dito isso, Putin destacou que “apesar de todas as questões relacionadas à operação militar especial, não mudamos nossos planos para o desenvolvimento do estado, para o desenvolvimento do país, para o desenvolvimento da economia, sua esfera social, para projetos nacionais. Temos grandes, grandes planos…”

Juntos, todos esses elementos definem a chamada ofensiva de inverno da Rússia. O comandante de teatro escolhido a dedo por Putin na Ucrânia, general Sergei Surovikin, não está nos moldes de Patton ou MacArthur. Basicamente, ele detém a bússola das operações militares especiais, ao mesmo tempo em que incorpora a experiência acumulada nos últimos oito meses de envolvimento da OTAN nos combates. Mas nunca Putin usou a expressão “guerra” para caracterizar o conflito.


Publicado no Indian Punchline.


*M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira por 30 anos no Serviço de Relações Exteriores da Índia. Serviu na embaixada da Índia em Moscou em diversas funções e atuou na Divisão Irã- Paquistão-Afeganistão e na Unidade da Caxemira do Ministério das Relações Exteriores da Índia. Ocupou cargos nas missões indianas em Bonn, Colombo, Seul, Kuwait e Cabul; foi alto comissário interino adjunto em Islamabad e embaixador na Turquia e no Uzbequistão.

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