A retórica europeia contra a Rússia esbarra no fato de que a UE não tem como substituir o gás russo senão a longo prazo, e nunca a baixo custo; enquanto isso, a Rússia força o pagamento em rublos e desestabiliza o euro.
“Energia produz energia de qualquer forma
Então gaste consigo mesmo e fique rico”
– Marillion, “Rich”
Este dia demorou muito a chegar. A partir do momento, há mais de uma década, em que finalmente se admitisse que a Europa estava destinada a ser importadora de energia, veríamos o clímax do confronto entre o Ocidente e a Rússia.
A Europa como importadora de energia sempre significou que o tempo estava do lado da Rússia. Tudo o que Moscou precisava fazer era prolongar o conflito por tempo suficiente, sobreviver por tempo suficiente, para forçar a Europa à submissão. A Rússia tem a energia de que a Europa precisa e ninguém mais pode fornecê-la, portanto a decisão final será aceitar esse destino.
Nenhuma quantidade de magia financeira, patética sinalização de virtude sobre Mudanças Climáticas, investimentos ruins em “renováveis” ineficientes e insustentáveis, ou ameaças militares acabariam por mudar o resultado desta história.
A produção do North Slope[1] caiu e os campos de gás de Groningen[2] estão secando mais rápido do que a va-jay-jay[3] de Hillary a cada reviravolta da investigação de John Durham[4] sobre o Russia Gate.
Todas as estratégias para garantir a energia da Ucrânia (carvão do Donbass, campos de gás no Mar de Azov) e do Oriente Médio (Síria, gasoduto EastMed, Irã) também falharam.
Este é o problema básico que a UE enfrenta em sua busca pela hegemonia política. Como contornar esse fato básico sem fomentar 1) uma crise política interna e 2) uma guerra com a Rússia e o resto do Sul Global que a apoia, que não pode vencer?
Força maior
Desde o início da guerra na Ucrânia, um conflito criado pela cumplicidade da UE com a guerra de longa data da OTAN contra a Rússia, a UE tentou se fazer de vítima da agressividade dos EUA/Reino Unido enquanto os acompanha alegremente para seus próprios propósitos.
Esse propósito é avançar sua agenda de erigir um estado de vigilância total sob o pretexto de uma resposta radical à Mudança Climática. O problema deles é não ter um substituto viável para a energia russa, seja petróleo, carvão ou gás, capaz de sustentá-los nesse meio tempo.
Todas as suas recusas foram recebidas pela intransigência russa. Depois de acompanhar alegremente o roubo das reservas cambiais russas, além de forçar o abandono de ativos estatais russos, como a apreensão da subsidiária da Gazprom na Alemanha, a Europa ainda tentou dizer que a Rússia não tinha o direito legal de alterar os termos de pagamento de sua energia.
Foi hilário ver os sicofantas da UE tentarem argumentar que a Rússia não tinha o direito legal de alegar force majeure (força maior) depois que a UE proibiu a Gazprom de gastar os euros que receberia por seu gás.
O governo russo respondeu demandando o pagamento em ouro ou rublos de todas as exportações para países legalmente definidos como “hostis”. E os uivos foram ouvidos em todo o mundo.
Mesmo que atos de guerra, incluindo sanções, sejam uma cláusula típica em todos os contratos de fornecimento da Gazprom:
Então, depois de algumas semanas negando a realidade e afetando um alto nível moral ao punir Vladimir Putin, o Açougueiro de Bucha, a UE, como sempre, cedeu à realidade.
Roleta russa… de rublos
A UE finalmente descobriu uma forma de evitar as sanções dos EUA para comprar energia russa em rublos.
Moscou alertou que a Europa corre o risco de ter o fornecimento de gás cortado, a menos que pague em rublos. Em março, emitiu um decreto propondo que os compradores de energia abram contas no Gazprombank para efetuar pagamentos em euros ou dólares, que seriam convertidos em rublos.
A Comissão disse no início deste mês que o decreto corria o risco de violar as sanções da UE, uma vez que colocaria a conclusão efetiva da compra – assim que os pagamentos fossem convertidos em rublos – nas mãos das autoridades russas.
Em um documento consultivo enviado aos Estados membros na quinta-feira, no entanto, a Comissão disse que a proposta de Moscou não impede necessariamente um processo de pagamento que cumpra as sanções da UE contra a Rússia pelo conflito na Ucrânia.
Esta é a saída deles. Como sempre, a UE apenas vai definir as coisas da maneira que precisar para manter as aparências, enquanto capitula quando é forçada a mostrar suas cartas.
Assistimos a essa mesma exibição patética por mais de três anos sobre o Brexit. E se não fosse pela atuação cúmplice e traiçoeira da ex-primeira-ministra Theresa May, as negociações do Brexit teriam sido finalizadas em cerca de seis meses. Tudo o que ela tinha que fazer era estabelecer os termos e se afastar dessas pessoas. Tudo o que ela tinha que fazer era o que Putin acabou de fazer.
Isso não quer dizer que o tratamento de Putin dessa crescente crise tenha sido perfeito. Sua maior falha como líder da Rússia tem sido sua contínua subestimação do duplo padrão e da pura maldade que emana da Comissão Europeia.
No entanto, também sinto que Putin sabia que a melhor estratégia da Rússia era ser o melhor vizinho possível, apesar das óbvias provocações. Isso lhe trouxe custos políticos por anos. É por isso que ele tentou tanto por tanto tempo encontrar um terreno comum com essas pessoas, tentando onde pudesse fazer aliados e criar influência política.
É por isso que Putin se recusou a fechar o gás para a UE, mesmo enquanto eles postergavam o pagamento em rublos. Ele sempre soube onde isso iria parar, e se você perguntasse discretamente aos eurocratas em Bruxelas, eles também sabiam. Os custos políticos para Bruxelas por desligar o gás seriam um preço alto demais a pagar.
Essa questão causou fraturas na frágil coalizão do governo alemão. Prejudicou a reeleição de Emmanuel Macron na França. Vai custar a Mario Draghi seu governo no ano que vem. É claro que, até lá, a destruição da Itália, como país, por Draghi, estará quase completa. Só podemos esperar que os italianos encontrem sua voz nesse meio tempo.
Fome, Hungria e hipocrisia
A vitória mais óbvia de Putin foi na Hungria, onde Viktor Orban acaba de ganhar uma grande eleição. Orban já alavancou essa vitória para frustrar os planos da UE de romper os laços energéticos com a Rússia e se recusar firmemente a aumentar a pressão militar sobre Moscou, sobre a qual falei na véspera da eleição.
Por esta razão, a Hungria está na mira da UE daqui para frente. Será marginalizada, se não eventualmente expulsa, por causa dessas questões. Os ideólogos estão no comando em Bruxelas, e não vão interromper sua busca por colocar a Europa de joelhos sob seu controle. Se a Hungria disser não a isso, eles serão punidos. Mas punir a Hungria neste momento é como tentar punir a Rússia. Na verdade, é uma bênção para eles.
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A Hungria, uma vez liberta da UE, será o destino do capital estrangeiro de uma forma que não pode ser hoje. Estas são as cartas de Orban, e são poderosas. Enquanto isso, ele ficará na UE como uma pedra no sapato deles até que se livrem dele.
O maior constrangimento para Bruxelas seria a Hungria prosperar fora da estrutura da UE, o mesmo medo que estava na mesa nas negociações do Brexit. A diferença, claro, é que o establishment político do Reino Unido está na agenda de Bruxelas, as pessoas fora de Londres é que não estão.
Os húngaros acabaram de provar que Orban não tem esse problema.
Assim, os benefícios de terminar seu relacionamento futuro com a UE serão muito mais imediatamente aparentes, quando isso acontecer.
“Uniãocídio” europeu
Não importa o que aconteça a longo prazo, no entanto, a realidade é que uma nova Europa está no horizonte. E não é uma visão bonita. A UE vai, na melhor das hipóteses, passar sem algumas peças atuais – Hungria, Bulgária e Romênia – e, na pior, se separar quando o experimento da moeda comum chegar a um final ignominioso, quebrado às margens de um novo padrão de reserva baseado em energia contra o qual ele simplesmente não pode competir.
Assim como a Ucrânia está sendo rapidamente esquartejada pela Rússia, a Europa também se balcanizará com as falhas da UE em garantir um futuro energético confiável para seu povo.
A exigência da Rússia de que a Europa pague pelas exportações através do não sancionado Gazprombank, que processará a conversão da moeda em rublos (às custas do importador), agora lhe dá vantagem em todas as futuras negociações comerciais com a UE.
E como o rublo agora está ligado ao ouro físico, isso significa que a possibilidade de o euro desafiar o dólar americano como moeda de reserva está oficialmente encerrada. Esse destino foi selado com a mudança de Draghi para taxas de juros negativas em 2014, transformando-a na última moeda de carregamento. Esse status está se desfazendo rapidamente em detrimento do iene japonês, que agora está ganhando as manchetes em meio à guerra entre o Fed e o BCE.
Ao mesmo tempo, o sistema eurodólar está sob ameaça existencial graças ao fim da LIBOR, embotando os desejos de um Fed agressivo. Por causa disso, o BCE está preso em um labirinto no qual todas as saídas foram bloqueadas.
Já não há razão para alguém manter euros ou convertê-los em dívida soberana europeia. Os russos não vão mais apoiar o mercado do eurodólar reciclando seu superávit comercial no sistema bancário europeu, exatamente como foi previsto quando a UE seguiu os EUA ao confiscar as reservas cambiais da Rússia.
Quem em sã consciência manteria euros em seu balanço além do necessário para pagar por mercadorias? Não é uma proposta perdedora, se Ursula Von der Leyen considerou você um Untermensch[5]?
O Gazprombank simplesmente transformará esses euros em ouro físico e os adicionará ao balanço do país, tornando-o ainda mais forte. Isso garantirá que o próprio euro se torne uma moeda pária e forçará o BCE a continuar o caminho para a hiperinflação.
O nascimento de uma nova Europa é aquele em que o risco cambial está agora todo com o importador de commodities, e não com o exportador. Eu venho dizendo há anos que a Europa sempre pensou que sua grande participação nas exportações de energia russas lhe daria poder de monopsônio[6] sobre a Rússia. Eles pensavam que, sem a Europa como compradora, a Rússia estaria à sua mercê.
Em um mundo hiperfinanciado, essa suposição sempre foi verdadeira. Mas, em um novo regime monetário, onde o mundo está além da saturação da dívida, as contas estão vencidas e não há mais espaço para postergação, isso simplesmente não é mais verdadeiro.
Com a Rússia amarrando o rublo ao ouro, e os EUA e a UE transformando em arma os mercados de dólar offshore, essa percepção errônea do poder de compra está sendo exposta. Claro, a UE tem euros a oferecer, mas o faz na reavaliação de commodities versus moedas fiduciárias que têm casos de uso cada vez menores.
Isso apenas alimenta a espiral descendente do euro e do sistema eurodólar no vórtice que é o ouro físico e a demanda por commodities das quais todo o seu valor é derivado.
Na Hungria o rato rugiu alto o suficiente para finalmente fazer os apparatchiks[7] em Bruxelas ouvirem a música que o urso russo vem cantarolando baixinho para si mesmo há anos.
Publicado no Lewrockwell.com.
*Tom Luongo se autodenomina anarco-libertário e “economista obstinado”. É editor do blog Gold Goats ’n Guns, onde escreve sobre suas convicções sobre geopolítica, mercados e cultura, além de publicá-las também no Zerohedge, Lewrockwell.com, Bitcoin Magazine e Newsmax Media.
Notas
[1] North Slope, distrito do estado americano do Alasca, abriga o Prudhoe Bay Oil Field, maior campo de petróleo da América do Norte, contendo aproximadamente 25 bilhões de barris de petróleo.
[2] Groningen é um campo de gás natural na província de Groningen, na Holanda. Com uma estimativa de 2.740 bilhões de metros cúbicos de gás, é o maior campo da Europa e um dos maiores do mundo.
[3] Gíria americana para a genitália feminina.
[4] Conselheiro Especial do Departamento de Justiça dos Estados Unidos desde 2020.
[5] “Untermensch” é o termo alemão para “subumano”, usado pela ideologia nazista para descrever os “povos inferiores”, ou seja, as etnias não enquadradas na “raça ariana”.
[6] Monopsônio é situação em que um comprador controla o mercado em que atua, sendo o principal demandante de um determinado produto ou serviço, de tal forma a possuir poder de mercado suficiente para influenciar o preço da mercadoria em seu benefício.
[7] Apparatchik é um termo russo que designava um funcionário do Partido Comunista da União Soviética, ou seja, um agente do “aparato” governamental.
Muito legal a publicação de um texto de um “anarco-libertário”, o site Lewrockwell.com assim como o Institute Ron Paul assim como outros tem excelentes textos e artigos com pessoas com visões claramente libertárias, mas mantendo a essência do pensamento realista geopolítico.