Na visão de Pequim, o desenvolvimento da capacidade de exercer controle marítimo, não apenas no Pacífico, mas de forma global, é crucial para os interesses da China.
Embora a Marinha chinesa tenha crescido a ponto de se tornar a maior do mundo em número de navios – ainda que não em tonelagem, medida na qual a Marinha americana segue sendo a maior –, é fato que a grande desvantagem da PLAN (People’s Liberation Army Navy, Marinha do Exército de Libertação do Povo) é a falta de uma rede global de bases de apoio. Essa rede é crucial não apenas em caso de um confronto militar direto, mas na proteção dos crescentes interesses econômicos da potência asiática.
A ausência de bases no exterior é também o grande diferencial entre a capacidade de projeção de poder da China em relação aos Estados Unidos. No entanto, sob o governo de Xi Jinping a comunidade estratégica chinesa passou a voltar suas atenções para responder à questão de como construir uma rede internacional de bases ultramarinas capaz de proteger os interesses do país no exterior.
A guerra civil na Líbia, em 2011, que resultou na necessidade de evacuar 36.000 cidadãos chineses apressadamente, também gerou grandes prejuízos econômicos, já que projetos chineses no país, avaliados em 20 bilhões de dólares, tiveram que ser abandonados às pressas. Esse episódio ensinou a Pequim uma importante lição de risco geopolítico, que é enfatizada ao se considerar que a China hoje tem entre cinco e seis milhões de cidadãos trabalhando no exterior, e projeta ter cerca de 10 milhões até 2030 – além de um trilhão de dólares em investimentos.
Assim, analistas chineses vêm discutindo a construção e administração de bases no exterior, e concluem que para proteger seus crescentes interesses no exterior, a China deve estabelecer bases no Paquistão, Emirados Árabes Unidos, Sri Lanka, Mianmar, Singapura, Indonésia, Quênia e outros, formando uma rede logística.
O funcionamento das bases representa um grande desafio logístico. Manter e operar uma infraestrutura básica (docas, pistas de pouso, armazéns, depósitos etc.), equipamento e pessoal militar implica uma coordenação complexa, que inclui de ministérios e bancos a unidades encarregadas de apoio logístico e gestão de alfândegas, para citar apenas alguns poucos exemplos.
Obviamente a Marinha desempenha um papel fundamental nisso tudo, mas de acordo com analistas, a China precisa trabalhar simultaneamente em três áreas:
- Na Marinha, aumentar o uso de navios de abastecimento multiuso, navios de apoio de combate rápido, navios de reposição de combustível e navios semissubmersíveis que podem transportar mais de 100.000 toneladas de carga;
- Na Força Aérea, expandir o emprego de aeronaves de transporte pesado, como o Xi’ian Y-20;
- Em todas as áreas, implementar um processo de harmonização de normas e padrões militares e civis, para que navios civis possam contribuir para o esforço de abastecimento.
De acordo com analistas da Academia de Equipamentos Militares de Pequim, as bases são “locais de proteção designados” que apoiam operações no exterior e, portanto, devem “irradiar” sobre a área onde operações militares são conduzidas.
Do ponto de vista de operações no exterior, a chave é a capacidade das bases em termos de reparo e manutenção para que desempenhem plenamente o papel de apoio. A questão política (a relação com o país de acolhimento) é obviamente essencial e requer esforços para construir um ambiente internacional que aceite a construção de bases chinesas no exterior.
Assim, de acordo com esses analistas, a China deve empregar os meios necessários para criar tal rede, quer seja comprando, alugando, cooperando, ou construindo bases ou “hubs de proteção” no exterior.
A base naval de Yulin
Pequim reivindica cerca de 90% dos 3,5 milhões de quilômetros quadrados do Mar do Sul da China. Além da China, o Brunei, Malásia, Filipinas, Taiwan e Vietnã contestam algumas ou todas as reivindicações chinesas sobre essa região, rica em pesca, petróleo e gás. Por meio de sua superioridade tecnológica e militar, a China desenvolveu e ocupou diversas ilhotas na região, controlando quase inteiramente os arquipélagos das Paracel e das Spratly.
No entanto, devido ao mar agitado e à distância do continente chinês, essas ilhotas não permitem ancorar navios de forma permanente. Assim, a Base Naval de Yulin, na província insular de Hainan, no sul da China, seria o ponto de partida natural para os postos avançados mais distantes, o que justifica sua expansão nos últimos anos.
De acordo com dados do Globalsecurity.org, as águas ao largo de Yulin tem uma profundidade média de mil metros, ideal para atividades submarinas. Por essa razão, a base deixou de ser apenas uma instalação para submarinos convencionais e passou a abrigar também submarinos nucleares, podendo acomodar até 16 dessas embarcações.
Além disso, Yulin é o lar de uma frota de contratorpedeiros, opera com porta-aviões, sendo capaz de abrigar até duas dessas embarcações por doca, e conta com instalações que suportam equipamentos avançados para o processamento de informações enviadas por uma rede de sensores instalada no Mar do Sul da China.
A base no Djibuti
No final dos anos 2000 a China passou a integrar a flotilha internacional antipirataria ao largo da Somália, em um processo pelo qual a marinha do país passou a navegar através do sudeste da Ásia e do Oceano Índico. Isso representou um grande salto de capacidade, já que até então a PLAN raramente fazia surtidas fora do Pacífico ocidental.
Esse processo acabou garantindo à China os direitos de uma base naval no Djibuti, no Chifre da África, próximo do Estreito de Bab-el-Mandeb, que separa o Golfo de Aden do Mar Vermelho e protege as entradas do Canal de Suez.
A base, operada pela China desde 2017, está localizada perto do porto de Doraleh, também operado pelos chineses, a oeste da cidade de Djibuti. Mais ao sul, estão localizadas bases militares de outros países, como a Marinha dos Estados Unidos, a Força Aérea Francesa e a Força de Autodefesa do Japão.
A China afirma que a função dessa instalação é apoio logístico às tropas chinesas no Golfo de Aden em operações de evacuação, apoio a operações humanitárias e de manutenção da paz, operações de contraterrorismo e de combate à pirataria na região. A base permite fácil acesso dos navios da PLAN ao Mar da Arábia, Golfo Pérsico e Oceano Índico.
As instalações comportam aproximadamente cerca de 2.000 pessoas, incluindo algumas centenas de fuzileiros navais chineses, abriga um hospital do PLA e possui um espaço subterrâneo de 23.000 metros quadrados. Conta com uma pista de pouso com torre de controle de tráfego aéreo e um pátio para helicópteros. O píer mede 1.120 pés, o suficiente para acomodar dois porta-aviões ou quatro submarinos nucleares, além de outros navios de combate ou de apoio.
Essa instalação aumentou significativamente a capacidade de projeção de poder da China da região do Chifre da África e no Oceano Índico, e especula-se que abriga também atividades de coleta de inteligência.
Costa atlântica da África
De acordo com relatórios de inteligência citados pelo Wall Street Journal, a China está explorando a possibilidade de construir uma base militar na Guiné Equatorial, na costa da África, no que seria sua primeira base militar no oceano Atlântico. Os relatórios indicam a possibilidade de que navios de guerra chineses poderiam ser rearmados e reabastecidos no local.
Com cerca de 1,4 milhão de habitantes, a Guiné Equatorial é governada por Teodoro Obiang Nguema Mbasongo há 42 anos. A economia do país é baseada na extração de recursos naturais, sendo que as exportações de petróleo bruto respondem por cerca de 90% das receitas. Sem surpresas, a China é o maior parceiro comercial do país.
Especula-se que o local exato para a base chinesa seria o porto de Bata, a maior cidade do país. Obras de ampliação no porto foram concluídas com financiamento chinês em 2014. Outro projeto de infraestrutura expandiu uma rede de rodovias ligando Bata a Niefang, no leste do país. Juntos, esses projetos formaram as bases para uma maior penetração comercial da China na África Central, principalmente no Gabão e na República do Congo.
De acordo com o WSJ, as agências de inteligência americanas captam indícios das intenções militares da China na Guiné Equatorial desde 2019. Apesar da operação de empresas do petróleo dos EUA no país, as relações EUA-Guiné Equatorial não têm sido das melhores. O país é criticado por questões de direitos humanos e corrupção. O vice-presidente Teodoro Nguema Obiang Mangue, filho do presidente, é alvo de um processo do Departamento de Justiça americano por corrupção, além de sanções pelos EUA e outros países ocidentais.
A preocupação com uma base chinesa próxima à costa lesta americana tem levado Washington a tentar melhorar as relações com o país. Em março de 2021, tropas da Guiné Equatorial participaram de exercícios navais liderados pelos EUA no Golfo da Guiné; em agosto, um navio da Marinha americana ancorou ao largo do porto de Bata, e o capitão convidou oficiais locais e pessoal da marinha a bordo para observar um treinamento de combate a incêndio.
Em outubro, o vice-conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos, Jon Finer, visitou o país com a missão de persuadir o presidente Mbasongo e seu filho a rejeitar as propostas da China. Segundo um funcionário americano, Finer teria deixado claro que “certas medidas potenciais envolvendo atividades [chinesas] aumentariam as preocupações [americanas] de segurança nacional”. Washington diz que não pede à Guiné Equatorial que abandone seus laços com a China, mas apenas que mantenha essas relações dentro dos limites que os EUA consideram não ameaçadores.
Depois da visita de Finer, o vice-presidente Mangue disse que a Casa Branca o nomeou “interlocutor número um nas relações entre nossos dois países”, e tuitou um vídeo de agradecimento. No entanto, pouco depois o presidente Mbasongo falou por telefone com o presidente chinês Xi Jinping, e na sequência Pequim divulgou uma declaração destacando que “a Guiné Equatorial sempre considerou a China como seu parceiro estratégico mais importante”.
Na prática ainda não se sabe se as ações diplomáticas terão o efeito desejado, mas na Casa Branca há quem entenda que impedir a presença naval chinesa na região vai exigir esforços persistentes e de longo prazo.
As relações dos EUA com a Guiné Equatorial contrastam com a relação do país com a China. Além do financiamento dos projetos de infraestrutura mencionados, Pequim forneceu equipamento e treinamento para as forças de segurança do país, chefiadas justamente pelo vice-presidente Obiang Mangue.
Essas divergências diplomáticas complicam os esforços dos EUA para convencer o governo da Guiné Equatorial a rejeitar as propostas de Pequim. Recentemente, Washington tentou adotar um tom mais conciliatório, quando bens apreendidos na investigação de Mangue foram redistribuídos ao país na forma de assistência à vacina contra a covid-19.
Na prática, as sanções e iniciativas com base em uma “ordem internacional baseada em regras”, fazem com que a Guiné Equatorial – e outros países – se aproxime ainda mais da zona de influência chinesa. Nesse sentido, as exigências de iniciativas como a Build Back Better World[1] contribuem para o afastamento entre Washington e esses países.
Outras localidades
O general Stephen Townsend, principal general dos EUA para a região da África, disse em uma entrevista à Associated Press em 6 de maio de 2021 que a China está “procurando um lugar onde possa rearmar e consertar seus navios de guerra”. Ele acrescentou que isso se torna militarmente útil em conflitos, e afirmou que eles estão olhando para a costa do Atlântico em busca de uma base.
Townsend afirmou que a China tentou assinar acordos para estabelecer uma base naval na Tanzânia, mais ao sul, e ao redor do Cabo da Boa Esperança, no Atlântico. Se mais bases chinesas se materializarem na África, o resultado poderá ser uma série de instalações próximas à região do Meio-Atlântico, hoje dominado pelos Estados Unidos.
Ao que se sabe, parece que Pequim vem prospectando localidades para instalação de bases navais chinesas também no Paquistão, no Camboja, nos Emirados Árabes Unidos, e no Kiribati.
Já há tempo existem rumores também de uma segunda instalação naval no porto de Gwadar, no Paquistão, que serve como eixo do Corredor Econômico China-Paquistão. A infraestrutura básica já está instalada, e a segunda instalação supostamente serviria como base para navios chineses.
No Camboja, imagens de satélite divulgadas no início de outubro de 2021 revelaram uma construção recente na Base Naval de Ream, na costa do Golfo da Tailândia. A obra seria parte de um plano de reconstrução apoiado pela China. A Iniciativa de Transparência Marítima da Ásia relatou que durante os meses de agosto e setembro três novos edifícios foram construídos, várias áreas foram limpas e uma estrada estava em construção. As autoridades cambojanas afirmam que o trabalho é parte de um projeto de expansão de interesse nacional do Camboja, e que não pretendem receber tropas chinesas.
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Os Emirados Árabes Unidos, embora tradicionalmente mais alinhados aos Estados Unidos do que à China, têm aprofundado os laços com Pequim. Por exemplo, os Emirados fecharam um acordo para atualizar o terminal portuário em Abu Dhabi; selecionaram a Huawei para implementar a tecnologia 5G, e cederam à “diplomacia da vacina” chinesa, adotando vacinas defeituosas da Sinopharm. Recentemente, agências de inteligência dos EUA monitoraram aviões do PLA voando para os Emirados com cargas não especificadas.
Kiribati, um pequeno país no meio do Oceano Pacífico, foi palco da Batalha de Tarawa, um dos confrontos mais sangrentos dos EUA na 2ª Guerra Mundial. No entanto, enquanto a China mantém ali uma embaixada com pessoal completo, o diplomata americano mais próximo está em Fiji, a cerca de 2.100 milhas de distância. Assim, não surpreende que os líderes do pequeno atol deem atenção a Pequim. A China combinou diplomacia e investimentos estratégicos para conquistar o país, e vai reformar e ampliar sua pista de pouso. Oficialmente os objetivos são desenvolvimento econômico e adaptação às mudanças climáticas, mas na prática o projeto pode dar a Pequim o equivalente a um porta-aviões fixo a cerca de 1.800 milhas do Havaí.
Conclusão
Atualmente, nove países têm bases no exterior (EUA, Reino Unido, França, Índia, Itália, Rússia, Alemanha e Japão). A China aprendeu que uma baixa capacidade de projeção do poder militar resulta em incapacidade de proteger seus cidadãos e interesses no estrangeiro. Desde a reforma de 2016, a Comissão Militar Central estabeleceu um “escritório para operações no exterior” que fornece orientação e coordenação e desempenha um papel importante no desenvolvimento de bases no exterior. No plano estratégico, a China deve manter a prioridade política atribuída às bases, que não é necessariamente o domínio militar per se, mas a proteção de seus interesses comerciais.
De acordo com analistas do país, a China precisa “reduzir a sensibilidade” de suas ações e “parar antes de ir longe demais” para evitar a “tragédia das grandes potências”. Ou seja, a construção de bases precisaria estar vinculada ao exercício de responsabilidades internacionais.
Embora os analistas chineses não defendam a construção de bases apenas para competir militarmente com os Estados Unidos, a competição estratégica com os EUA é um elemento central do pensamento militar da China. Na visão de Pequim, a expansão chinesa não deixa escolha senão ampliar sua rede de bases, já que enfrenta desafios que podem restringir sua ascensão. Assim, desenvolver a capacidade de exercer controle do mar não só no Pacífico, mas de forma global, é crucial para os interesses chineses.
Nota
[1] Build Back Better World (B3W) é uma alternativa do G7 à Belt and Road Initiative da China para desenvolver infraestrutura de países de baixa renda. Os projetos da B3W seguem determinados padrões em questões de meio ambiente e clima, salvaguardas trabalhistas e sociais, financiamento, construção e anticorrupção, entre outras.
Referências
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HART, Michael. Cambodia Naval Base Gets a Chinese Upgrade. Geopolitical Monitor. 15 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.geopoliticalmonitor.com/cambodia-naval-base-gets-a-chinese-upgrade/.
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DUCHÂTEL, Mathieu. China Trends #2 – Naval Bases: From Djibouti to a Global Network? 26 de junho de 2019, Institut Montaigne. Disponível em: https://www.institutmontaigne.org/en/blog/china-trends-2-naval-bases-djibouti-global-network.
TANCHUM, Michaël. China’s new military base in Africa: What it means for Europe and America. European Council on Foreign Relations, 14 de dezembro de 2021. Disponível em: https://ecfr.eu/article/chinas-new-military-base-in-africa-what-it-means-for-europe-and-america/.
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Harboring no malice? America worries about China’s military ambitions in Africa. The Economist, 9 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.economist.com/china/2021/12/09/america-worries-about-chinas-military-ambitions-in-africa.