Por que a Austrália rejeitou a França

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O presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, discutiram o projeto do submarino da Austrália durante a XIII Cúpula do G20 realizada em Buenos Aires, Argentina, em novembro/dezembro de 2018 (Foto: Lukas Coch/AAP).

Por George Friedman*, publicado no Geopolitical Futures

O presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, discutiram o projeto do submarino da Austrália durante a XIII Cúpula do G20 realizada em Buenos Aires, Argentina, em novembro/dezembro de 2018 (Foto: Lukas Coch/AAP).

As circunstâncias mudaram desde 2016 e o apoio para a frota de submarinos da Marinha australiana se tornou uma questão de interesse nacional fundamental. Portanto, a decisão da Austrália foi a respeito de geopolítica, e não apenas um contrato comercial.


A decisão do governo australiano de se juntar a um consórcio EUA-Reino Unido para ajudar a construir uma capacidade de submarinos nucleares enfureceu a França, cujos esforços anteriores para esse fim foram abandonados. Para suavizar as coisas, a Austrália explicou que houve atrasos significativos no trabalho da França, citando questões culturais como a propensão da França de tirar férias no mês de agosto e de não comparecer às reuniões a tempo (mais importante é que Canberra acreditava que um subprograma nuclear atendia às suas necessidades melhor do que os diesel-elétricos). Era um grande contrato, e eu sempre gostei da capacidade da França de ficar indignada, bem como da incapacidade da Austrália de fazer o mesmo.

Por trás do barulho, a decisão da Austrália foi sobre geopolítica, não contratos. Quando o acordo com a França foi assinado em 2016, e nos anos anteriores a 2016, quando o acordo era negociado, o mundo parecia diferente do que é hoje. Segundo alguns, a China estava evoluindo economicamente, com foco no comércio internacional e evoluindo para algum tipo de liberalismo interno. A China era um grande cliente dos minerais australianos e os estudantes chineses inundavam as universidades australianas. A Austrália via a decisão de construir submarinos nucleares como parte da modernização de sua frota, e não como uma preparação para alguma batalha que viria. Os australianos estavam alinhados com os Estados Unidos, mas não eram obrigados a comprar tecnologia americana. Nem Canberra teve que considerar a questão no contexto da manutenção de suas linhas de abastecimento.

A guerra não é inevitável, e nem, em minha opinião, provável. Mas as nações devem se preparar para o pior cenário. Comprar equipamento da França levanta a questão das intenções e capacidades francesas em caso de guerra. Em tempos de paz, a compra de equipamentos não é necessariamente baseada em um alinhamento de interesses ou uma capacidade ou vontade de participar de um conflito potencial. Uma nação precisa ter um relacionamento abrangente com um país provável e capaz de compartilhar riscos. Em outras palavras, o preço não é o problema. A aquisição de armas deve fazer parte de um interesse sistemático e comum. A França não se encaixava nesse perfil. Sua ação ou inação do ponto de vista da Austrália é imprevisível. A França tem seus interesses e não está claro se eles se alinhariam com os da Austrália.

Em 2016, isso não era um problema. Agora é.

A aquisição do submarino une três nações insulares. Grã-Bretanha e Austrália são claramente ilhas. Os Estados Unidos, como potência dominante na América do Norte, também são uma nação insular. A Segunda Guerra Mundial foi fundamentalmente uma guerra naval, mesmo que outras forças tenham absorvido a massa das baixas. Os EUA eram a principal fonte de material e mão-de-obra. A Grã-Bretanha só sobreviveria se recebesse esse material dos Estados Unidos e, se a Grã-Bretanha caísse, o futuro do Atlântico e dos Estados Unidos estaria em questão. Os EUA também tiveram que impedir o Japão de dominar o Pacífico. Desde o início, viu a Austrália como uma forma de fornecer uma base geográfica para o lançamento de um contra-ataque no Pacífico Ocidental.

Nem a Grã-Bretanha nem a Austrália conseguiram resistir a uma Ásia-Pacífico dominada pelo Japão ou a um Atlântico dominado pela Alemanha. No pior cenário de Washington, os Estados Unidos veriam suas duas costas em risco e, portanto, ficariam isolados do mundo. Uma aliança construída em torno da Grã-Bretanha, Austrália e Estados Unidos, junto com o peso do Canadá e da Nova Zelândia, bloqueou o domínio alemão e japonês dos oceanos e forneceu mão de obra para o engajamento em terra e bases para o poder aéreo. Os interesses de todas essas nações estavam alinhados. Os EUA tiveram que proteger a Grã-Bretanha e bloquear o Japão para defender seu próprio interesse. A Grã-Bretanha e a Austrália obviamente tiveram que manter seu território. Houve desacordos táticos, mas o acordo estratégico era evidente.

Com o acordo do submarino (sem falar em muitas outras ações cooperativas), a lógica da Segunda Guerra Mundial está ressurgindo, não como uma guerra, mas como uma guerra em potencial. O Atlântico não está desafiado no momento, mas a Grã-Bretanha já se diferenciou da Europa por meio do BREXIT. Ela lutou ao lado dos Estados Unidos em muitas guerras, por mais desonestas que tenham sido. Seus interesses estratégicos no longo prazo não estão ligados à Europa, mas, como foi na década de 1940, aos Estados Unidos.


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A Austrália enfrenta uma ameaça potencial da China, que está pressionando pelo acesso e controle do Pacífico Ocidental. A Austrália não pode enfrentar a China sozinha. Os Estados Unidos não podem ceder o Pacífico total ou parcialmente à China. No caso de uma guerra – aqui novamente, considero isso improvável – a Austrália deve ter um relacionamento com uma potência que possa bloquear a China e que tenha um imperativo para fazê-lo. Como na Segunda Guerra Mundial, a Austrália deve ser capaz de desempenhar um papel significativo na guerra.

Quando olhamos dessa forma, podemos entender a lógica geopolítica na mudança da Austrália na compra de submarinos. Em uma situação em que a guerra parece impossível, a aquisição de equipamentos pode ser tratada como uma compra independente (stand-alone). Quando a guerra muda de impossível para improvável, é necessária uma aliança abrangente em que qualquer aquisição fortifique a aliança e na qual o reabastecimento seja do interesse de todos os países envolvidos.

A França tem interesses limitados no Pacífico e certamente nenhum interesse ou capacidade de travar uma guerra prolongada lá. O fornecimento de peças para a frota de submarinos pode ser interpretado pela China como um ato de guerra, e não se sabe qual pode ser a intenção e a capacidade da França de apoiar a frota. As circunstâncias da Austrália mudaram desde 2016 e, portanto, a fonte de apoio para a frota de submarinos se torna uma questão de interesse nacional fundamental. Claro, a França entende isso, mas acha útil se retratar como traída.

Mas muito mais interessante é observar a evolução do Five Eyes, o consórcio de inteligência dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, Canadá e Nova Zelândia. As três principais potências desse grupo já teceram uma aliança que vai muito além da inteligência.

O ponto mais importante é que está surgindo um sistema de aliança internacional muito real centrado nos oceanos. A OTAN ainda está lá, mas sua missão e capacidades em caso de guerra não são claras. Esta aliança de língua inglesa avança em etapas. Precisamos ler o repúdio ao contrato francês sob essa luz. E talvez a raiva da França, que vai além de um contrato inegavelmente lucrativo, tenha algo a ver com isso.


*George Friedman é analista geopolítico e estrategista de assuntos internacionais mundialmente reconhecido. É fundador e presidente da Geopolitical Futures, um think tank especializado em relações internacionais e política externa americana. É autor de diversas obras, dentre as quais os best-sellers “Os próximos 100 anos” e “A próxima década”.

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1 comentário

  1. Passei minha primeira infancia no entorno do cotidiano da II Guerra Mundial, vivendo nas vizinhanças da maior Base Aerea Americana fora dos EUA.
    Da forma que eu assistia e percebia a movimentação dos dias, dos acontecimentos e da vida daquela época, não concebo a leitura e a interpretação que se dá hoje, da existencia humana.
    Não fazia ideia de que as nações daquele meu futuro, estariam esvaziadas de inteligencia e que corações e mentes estariam a ser entretidos por uma alegoria empolada de fantasias e de parlemices virulentas !…

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