A perspectiva estratégica da China

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O presidente chinês Xi Jinping (Foto: Nicolas Asfour/Reuters).

O presidente chinês Xi Jinping (Foto: Nicolas Asfour/Reuters).

Se um dia os EUA chegarem a enfrentar a China, será fundamental entender como o país enxerga sua posição estratégica, ou como a posição estratégica chinesa a obrigará a agir.


Um dos problemas mais difíceis da política externa é desenvolver uma avaliação precisa das intenções e capacidades de um adversário em potencial, que frequentemente são realidades distintas. Um exemplo é o grau em que os Estados Unidos interpretaram mal as intenções e capacidades da União Soviética. Os soviéticos estavam focados na reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, algo que exigiu décadas de trabalho. Uma guerra que devastaria a Europa Ocidental não dava a eles nenhum incentivo para começar. Enquanto isso, os Estados Unidos estavam obcecados em contar equipamentos, não avaliando a capacidade do sistema logístico soviético de apoiar uma ofensiva maciça. Os EUA se concentraram nas intenções e capacidades do pior caso. Os reais eram muito diferentes.

Em parte, isso se deveu a outro erro de cálculo: a subestimação das capacidades japonesas na Segunda Guerra Mundial. Washington sabia que a guerra era provável e por isso tinha um plano elaborado para combatê-la. Mas os planejadores subestimaram o grau em que os japoneses entendiam os planos de guerra e a flexibilidade dos planejadores navais em não aceitar o combate nos termos americanos. Eles também subestimaram o comando naval do Japão e não conseguiram entender as ações que os porta-aviões tornaram possíveis. Eles entenderam a intenção de lutar, mas não a intenção de definir a batalha e o hardware necessário para fazê-lo.

Durante a Guerra Fria, os EUA estiveram na defensiva contra um ataque russo que nunca aconteceu. Da mesma forma, durante a Segunda Guerra Mundial, Washington viu o Japão como totalmente dependente de matérias-primas do sul e assumiu uma estocada direta nessa direção. Não podia conceber que o Japão lançaria um ataque indireto. Em ambos os casos, os EUA ignoraram a realidade. As restrições russas militaram contra a guerra ofensiva. As restrições japonesas militaram contra o ataque direto. Os EUA possuíam vastos recursos e poderiam sobreviver a mal-entendidos, mas a constância de erros de cálculo em outras guerras como o Vietnã e o Iraque indicam um problema central de planejamento militar. Se os EUA algum dia enfrentarem a China, nada é mais importante do que entender como a China enxerga sua posição estratégica, ou precisamente como a posição estratégica da China a obrigará a agir.

A China tem dois problemas centrais: manter a unidade e prevenir a instabilidade social. Os eventos ao longo da fronteira com o Tibete e em Xinjiang, e eventos menores na Mongólia Interior, devem ser contidos. Ao mesmo tempo, a divisão econômica entre o litoral e o oeste da China que alimentou a revolução de Mao e ainda não foi resolvida, deve ser administrada. Um elemento dessa gestão é o crescimento econômico. Os primeiros anos foram explosivos, já que o desenvolvimento foi medido a partir do desastre econômico de Mao. Desde meados da década de 2000, o crescimento tem aumentado, mas gerou tensões na elite econômica chinesa. O principal foco estratégico da China é interno.


Renda disponível per capita por província (©2018 Geopolitical Futures; Fonte: Forbes).

A China, portanto, tende a se concentrar no interior, mas o que complica isso é que o consumo doméstico ainda não pode manter o crescimento econômico e que o acesso aos mercados globais é um imperativo estratégico. A China depende do acesso às rotas marítimas conectadas aos seus portos orientais. As ideias sobre o transporte terrestre para a Europa, a muito proclamada iniciativa Belt and Road, ainda não amadureceram como alternativa.

O acesso aos oceanos globais ainda é a base da estratégia de Pequim, assim como a do Japão era o acesso às matérias-primas. Os dois problemas estratégicos têm coisas importantes em comum. A China deve aumentar seu poderio naval, o que, qualquer que seja a intenção de Pequim, deixa outras potências do Pacífico, como os EUA, extremamente ansiosas. O elemento mais importante disso é o vasto sistema de alianças americanas com países formal e informalmente hostis à China: Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Filipinas, Indonésia, Vietnã, Singapura, Austrália e Índia. Constitui uma aliança estratégica maciça, mas também uma aliança econômica muito significativa envolvendo os principais parceiros comerciais chineses.


O leste da Ásia (©2021 Geopolitical Futures).

Isso cria uma longa série de pontos de estrangulamento que podem bloquear o acesso da China aos oceanos e, assim, prejudicar o desenvolvimento econômico interno e potencialmente gerar agitação social. Os Estados Unidos não bloquearam o acesso da China, nem ameaçaram fazê-lo. Mas Pequim deve considerar o que é possível, e a capacidade dos EUA é uma ameaça profunda para a China. Do ponto de vista dos EUA, mover-se para leste a partir da linha Aleutas-Malaca daria à China uma entrada no Pacífico, o que ameaçaria os interesses fundamentais de Washington. Os EUA não podem abandonar a aliança. A China não pode aceitar a ameaça.

A China não pode se dar ao luxo de engajar as forças dos EUA diretamente. Sua própria marinha não foi testada em guerra e só se exercitou em operações frota-contra-frota. A China pode muito bem derrotar a frota dos EUA, mas não pode ter certeza disso, e uma derrota seria catastrófica para o regime. Além disso, os EUA possuem vastos recursos e capacidades. Ao olhar para a estratégia de combate dos EUA no passado, a derrota inicial pode gerar um contra-ataque maciço. Portanto, a menos que os EUA pareçam ter a intenção de bloquear os portos chineses, o risco de guerra é muito grande.

Mas a China também deve ver os EUA como avessos à guerra, e a aparência dos chineses pode ser suficiente para os americanos recusarem um conflito maior e retirarem as forças do bloqueio. Uma estratégia secundária chinesa, então, poderia ser demonstrar apetite por combate em uma área que não é crítica para os Estados Unidos e pode não desencadear uma resposta. Tem-se espalhado a ideia de que a China pode invadir Taiwan. Isso seria militar e politicamente imprudente. As operações anfíbias são complexas e são ganhas ou perdidas por vastos esforços logísticos. O reforço e o reabastecimento seriam vulneráveis ​​a mísseis antinavio, submarinos e poder aéreo dos EUA. Os chineses devem presumir que qualquer invasão provavelmente seria derrotada.


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Mesmo assim, a China deve demonstrar sua vontade e capacidade militar sem correr o risco de uma derrota. Em outras palavras, deve atacar um alvo de pouco valor e assumir que os EUA não arriscariam combater em um local onde as forças chinesas se concentraram. Mas essa estratégia também tem dois problemas. Em primeiro lugar, os EUA reconhecerão a manobra e podem optar por se engajar para impedir um combate maior. Mesmo que Washington quisesse declinar, seus aliados podem causar confusão o suficiente para que ele não possa fazê-lo. Isso se encaixa no segundo problema: os membros da aliança também são poderes comerciais vitais. Um dos paradoxos da posição chinesa é que aqueles que representam o maior risco estratégico também são elementos essenciais da economia chinesa. A captura de uma ilha ao largo de Taiwan pode desencadear uma resposta dos EUA, mas convenceria os membros da aliança do perigo chinês e os forçaria, com o apoio dos EUA, a tomar medidas econômicas.

A China deve manter o crescimento econômico para manter a estabilidade. Não pode realizar ações que tornem isso difícil. Nem pode tolerar a possibilidade de uma ação naval dos EUA que paralise a economia chinesa. A atual situação econômica da China é satisfatória. Certamente, uma guerra não melhoraria nada. Corre o risco de uma ação dos EUA que também possa incapacitá-la. A principal solução chinesa é buscar uma acomodação com os Estados Unidos nas questões econômicas pendentes, estando cientes do fato de que os EUA não têm apetite para a guerra e a iniciarão apenas sob pressão significativa da China. A China deve enfraquecer a aliança anti-China, deixando claro que não tem intenção de fazer guerra e que alinhará sua economia com as demais. Em outras palavras, a China deve recusar o combate e fazer a paz econômica e política – sem parecer que está fazendo isso sob pressão.

A China é uma grande potência. Mas todas as grandes potências têm fraquezas, e seus concorrentes devem entendê-las. O medo e a prudência fazem com que os poderes se concentrem na força e negligenciem as fraquezas e, ao fazer isso, tendem a aumentar o poder do competidor. Uma análise precisa e imparcial é necessária para evitar a superestimação e a subestimação e, portanto, erros de cálculo.


*George Friedman é analista geopolítico e estrategista de assuntos internacionais mundialmente reconhecido. É fundador e presidente da Geopolitical Futures, um think tank especializado em relações internacionais e política externa americana. É autor de diversas obras, dentre as quais os best-sellers “Os próximos 100 anos” e “A próxima década”.

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2 comentários

  1. Sem dúvidas a calma e a prudência devem reger ambos os lados, até poque a chance de haver um desiquilíbrio em ambas “frentes” é imenso. Estaria nós voltando ao grande período das “navegações” onde as rotas marítimas são essenciais para o comércio e bem estar de uma nação? Na verdade, nunca deixamos esse período…

  2. O texto merece os meus parabéns.

    Gostei muito de ler sobre as questões internas como elementos desagregadores. Já era tempo de alguém pontuar essas questões, nenhum país pode considerar-se uma força ou bloco monolítico em intensões e coesão sócio econômico militar. Tantos os EUA quanto a China tem suas fraquezas internas e ignorar esta realidade é, por exemplo, ignorar os movimentos “sociais” contra a guerra do Vietnam, atentados dos oficiais contra Hitler, Trotsky X Stalin, etc. Abaixo as propagandas e vernizes, encontramos uma realidade de “interesses” internos bem distintos.

    Ademais, teriam os Americanos e sua alianças capacidade de suprir as demandas político econômicas do restante do mundo? Basta imaginar um desabastecimento logístico global, a exemplo do recém fechamento do canal de Suez, para mensurar o tamanho do problema que os Americanos teriam com todos os países dependentes do dinheiro “barato”, insumos, produtos industrializados e substrato informacional chinês.

    Não aponto aqui questões de interdependência regional com a Rússia, mas podemos realizar um sandbox à respeito. A história demonstra mais de uma vez que a China cai se atacado pelo norte, como demonstrado pelos Unos. Também podemos verificar que do altiplano Mao conseguiu esmagar, ladeira abaixo, as forças de Chiang Kai-shek até o litoral. Com o perdão da licença poética: sem a anuência dos Russos, seria impossível derrubar a China. Tá Russo ver o quanto ignoram a Rússia.

    Pergunta: Por que não “causar” problemas entre Rússia e China? Capacidade operacional e informacional não faltam. Uma frente desarticulando o norte e o seu interior já forçaria um reposicionamento estratégico brutal. Isso é tão difícil e flagrante que o pequeno entrevero com a Índia em Galwan ja demonstrou o tempo e a dificuldade que tiveram. Uma vez o interior desestruturado e a “nova elite chinesa” escolhida e definida, bastariam os pequenos bloqueios navais. A história dos Portugueses e Ingleses na região também demonstram que da ilha de Macau e principalmente de Hong kong, o litoral TODO coloca os chineses no bolso.

    A questão ética que se desenha é: um país que foi historicamente tão castigado e massacrado merece este “destino”? Qual é a alternativa a um país que “fez o dever de casa” e “venceu o ocidente em seu próprio jogo”. Não sou eu, um ninguém, que vai responder por essas questões éticas. Mas à partir do momento em que ameaçam O MEU PAÍS e prepotentemente tentam nos humilhar em nossa própria casa. Bem, vou poupá-los dos “adjetivos escatológicos”.

    Vida longa ao povo Brasileiro! Um povo que NUNCA se curvou e NUNCA vai se curvar.

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