
A China busca expandir sua influência na América Latina através de uma estratégia multidimensional; o Brasil deve proteger sua soberania, diversificar parcerias e fortalecer autonomia tecnológica para manter liderança regional.
Em 10 de dezembro de 2025, o governo chinês publicou seu terceiro Documento de Política sobre a América Latina e o Caribe 1, delineando uma ambiciosa estratégia de engajamento com a região. Este documento, divulgado pela agência de notícias estatal Xinhua, articula a visão da China para uma “comunidade com um futuro compartilhado”, fundamentada em cinco programas estratégicos: Solidariedade, Desenvolvimento, Civilização, Paz e Conectividade entre Povos. Embora apresentado em uma linguagem de cooperação e benefício mútuo, o documento revela uma estratégia calculada para expandir a influência geopolítica, econômica, tecnológica e militar da China, desafiando a ordem liderada pelo Ocidente e posicionando-se como uma alternativa hegemônica no “Sul Global”.
Para o Brasil, como principal potência regional, este documento apresenta um conjunto complexo de oportunidades e, mais criticamente, de desafios à sua soberania, autonomia estratégica e segurança nacional. A análise a seguir desdobra os pontos mais relevantes da política chinesa, avalia suas implicações diretas e indiretas para a defesa do Brasil e propõe um conjunto de recomendações estratégicas para a política de defesa nacional brasileira, visando a navegação neste novo cenário geopolítico.
Pontos Relevantes da Política Chinesa para a América Latina
O documento chinês é estruturado em torno de uma narrativa de cooperação Sul-Sul, opondo-se ao “bullying unilateral” e defendendo um “mundo multipolar”. No entanto, a análise de seus programas revela uma agenda de penetração estratégica profunda. A tabela abaixo resume os pontos mais críticos de cada programa.

Implicações para a Estratégia de Defesa do Brasil
A política chinesa para a América Latina e o Caribe representa um desafio direto à Estratégia Nacional de Defesa (END) do Brasil, que se baseia nos pilares da dissuasão, monitoramento/controle de áreas estratégicas e garantia da soberania. As implicações abrangem múltiplas dimensões.
Ameaças à Soberania e à Autonomia Estratégica
A principal ameaça reside na potencial erosão da autonomia estratégica do Brasil. A crescente dependência econômica em relação à China, especialmente em setores como mineração, agronegócio e infraestrutura, pode ser convertida em pressão política. O documento é explícito ao condicionar a parceria ao reconhecimento do princípio “Uma Só China”, o que pode forçar o Brasil a tomar posições em conflitos geopolíticos distantes, limitando sua tradicional política externa de equilíbrio e pragmatismo.
A cooperação financeira, incluindo a promoção do Renminbi (RMB) e a oferta de empréstimos para infraestrutura, pode criar vulnerabilidades. Países que se tornam excessivamente endividados com a China correm o risco de ceder o controle de ativos estratégicos, como portos, redes elétricas e de comunicação, em um fenômeno conhecido como “diplomacia da armadilha da dívida”.
Desafios à Liderança Regional
A estratégia chinesa de engajamento direto com países vizinhos ao Brasil, tanto bilateralmente quanto através de fóruns como o China-CELAC, ameaça a posição de liderança natural do Brasil na América do Sul. Ao fortalecer econômica e militarmente outras nações da região, a China pode fomentar rivalidades, fragmentar a coesão regional e criar um contrapeso à influência brasileira. Isso pode dificultar a capacidade do Brasil de projetar poder e defender seus interesses no entorno estratégico.
Vulnerabilidades na Defesa e Segurança
O “Programa de Paz” proposto pela China, embora disfarçado em uma retórica de cooperação, contém as implicações mais diretas para a defesa.
• Cooperação Militar e Tecnológica: A oferta de intercâmbios militares, treinamento e tecnologia de defesa (incluindo aeroespacial e cibernética) pode parecer atraente, mas carrega o risco de criar dependência tecnológica em sistemas críticos, além de abrir canais para espionagem e coleta de inteligência sobre as capacidades das Forças Armadas brasileiras.
• Infraestrutura de Duplo Uso: A participação chinesa em projetos de infraestrutura, como portos de águas profundas, estações de satélite (incluindo o sistema de navegação BeiDou) e redes de fibra óptica, pode criar ativos de duplo uso. Em um cenário de crise, essa infraestrutura poderia ser utilizada para fins militares, logísticos ou de inteligência contra os interesses do Brasil.
• Segurança Cibernética: A cooperação em segurança cibernética e governança da internet, sob a justificativa de combater a “ciber-hegemonia”, pode levar à adoção de tecnologias e padrões chineses que contenham backdoors ou vulnerabilidades, comprometendo a segurança de redes governamentais e militares.
• Cooperação Polar: O interesse chinês em estabelecer bases logísticas na região para suas expedições à Antártida representa uma incursão em uma área de vital interesse estratégico para o Brasil, podendo desafiar a influência brasileira no Atlântico Sul e no continente antártico.

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Recomendações para a Política de Defesa Nacional do Brasil
Diante deste cenário, o Brasil deve adotar uma postura de realismo pragmático, aproveitando as oportunidades econômicas oferecidas pela China sem comprometer sua soberania e segurança. As seguintes recomendações devem ser consideradas para a atualização da Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa:
Diversificação Estratégica de Parcerias
• Ação: Fortalecer e aprofundar as alianças estratégicas com um leque diversificado de potências, incluindo Estados Unidos, União Europeia, Índia, Japão e outras nações do Sul Global. O objetivo é evitar a dependência excessiva de um único parceiro e criar um contrapeso à influência chinesa.
• Justificativa: Uma rede robusta de parcerias aumenta o poder de barganha do Brasil e reduz sua vulnerabilidade a pressões geopolíticas.
Proteção de Ativos e Setores Estratégicos
• Ação: Implementar um rigoroso mecanismo de escrutínio (equivalente a um CFIUS 2 brasileiro) para investimentos estrangeiros em setores críticos, como energia, comunicações, portos, mineração estratégica e tecnologia da informação. A legislação de “golden share” deve ser expandida para empresas de setores sensíveis.
• Justificativa: Proteger a infraestrutura crítica nacional contra o controle estrangeiro que possa ter implicações de segurança.
Fortalecimento da Base Industrial de Defesa e da Autonomia Tecnológica
• Ação: Priorizar investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) nas áreas de defesa cibernética, inteligência artificial, tecnologias espaciais e de comunicação. Fomentar a Base Industrial de Defesa (BID) para reduzir a dependência de sistemas e componentes estrangeiros.
• Justificativa: A soberania no século XXI é indissociável da autonomia tecnológica. O Brasil precisa desenvolver capacidades próprias para proteger seus dados e sistemas.
Inteligência e Contrainteligência Estratégica
• Ação: Aumentar a capacidade dos órgãos de inteligência para monitorar as atividades de potências estrangeiras no território nacional e no entorno estratégico, com foco em espionagem industrial, cooptação de elites e operações de influência.
• Justificativa: Compreender a natureza e a extensão da influência estrangeira é o primeiro passo para neutralizar ameaças à segurança nacional.
Liderança Regional Ativa
• Ação: Revitalizar o papel do Brasil em mecanismos de cooperação regional, como o MERCOSUL e a UNASUL (ou um sucessor), oferecendo uma alternativa de liderança e integração que não dependa de potências extrarregionais. Fortalecer a cooperação em defesa com os países vizinhos com base na confiança mútua.
• Justificativa: Um entorno estratégico estável e alinhado aos interesses brasileiros é a primeira linha de defesa do país.
Conclusão
O Documento de Política da China para a América Latina e o Caribe é um chamado à ação para o Brasil. Ele sinaliza a chegada de uma nova era de competição entre grandes potências na região, exigindo uma reavaliação sóbria e urgente da estratégia de defesa do país. Ignorar as implicações estratégicas da crescente presença chinesa seria um erro histórico com graves consequências para a soberania e o futuro do Brasil.
A resposta, obviamente, não deve ser de hostilidade automática, mas de um engajamento cauteloso e assertivo, onde os interesses nacionais de longo prazo prevaleçam sobre os ganhos econômicos de curto prazo. O Brasil deve jogar o jogo do poder com a mesma sofisticação e visão de futuro que a China demonstra em seu planejamento estratégico.
Notas
[1] Xinhua. “Full text: China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean”. Global Times, 10 de dezembro de 2025. Disponível em: https://www.globaltimes.cn/page/202512/1350190.shtml.
[2] O Committee on Foreign Investment in the United States (CFIUS) é um comitê interagências do governo dos Estados Unidos que revisa transações envolvendo investimentos estrangeiros em empresas americanas para determinar os efeitos sobre a segurança nacional. Foi estabelecido em 1975 e fortalecido significativamente após os atentados de 11 de setembro de 2001.








