
Operação Lança do Sul: acusações de crimes de guerra contra secretário de Guerra Pete Hegseth convergem com nova doutrina de segurança que busca reafirmar primazia americana no Hemisfério Ocidental contra China e Rússia.
Uma Tempestade Anunciada
Uma tempestade política e jurídica de raras proporções paira sobre o Pentágono, e em seu epicentro está uma das figuras mais controversas do governo Trump: o secretário de Guerra, Pete Hegseth. Ex-comentarista da Fox News e autor de The War on Warriors: Behind the Betrayal of the Men Who Keep Us Free (sem tradução em português; disponível na Amazon), Hegseth construiu uma carreira pública sobre uma base de profundo ceticismo, senão desprezo, pelos protocolos, leis e constrangimentos éticos que historicamente buscam modular o uso da força militar americana. Sua agressiva campanha no Caribe, batizada de “Operação Lança do Sul” (Operation Southern Spear), mais do que uma mera operação de combate ao narcotráfico, representa a materialização de sua filosofia, desencadeando uma onda de controvérsias que transcende as fronteiras partidárias e coloca em xeque os próprios fundamentos do direito de guerra e da supervisão institucional nos Estados Unidos. A questão que emerge não é apenas se a estratégia é eficaz, mas se é legal, ética e, em última análise, se é compatível com os valores de uma nação que se pretende democrática.
O que está se desenvolvendo é um confronto direto entre a visão de um poder executivo desimpedido, que reivindica sua autoridade para definir e eliminar inimigos unilateralmente, e os contrapoderes institucionais — especialmente o Congresso — que lutam para reafirmar seu papel constitucional de supervisão. A crise atual não é um evento isolado, mas a consequência da nomeação de um secretário que, muito antes de assumir o cargo, já enxergava advogados militares e regras de engajamento como meros “obstáculos” à vitória.
A “Operação Lança do Sul” e o Espectro dos Crimes de Guerra
Desde setembro, sob direção de Hegseth, as forças armadas dos Estados Unidos intensificaram suas operações no Caribe. A “Operação Lança do Sul” foi apresentada como uma campanha de interdição letal contra o que o governo Trump classificou como “narcoterroristas”. Na prática, isto se traduziu em uma série de ataques contra embarcações civis suspeitas de tráfico de drogas em águas internacionais. Os números são alarmantes: pelo menos 21 ataques foram realizados, resultando na morte de mais de 80 pessoas.
O estopim da crise que trouxe a operação para o centro do debate nacional nos EUA foi um incidente específico ocorrido em 2 de setembro. Durante um desses ataques, uma embarcação foi destruída, mas dois tripulantes foram avistados ainda vivos, agarrados aos destroços. Nesse momento, segundo reportagens, uma ordem verbal direta de Hegseth teria sido emitida: “a ordem era para matar todos”. Um segundo ataque foi então realizado, eliminando os dois sobreviventes.
Esta alegação, se for comprovada, não é apenas uma questão de tática militar agressiva, mas recai diretamente no domínio do direito penal internacional. O conceito de hors de combat (fora de combate) é um pilar fundamental das Convenções de Genebra e do direito de guerra. Ele estipula que um combatente que se rende ou é incapacitado por ferimentos ou naufrágio deixa de ser um alvo legítimo. Atacar deliberadamente indivíduos nessa condição é universalmente reconhecido como crime de guerra. Como aponta um analista e ex-advogado militar do Exército dos EUA:
“Se o relato for verdadeiro, Hegseth cometeu um crime de guerra. Ou os tripulantes do barco eram civis ou combatentes. Se eram civis, a lei do conflito armado proibia totalmente alvejá-los. Se eram combatentes, como Hegseth argumenta, o primeiro ataque os teria tornado ‘hors de combat’. Este status… aplica-se quando um combatente se torna incapaz de participar da luta. A lei protege os indivíduos hors de combat, e eles não podem ser intencionalmente alvejados.”
A defesa do governo se assenta em uma base jurídica que muitos especialistas consideram instável: a designação unilateral dos alvos como “terroristas”. Esta classificação permite, na visão do executivo, a aplicação de regras de engajamento mais permissivas, típicas de um conflito armado. Contudo, esta designação foi feita sem autorização explícita do Congresso para uso de força militar (AUMF, Authorization for Use of Military Force) contra estes grupos específicos, contornando um processo constitucional essencial. A legalidade da própria operação, portanto, é objeto de debate, a ponto de aliados cruciais, como o Reino Unido, suspenderem o compartilhamento de informações de inteligência por receio de cumplicidade em ações ilegais.

LIVRO RECOMENDADO:
The War on Warriors: Behind the Betrayal of the Men Who Keep Us Free
Pete Hegseth (Autor)
• Kindle ou Capa dura
• Edição Inglês
A Filosofia Hegseth: Desprezo por Regras
A controvérsia da “Operação Lança do Sul” não pode ser dissociada da ideologia que Hegseth promoveu ao longo de sua vida pública. Em seu livro de 2024, The War on Warriors, e durante sua sabatina de confirmação no Senado, ele articulou uma visão de mundo em que os advogados militares do Corpo de Juízes Advogados Gerais (JAG, Judge Advocate General) são frequentemente vistos como entraves burocráticos à ação decisiva. Ele popularizou o termo depreciativo “jagoff” para descrever “um oficial JAG que coloca suas próprias prioridades à frente dos combatentes, suas promoções, suas medalhas, à frente de proteger aqueles que tomam decisões difíceis nas linhas da frente”.
Esta filosofia não ficou no plano teórico. Ao assumir o cargo, uma de suas primeiras ações foi demitir os mais altos oficiais jurídicos do Exército e da Força Aérea, justificando as demissões ao afirmar que estas posições eram “obstáculos às ordens dadas por um comandante-em-chefe”.
Sua desconfiança do sistema de aconselhamento jurídico militar culminou em um plano, revelado por memorandos internos, de transferir 600 advogados militares para o Departamento de Justiça para atuarem como juízes em tribunais de imigração. A medida foi vista como particularmente alarmante por colocar pessoal militar no controle de processos judiciais civis sem qualquer relação militar, esvaziando ainda mais a capacidade de supervisão legal no próprio Departamento de Guerra.
O ápice desta campanha ideológica ocorreu em setembro, em um comício televisionado com os principais oficiais das forças armadas. Em seu discurso, Hegseth expressou abertamente seu desprezo pelo que chamou de “regras de engajamento estúpidas” e prometeu: “nós desamarramos as mãos dos nossos combatentes para intimidar, desmoralizar, caçar e matar os inimigos do nosso país”.
Este evento foi um claro prenúncio da abordagem que seria implementada no Caribe, privilegiando a letalidade máxima em detrimento da discriminação e proporcionalidade exigidas pela lei.
Contra-ataque do Congresso: Rara União Bipartidária
A gravidade das alegações e a aparente indiferença do Pentágono forçaram o Congresso a tomar ações. Em uma rara demonstração de unidade, legisladores democratas e republicanos se uniram para exigir transparência e responsabilidade. A principal arma nesta batalha institucional tornou-se a Lei de Autorização de Defesa Nacional (NDAA, National Defense Authorization Act), um projeto de lei de financiamento militar considerado “obrigatório” e, portanto, à prova de veto.
Silenciosamente inserida no texto final da NDAA, há uma cláusula que estipula que um quarto do orçamento de viagens do secretário de Guerra será congelado até que os Comitês de Serviços Armados da Câmara e do Senado recebam o “vídeo não editado dos ataques conduzidos contra organizações terroristas designadas na área de responsabilidade do Comando Sul dos Estados Unidos”.
As vozes no Congresso têm sido inequívocas. O líder da minoria no Senado, Chuck Schumer (Democrata, Nova York), declarou publicamente: “Pete Hegseth deve divulgar os vídeos não editados dos seus ataques imprudentes e perigosos no Caribe. O Congresso reterá grande parte do seu orçamento de viagens até que ele o faça. O povo americano merece total transparência”. Do outro lado do Capitólio, o deputado Adam Smith (Democrata, Washington), principal democrata no Comitê de Serviços Armados da Câmara, foi ainda mais direto depois de uma sessão à portas fechadas onde uma versão do vídeo foi exibida para alguns legisladores:
“Se eles divulgarem o vídeo, então tudo o que os republicanos estão dizendo será claramente retratado como completamente falso.”
Esta afirmação sugere que o conteúdo das imagens é, no mínimo, ambíguo e contradiz a narrativa oficial de uma operação limpa e legal. A controvérsia expôs uma fratura dentro do próprio Partido Republicano, com figuras tradicionalmente focadas na segurança nacional expressando desconforto. A aliança inesperada entre o senador Mark Kelly (Democrata, Arizona; ex-capitão-de-mar-e-guerra, veterano da Guerra do Golfo e ex-astronauta) e o senador Rand Paul (Republicano, Kentucky) para questionar a legalidade das operações é um testemunho do mal-estar generalizado que as ações de Hegseth provocaram.

Contexto Geopolítico: Doutrina Monroe do Século XXI?
Seria ingênuo analisar a “Operação Lança do Sul” apenas como uma política de segurança interna. A campanha se insere em uma estratégia geopolítica muito mais ampla do governo Trump: a reafirmação da primazia americana no seu “quintal”. A doutrina é clara: projetar força, restabelecer a dissuasão e intimidar governos considerados hostis ou cúmplices do narcotráfico, tendo como alvo principal o regime de Nicolás Maduro na Venezuela.
Esta demonstração de força serve a dois propósitos. Internamente, apela a uma base eleitoral que responde positivamente a uma postura de “lei e ordem” vigorosa. Externamente, funciona como um aviso a potências globais rivais, especificamente China e Rússia, que vem expandindo sua influência econômica e militar na América Latina através de investimentos em infraestrutura, acordos de energia e cooperação militar. Ao patrulhar agressivamente o Caribe, Washington não está apenas caçando traficantes; está marcando território e sinalizando que não vai tolerar incursões de potências extrarregionais no Hemisfério Ocidental.
Contudo, esta abordagem de “polícia do hemisfério” traz riscos significativos. Ao operar em uma zona cinzenta do direito internacional, os Estados Unidos se arriscam a alienar aliados, minar sua própria credibilidade como defensores de uma “ordem baseada em regras” e criar precedentes perigosos que outros países poderiam explorar. A escalada de uma campanha de interdição para uma série de execuções extrajudiciais, como alguns críticos temem, poderia desestabilizar ainda mais uma região já frágil e inflamar o sentimento antiamericano.
Veredito da História
O caso Hegseth é mais do que um escândalo sobre um indivíduo ou uma operação, mas representa uma encruzilhada fundamental para a identidade nacional e o papel dos Estados Unidos no mundo. De um lado, está a tentação de um poder executivo que enxerga a si próprio como o único guardião contra ameaças externas, desvinculado de amarras legais e institucionais que considera obsoletas. De outro, está a tradição de uma república constitucional onde o poder é controlado e equilibrado, com um um sistema de “freios e contrapesos” em que até mesmo as mais altas autoridades devem prestar contas.
A recusa inicial de Hegseth de abordar diretamente as alegações, recorrendo à retórica de “fake news” antes de ser forçado a negar a ordem, apenas aprofundou a crise de confiança. Agora, com o Congresso usando seu poder orçamentário para forçar transparência, o governo está em um impasse. A divulgação dos vídeos se tornou inevitável, e seu conteúdo provavelmente ditará o curso não só de uma investigação sobre crimes de guerra, mas também de um debate mais amplo sobre os limites do poder presidencial.
O desfecho desta investigação não vai determinar apenas o futuro pessoal de Pete Hegseth. Irá, de forma mais profunda, oferecer um veredito sobre que tipo de nação os Estados Unidos realmente são: um poder ilimitado, guiado pela vontade executiva, ou uma democracia que respeita o primado do direito e a fiscalização institucional. A história – e o mundo – aguardam a resposta.
Referências
TULLY, Dan. Commentary: Pete Hegseth’s contempt for military rules of engagement on display in the Caribbean. Times Leader, 8 de dezembro de 2025. Disponível em: https://www.timesleader.com/opinion/1726666/commentary-pete-hegseths-contempt-for-military-rules-of-engagement-on-display-in-the-caribbean.
SHANEIII, Leo; O’BRIEN, Connor; GOULD, Joe. Congress to withhold Pentagon travel funds until it sees boat strike videos. Politico, 8 de dezembro de 2025. Disponível em: https://www.politico.com/news/2025/12/08/ndaa-boat-strikes-congress-hegseth-without-funds-00680679.
BECKER, William S. Forget Hegseth — are Trump and Congress culpable in the disputed boat attack? The Hill, 8 de dezembro de 2025. Disponível em: https://thehill.com/opinion/national-security/5636332-venezuela-drug-smuggling-controversy.
GULDOGAN, Diyar. US lawmaker threatens to withhold Hegseth’s travel funds unless he releases boat strike video. Anadolu, 9 de dezembro de 2025. Disponível em: https://www.aa.com.tr/en/americas/us-lawmaker-threatens-to-withhold-hegseth-s-travel-funds-unless-he-releases-boat-strike-video/3765852.
GOLDBERG, Jonah. You can’t hide from war crimes by calling them ‘fake news’. The Fulcrum, 9 de dezembro de 2025. Disponível em: https://thefulcrum.us/ethics-leadership/pete-hegseth-war-crimes.
GAGLIANO, Giuseppe. DÉCRYPTAGE – Hegseth dans la ligne de mire du Congrès. Le Diplomate.media, 9 de dezembro de 2025. Disponível em: https://lediplomate.media/decryptage-hegseth-ligne-mire-congres.








