
A Linha Durand, fronteira imposta em 1893, gera tensões históricas entre Paquistão e Afeganistão; dividindo os pashtuns e alimentando insurgências transfronteiriças, essa demarcação britânica persiste como fonte de conflitos e instabilidade geopolítica.
Desde sua criação em 1947, o Paquistão convive com uma fronteira contestada e uma relação turbulenta com seu vizinho ocidental, o Afeganistão.
No centro dessa tensão está a Linha Durand, uma demarcação imposta pelos britânicos em 1893 que dividiu o território tradicional dos pashtuns, grupo étnico majoritário no Afeganistão e significativo no Paquistão. A recusa afegã em reconhecer essa linha como fronteira legítima alimenta disputas identitárias, insurgências transfronteiriças e confrontos militares que, em 2025, voltaram a escalar perigosamente.
A Figura de Durand e o Legado Imperial
Sir Henry Mortimer Durand (Figura 1), secretário de Relações Exteriores da Índia britânica, foi o arquiteto da linha que leva seu nome. A demarcação fez parte de um acordo com o emir afegão Abdur Rahman Khan, que visava delimitar esferas de influência entre o Império Britânico e o Afeganistão. No entanto, a linha cortou o coração do território pashtun, sem consulta às populações locais. O Reino Unido tratou a delimitação como fronteira internacional permanente, e o Paquistão herdou essa interpretação, rejeitada desde o início por Cabul, que foi o único país a votar contra a entrada do Paquistão na ONU.

Guerras Anglo-Afegãs e o Nascimento da Desconfiança
As guerras anglo-afegãs foram três conflitos travados entre o Império Britânico e o Afeganistão durante o século XIX e início do XX, marcando profundamente a relação entre os dois países e moldando a geopolítica da região.
Primeira Guerra Anglo-Afegã (1839–1842)
A primeira guerra, entre 1839 e 1842, foi motivada pelo temor britânico de uma aproximação entre o Afeganistão e a Rússia. Os britânicos invadiram o país, depuseram o emir Dost Mohammad e instalaram Shah Shujah como governante aliado.
Apesar do sucesso inicial, a ocupação enfrentou resistência popular e terminou em desastre: cerca de 16.000 soldados e civis britânicos foram mortos ou capturados na retirada de Jalalabad, considerado um dos maiores desastres militares do Império Britânico, o que também consolidou a reputação do Afeganistão como “cemitério de impérios” (Figura 2).

Segunda Guerra Anglo-Afegã (1878–1880)
A segunda guerra, entre 1878 e 1880, teve início quando o emir Sher Ali recusou uma missão diplomática britânica, enquanto aceitava uma delegação russa. Os britânicos invadiram novamente, impondo o Tratado de Gandamak, que entregava o controle da política externa afegã ao Reino Unido. Após novos levantes e o assassinato de oficiais britânicos, o general Frederick Roberts liderou uma ofensiva decisiva em Kandahar. Abdur Rahman Khan foi instalado como emir, aceitando a influência britânica e preparando o terreno para a imposição da Linha Durand em 1893.
Terceira Guerra Anglo-Afegã (1919)
A terceira guerra, em 1919, foi iniciada pelo emir Amanullah Khan, que aproveitou a fragilidade britânica após a Primeira Guerra Mundial para declarar independência. O conflito foi breve, com escaramuças na fronteira e bombardeios britânicos em cidades afegãs. O Tratado de Rawalpindi encerrou a guerra e garantiu ao Afeganistão o controle de sua política externa, encerrando oficialmente a influência britânica direta. Apesar disso, a Linha Durand permaneceu como fronteira imposta, nunca reconhecida pelo Afeganistão, e continua sendo um dos principais pontos de discórdia entre Cabul e Islamabad.
Pashtuns Divididos e o Papel do Talibã
A Linha Durand separa cerca de 2.640 km de fronteira, cortando o território pashtun. Muitos pashtuns rejeitam essa divisão, e o Talibã — formado majoritariamente por pashtuns — também não reconhece a fronteira. Essa identidade transfronteiriça alimenta tensões, insurgências e ambições políticas que desafiam os Estados nacionais. O movimento por um “Pashtunistão” independente já foi apoiado por líderes afegãos, gerando confrontos diretos e fechamento de fronteiras.
O TTP, o Baluchistão e os Movimentos Insurgentes
O Tehrik-i-Taliban Pakistan (TTP) é um grupo insurgente paquistanês com laços ideológicos e operacionais com o Talibã afegão. Desde a retomada do poder pelo Talibã em Cabul (2021), o TTP intensificou ataques no Paquistão, especialmente em áreas tribais. Islamabad acusa o Talibã afegão de abrigar militantes do TTP, enquanto Cabul nega envolvimento direto.
No Baluchistão, província paquistanesa rica em recursos e estratégica para o corredor econômico China-Paquistão (CPEC), movimentos separatistas como o Exército de Libertação do Baluchistão (BLA) desafiam o controle estatal. O Paquistão acusa o Afeganistão e a Índia de apoiar esses grupos, o que adiciona uma camada de complexidade ao conflito regional.
O ISIS-K e o Fator Desestabilizador
O Estado Islâmico Khorasan (ISIS-K), ativo no Afeganistão desde 2015, representa uma ameaça comum aos dois países. Embora rival do Talibã, o grupo realiza atentados em áreas civis e militares, buscando desestabilizar a região e atrair atenção internacional. Sua presença reforça a fragilidade das fronteiras e a dificuldade de conter o extremismo em um ambiente de rivalidade e desconfiança.
Outubro Sangrento e o Impasse Diplomático
A partir de outubro de 2025, a fronteira entre Paquistão e Afeganistão voltou a ser palco de confrontos diretos, reacendendo tensões históricas e provocando alarme regional. Os combates mais intensos ocorreram nas áreas de Spin Boldak e Chaman, onde forças paquistanesas e combatentes do Talibã afegão trocaram disparos de artilharia e fogo leve. O Paquistão acusou o Talibã de permitir a movimentação do TTP através da Linha Durand, enquanto Cabul denunciou incursões paquistanesas em território afegão e ataques contra civis.
A escalada mais grave entre Paquistão e Afeganistão desde 2021 teve início em 9 de outubro de 2025, quando o Exército paquistanês lançou ataques aéreos contra supostos esconderijos do grupo TTP em território afegão. Os bombardeios atingiram áreas próximas à fronteira, provocando dezenas de mortes e reacendendo a tensão entre os dois países.
Nos dias seguintes, os combates se intensificaram, especialmente em 12 de outubro, com confrontos diretos nas regiões de Spin Boldak (Afeganistão) e Chaman (Paquistão). Tropas paquistanesas e combatentes do Talibã afegão trocaram disparos de artilharia e fogo leve, resultando em novas baixas militares e civis. O governo afegão acusou Islamabad de violar sua soberania, enquanto o Paquistão reiterou que o Talibã abriga militantes do TTP.
Em meio à escalada, um atentado em Cabul agravou ainda mais a crise. A explosão, ocorrida em área urbana densamente povoada, deixou dezenas de mortos e feridos. Embora o ataque tenha sido inicialmente atribuído ao TTP, autoridades paquistanesas sugeriram envolvimento do ISIS-K, grupo ativo na região e rival tanto do Talibã quanto do TTP.

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Revisiting the Durand Line: Historical and Legal Perspectives
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Diante da pressão internacional e do risco de uma guerra aberta, representantes dos dois governos se reuniram em Kandahar e depois em Islamabad para discutir um cessar-fogo. As negociações, mediadas discretamente por diplomatas do Irã e da China, resultaram em um acordo provisório para redução de tropas nas zonas de atrito e reabertura dos postos fronteiriços comerciais. No entanto, o cessar-fogo permanece frágil, com denúncias de violações e movimentações suspeitas em áreas tribais.
Esse episódio reforça a instabilidade da Linha Durand e a dificuldade de conter insurgências transfronteiriças em um cenário marcado por rivalidades étnicas, interesses estratégicos e ausência de mecanismos multilaterais de mediação.
Reflexos Estratégicos e o Tabuleiro Regional
A tensão entre Paquistão e Afeganistão tem reflexos diretos na segurança da Ásia Central e no equilíbrio geopolítico da região. A China observa com atenção, preocupada com a estabilidade do Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC), um dos pilares da Iniciativa Cinturão e Rota, também conhecida como Nova Rota da Seda. O CPEC conecta o porto de Gwadar, no sul do Paquistão, à cidade chinesa de Kashgar, em Xinjiang, por meio de uma rede de rodovias, ferrovias, oleodutos e zonas industriais. É uma rota estratégica que permite à China acessar o Oceano Índico sem depender do estreito de Malaca.
Desde 2015, a China já investiu dezenas de bilhões de dólares no Paquistão por meio do CPEC, com projetos que incluem usinas de energia, infraestrutura logística e telecomunicações. Em 2025, os investimentos chineses na Ásia Central ultrapassaram US$ 124 bilhões, com foco crescente em mineração, metais e conectividade regional. A instabilidade na fronteira afegã-paquistanesa ameaça diretamente esses interesses, especialmente no Baluchistão, onde movimentos separatistas desafiam o controle estatal e atacam ativos ligados ao CPEC.
Os Estados Unidos, embora com presença reduzida na região, mantêm interesse estratégico, especialmente no combate ao extremismo e na contenção da influência chinesa. Irã e Rússia também buscam ampliar sua presença, cada um com agendas distintas: Teerã foca na segurança de suas fronteiras e no comércio regional, enquanto Moscou tenta recuperar influência perdida após a retirada das forças da OTAN do Afeganistão.
Em julho de 2025, a Rússia deu um passo decisivo em sua estratégia regional ao se tornar o primeiro país do mundo a reconhecer oficialmente o governo do Talibã no Afeganistão. O gesto foi formalizado durante uma reunião em Cabul entre o ministro das Relações Exteriores do Talibã, Amir Khan Muttaqi, e o embaixador russo Dmitri Jirnov, seguida pela entrega das credenciais do novo embaixador afegão em Moscou. A bandeira do Emirado Islâmico foi hasteada pela primeira vez na embaixada afegã na capital russa, marcando o início de uma nova fase diplomática. Além do reconhecimento, foram discutidas parcerias econômicas nas áreas de energia, transporte e agricultura, além de cooperação em segurança regional. Moscou busca, com isso, ampliar sua influência na Ásia Central, conter o avanço do extremismo e se posicionar como interlocutor relevante em um cenário pós-OTAN, onde o Afeganistão volta a ser peça-chave no tabuleiro geopolítico.
O alcance do extremismo regional ficou evidente no atentado ao Crocus City Hall, em Moscou, em 22 de março de 2024, quando quatro militantes do ISIS-K invadiram a casa de espetáculos e mataram 149 pessoas, ferindo mais de 600. O ataque, o mais letal em solo russo desde o cerco de Beslan, foi reivindicado pelo braço afegão-paquistanês do grupo, revelando a capacidade do ISIS-K de projetar violência para além das fronteiras imediatas. A ação reacendeu o debate sobre a segurança regional e expôs vulnerabilidades na cooperação antiterrorismo entre os países da Ásia Central. Mesmo após reconhecer o governo do Talibã, Moscou continua a tratar o ISIS-K como ameaça prioritária, especialmente diante da possibilidade de novos ataques em território russo.
Mas é importante destacar que as iniciativas das potencias estrangeiras interessadas nessa região, do reconhecimento diplomático russo ao avanço do CPEC e à cooperação antiterrorismo, acabam ficando em risco diante dos confrontos recorrentes na fronteira da Linha Durand. A instabilidade não afeta apenas os países diretamente envolvidos, como Paquistão e Afeganistão, mas também compromete projetos multilaterais que dependem de uma Ásia Central segura, conectada e funcional. A fragilidade da fronteira, somada à ausência de mecanismos regionais eficazes de mediação, transforma cada episódio de violência em uma ameaça ao equilíbrio estratégico e econômico de toda a região.
Considerações Finais
A Linha Durand é mais que uma fronteira: é uma cicatriz viva na geopolítica sul-asiática, traçada por mãos coloniais e perpetuada por interesses modernos. O conflito entre Paquistão e Afeganistão é alimentado por rivalidades étnicas, insurgências transfronteiriças e ambições estratégicas que envolvem atores globais como China, Rússia e Irã. Enquanto mapas herdados do século XIX continuarem a definir os rumos do século XXI, a paz na região seguirá refém de fronteiras contestadas, alianças frágeis e projetos que dependem de estabilidade para prosperar. A Ásia Central, com seu potencial logístico e energético, permanece suspensa entre o passado imperial e um futuro incerto — onde cada explosão na fronteira ecoa muito além das montanhas que separam Cabul de Islamabad.








