Raphaël Hardy: Vida, Guerra e Legado de um Soldado Belgo-Brasileiro

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Raphaël Hardy, em imagem recriada com uso da ferramenta de inteligência artificial Flux Kontent.

Raphaël Hardy, em imagem recriada com uso da ferramenta de inteligência artificial Flux Kontent.

A história de Raphaël Hardy, arquiteto e músico belga, é um elo entre a Bélgica e o Brasil; imigrante, soldado na Primeira Guerra Mundial e pioneiro em Minas Gerais, ele construiu um notável legado familiar e profissional.


A história de meu avô, Raphaël Hardy, é um elo vivo entre dois mundos: a Bélgica marcada pelas guerras europeias e o Brasil em formação, onde ele escolheu construir sua vida e sua família. Nascido em Bruges no final do século XIX, Raphaël cresceu em meio à tradição cultural de sua cidade natal, frequentando a escola de música local e cursando desenho arquitetônico na Academia de Arquitetura de Bruges, duas formações que moldariam profundamente sua trajetória.

Essas habilidades não apenas o tornaram um profissional requisitado no Brasil, como também o levaram a se destacar como arquiteto pioneiro em Minas Gerais e como catedrático fundador do Conservatório Mineiro de Música, de Belo Horizonte, uma instituição que ajudou a consolidar a educação musical no estado e que hoje faz parte da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais.

Imigrante por escolha e soldado por dever, Raphaël viveu intensamente os dois lados do Atlântico. No Brasil, estabeleceu raízes, casou-se com Marcília Silvino e formou uma família que se tornaria símbolo da união entre culturas.

Mas foi durante a Primeira Grande Guerra que sua coragem se revelou de forma definitiva: ao decidir retornar à Europa para se alistar no Exército Belga e defender sua terra natal, deixando para trás a segurança da nova terra para enfrentar os horrores das trincheiras.

Este artigo resgata sua trajetória, da juventude em Bruges à vida no Brasil, passando pelos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Através de documentos familiares, relatos preservados e episódios marcantes como a carta escrita por sua esposa à Rainha da Bélgica, reconstruímos o legado de um homem que viveu com bravura, construiu com afeto e deixou marcas profundas na memória de sua família.

Imigração para o Brasil e Vida Civil

Com sua formação em desenho arquitetônico pela Academia de Arquitetura de Bruges e sólida base musical adquirida na escola de música da cidade, Raphaël Hardy chegou ao Brasil com um perfil raro entre os imigrantes da época: técnico, culto e profundamente ligado às artes. Essas competências seriam decisivas para sua inserção profissional no novo país, embora sua carreira musical clássica só viesse a se consolidar anos mais tarde.

Após desembarcar no Porto do Rio de Janeiro, entre os anos de 1912 e 1913, Raphaël foi contratado por uma empresa responsável pela construção da Estrada de Ferro Vitória a Minas, uma das mais importantes obras de infraestrutura do período. Sua função era desenhar os projetos das estações ferroviárias ao longo da linha em construção, aplicando seus conhecimentos europeus à realidade brasileira.

Foi nesse contexto que Raphaël chegou à cidade de Viçosa, no interior de Minas Gerais, por volta de 1913. Ali, entre pranchetas e trilhos, conheceu minha avó, Marcília Silvino, uma jovem mineira de raízes profundas na Zona da Mata. O encontro entre o belga e a brasileira marcou o início de uma nova etapa em sua vida. Casaram-se e formaram uma família que viria a crescer e se espalhar por diferentes regiões do Brasil, mantendo viva a memória de suas origens e valores.

Com o falecimento do pai de Marcília, Raphaël assumiu a gestão da fazenda da família Silvino, dedicando-se à vida rural e à administração da propriedade. Essa fase foi marcada por trabalho intenso, integração à comunidade local e fortalecimento dos laços familiares. Foi também nesse período, antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, que nasceram os dois primeiros filhos do casal, início de uma descendência que se tornaria numerosa e profundamente ligada à história de Minas Gerais.

A carreira musical, embora já presente como vocação, seria retomada e desenvolvida apenas após o fim da guerra, quando Raphaël se estabeleceria em Belo Horizonte e fundaria o Conservatório Mineiro de Música.

A Primeira Guerra Mundial e o Alistamento

A Primeira Guerra Mundial teve início em 28 de julho de 1914, e como muitos na época, Raphaël Hardy acreditava que o conflito seria breve, “até o próximo Natal”, diziam. Essa era a expectativa geral, inclusive entre os belgas expatriados. Movido por um profundo senso de dever patriótico, Raphaël decidiu retornar à Europa para se alistar no Exército Belga, acreditando que em poucos meses estaria de volta ao Brasil, ao lado da esposa e dos filhos.


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A viagem de retorno à Bélgica ocorreu ainda no ano de 1914, e o que era para ser uma breve missão transformou-se em uma longa e dolorosa ausência. Raphaël permaneceu em combate por cerca de quatro anos, até 30 de janeiro de 1918, enfrentando as duras condições das trincheiras: frio extremo, escassez de alimentos, lama constante e o terror dos bombardeios.

Serviu na frente ocidental, especialmente na região da Flandres, em batalhas como Ypres, Passchendaele e Diksmuide, onde atuou como sniper (atirador de elite) uma função de altíssimo risco e precisão, exigindo concentração, resistência e sangue frio.

Durante todo esse período, sua cidade natal, Bruges, esteve ocupada pelas forças alemãs. Embora Raphaël estivesse combatendo a menos de 35 km de sua casa, nunca conseguiu rever sua família. A guerra o separou não apenas da esposa e dos filhos no Brasil, mas também de seus pais e irmãos na Bélgica, criando uma distância dolorosa entre os dois mundos que habitava.

Enquanto Raphaël enfrentava os horrores da guerra, no Brasil, minha avó Marcília vivia uma realidade igualmente dura. Sozinha com dois filhos pequenos, enfrentava limitações para administrar a propriedade rural da família Silvino, especialmente após o falecimento de seu pai. A ausência do marido tornava tudo mais pesado, emocionalmente e materialmente. Em meio a essas dificuldades, um dos filhos do casal faleceu, aprofundando ainda mais o sofrimento de Marcília.

Mas o sofrimento de Marcília não se limitava às dificuldades práticas. No interior de Minas Gerais, distante dos grandes centros e alheio à complexidade do conflito europeu, poucos compreendiam o que se passava além do Atlântico. A guerra parecia um eco distante, e a ausência prolongada de Raphaël gerou desconfiança. Marcília passou a ser alvo de comentários maldosos e discriminação: diziam que havia sido abandonada pelo “marido estrangeiro”, que ele teria fugido, ou que jamais voltaria.

Foi nesse contexto de dor, solidão e julgamento que Marcília tomou uma decisão corajosa e improvável: escreveu uma carta à rainha Elisabeth da Bélgica, esposa do Rei Albert I, relatando sua situação e pedindo ajuda para que o marido pudesse retornar ao Brasil antes do fim da guerra. A carta, escrita com dignidade e esperança, foi recebida e atendida, um gesto que revela não apenas a força de uma mulher em tempos de adversidade, mas também o reconhecimento da contribuição dos belgas que haviam deixado tudo para lutar por sua pátria.

Assim que a carta chegou às mãos da rainha, ela ordenou que Raphaël fosse imediatamente transferido para a retaguarda. Como também era músico, foi integrado à Banda Militar do Exército Belga, onde passou seus últimos meses de serviço antes da desmobilização. Essa mudança não apenas o afastou do front, mas também permitiu que ele reencontrasse parte de sua identidade artística, uma ponte entre o trauma da guerra e a reconstrução da vida civil.

Raphaël ainda ficou cerca de três meses na guerra, até que recebeu sua baixa. Ele embarcou de volta ao Brasil no dia 5 de fevereiro de 1918, pelo porto francês de Bordeaux, a bordo do navio Samara. Tinha apenas 25 anos de idade, mas já carregava consigo uma bagagem de experiências profundas, de paz e de guerra. Chegou ao Brasil pela segunda vez em 7 de março de 1918, desembarcando novamente no Porto do Rio de Janeiro, fardado e com seu fuzil Mosin-Nagant às costas, arma que havia utilizado como sniper nas trincheiras de Flandres.

Ao chegar a Viçosa, Raphaël desembarca na estação ferroviária que havia ele mesmo projetado, e ao tomar conhecimento das difamações que sua esposa havia sofrido durante sua ausência, não hesitou. Tomou emprestado um cavalo, ainda com sua farda de combate, e percorreu as ruas da cidade gritando com voz firme e emocionada: “Marcília, voltei!”. O gesto foi um ato público de honra e reparação, que silenciou os rumores e restaurou a dignidade de sua esposa diante da comunidade.

Sua volta marcou o início de uma nova fase: a reconstrução da vida familiar, o reencontro com os filhos e o início de sua atuação como educador e músico, legado que se consolidaria nos anos seguintes.


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O Retorno ao Brasil e a Vida Pós-Guerra

Após desembarcar no Porto do Rio de Janeiro em 7 de março de 1918, Raphaël Hardy reencontrou o Brasil com novos olhos, não mais como o jovem arquiteto recém-chegado, mas como um homem marcado pela guerra, pela saudade e pela coragem. Tinha apenas 25 anos, mas já carregava consigo uma bagagem de experiências profundas: o rigor técnico da arquitetura, a sensibilidade da música e os traumas da guerra.

O reencontro com Marcília foi carregado de emoção e dignidade. A cena de Raphaël cavalgando pelas ruas de Viçosa, fardado e com seu fuzil Mosin-Nagant às costas, gritando “Marcília, voltei!”, tornou-se um marco familiar: símbolo de honra, amor e reparação. A partir dali, iniciou-se uma nova etapa: a reconstrução da vida familiar, o fortalecimento dos laços com os filhos e a retomada da vida civil.

Raphaël reassumiu a gestão da fazenda da família Silvino, mas também retomou sua atuação como arquiteto. Em Viçosa, participou de diversos projetos urbanos e residenciais, contribuindo para o desenvolvimento da cidade com seu traço técnico e refinado. Sua reputação como projetista cresceu, e em pouco tempo foi convidado a integrar a Comissão de Obras da capital mineira, Belo Horizonte, um cargo de prestígio e responsabilidade.

Na capital, Raphaël participou da elaboração da segunda planta urbana de Belo Horizonte, aprovada oficialmente pelo Conselho de Obras da cidade em 1920. Esse documento histórico, que orientou a expansão ordenada da capital mineira, encontra-se hoje arquivado no Museu Histórico Abílio Barreto, preservado como testemunho da contribuição técnica e visionária de Raphaël Hardy.

Além da planta urbana, Raphaël elaborou os projetos arquitetônicos de diversos edifícios importantes da cidade, ajudando a moldar a paisagem urbana de Belo Horizonte em seus anos de crescimento. Seu nome passou a constar no Livro dos Pioneiros de Belo Horizonte, obra que registra os cidadãos que contribuíram decisivamente para a construção da capital. Como homenagem, uma rua da cidade recebeu seu nome, eternizando sua presença na memória urbana.

No plano familiar, Raphaël e Marcília tiveram mais três filhos após seu retorno da guerra, formando uma família numerosa e profundamente ligada à história de Minas Gerais.

Paralelamente à arquitetura, Raphaël desenvolveu sua vocação musical. Com sua formação europeia e experiência como músico na Banda Militar do Exército Belga, tornou-se catedrático de Violoncelo do Conservatório Mineiro de Música a partir de junho de 1928, cargo que manteve até sua morte. Com a incorporação do conservatório à Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Raphaël continuou lecionando, formando gerações de músicos e educadores, unindo técnica e sensibilidade artística.

Raphaël Hardy faleceu em 1968, aos 75 anos, vítima de um ataque cardíaco fulminante.

Sua vida foi marcada por coragem, talento e dedicação, um legado que permanece vivo na arquitetura, na música e na memória de Belo Horizonte. Seu legado militar também não foi esquecido. O fuzil de sniper, com o qual Raphaël combateu, hoje se encontra guardado na Seção de Tiro da Academia Militar das Agulhas Negras, como uma inspiração aos novos cadetes do Exército Brasileiro.

Bibliografia

COUTINHO, Marco Antonio de Freitas. Memories: Facts and Tales of our Lives, Volume III. ISBN 978-65-00-15290-6.

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