Guerra na Ucrânia: pretexto para federalização da Europa?

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Imagem gerada por inteligência artificial.

Por Alexandre Raoult*

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Em meio a uma cada vez mais clara divisão entre elites e opinião pública, a guerra na Ucrânia e a “segurança europeia” podem servir de pretexto para federalizar o continente?


Desde fevereiro de 2022, o conflito na Ucrânia perturbou profundamente o equilíbrio geopolítico do continente europeu. Oficialmente, a União Europeia se posicionou como um bloco único, solidário com Kiev, em nome da defesa do direito internacional, da soberania dos povos e da segurança coletiva. Mas por trás desta postura, que se pretende a mais consensual, alguns observadores percebem outra questão, menos visível: a exploração do contexto de guerra para fazer avançar um projeto mais ambicioso de integração política, apoiado especificamente pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e pelo presidente da república francês, Emmanuel Macron.

Um conflito com múltiplas ramificações

A guerra russo-ucraniana, em sua forma atual, eclodiu em fevereiro de 2022 com a ofensiva militar da Rússia contra a Ucrânia, após oito anos de tensões persistentes desde os eventos do EuroMaidan, seguidos pela anexação da Crimeia em 2014. Moscou justifica sua intervenção pela necessidade de “desnazificar” a Ucrânia e proteger a população de língua russa de Donbass. Kiev, por sua vez, maciçamente apoiada pelo Ocidente, vê isso como uma invasão imperialista da Rússia visando questionar sua integridade territorial e sua legitimidade soberana sobre a região.

O conflito coloca, portanto, dois blocos um contra o outro: a Rússia de Vladimir Putin, apoiada mais ou menos discretamente por várias potências emergentes em uma lógica de reconfiguração multipolar; e Ucrânia, apoiada por ajuda militar, financeira e diplomática da OTAN, dos Estados Unidos e da União Europeia.

Trump, OTAN, UE: uma divisão transatlântica reveladora

A atitude do presidente dos EUA, Donald Trump, em relação à OTAN e à União Europeia ampliou as dúvidas sobre a força do vínculo transatlântico. Ao chamar a OTAN de uma organização “obsoleta” e a União Europeia de um “veículo para os interesses alemães”, Trump questionou abertamente os fundamentos do sistema de segurança europeu. Mais recentemente, suas declarações evocando a possibilidade de não defender um país europeu que não respeite os compromissos orçamentários da Aliança (2% do PIB anual) reforçaram um sentimento de incerteza.

Neste clima de dúvida, alguns líderes europeus viram uma oportunidade: acelerar a integração federal da União, em nome da “autonomia estratégica”.

Sinais claros de uma mudança federal

A pretexto de responder às emergências atuais, a União Europeia multiplicou iniciativas que vão muito além do seu mandato inicial. Aqui estão alguns exemplos:

• Um empréstimo conjunto de 806,9 bilhões de euros, lançado através do plano de recuperação pós-covid “Next Generation EU”, abriu caminho à mutualização da dívida à escala europeia – sem consulta direta aos cidadãos;

• O euro, já em circulação em 20 países, é agora visto como uma alavanca de estabilização política, para além do seu papel econômico inicial;

• O projeto do euro digital, apoiado pelo Banco Central Europeu (BCE), deve modernizar os pagamentos na zona do euro. Mas levanta sérias preocupações: rastreabilidade das transações, potenciais restrições ao uso, enfraquecimento do papel dos bancos comerciais e recentralização do poder monetário em Frankfurt;

• O mercado único continua a expandir-se, impondo gradualmente suas normas aos Estados-Membros, em detrimento de certas prerrogativas nacionais;

• A cooperação militar está se intensificando com o projeto do Exército europeu e as discussões em torno de um guarda-chuva nuclear europeu, potencialmente apoiado pela dissuasão francesa;

• Os fundos dedicados à Defesa, como o Fundo Europeu de Apoio à Paz (FEP, Facilité Européenne pour la Paix) ou o Fundo Europeu de Defesa (FED, Fonds Européen de Défense), permitem à União financiar diretamente a entrega de armas a países terceiros – uma estreia histórica.

Juntos, esses elementos delineiam os contornos de uma estrutura quase estatal. No entanto, essa grande mudança política está ocorrendo sem um mandato explícito dos povos da Europa.


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Rumo a uma Europa tecnocrática e descolada da realidade?

A principal crítica feita pelos opositores dessa dinâmica federal reside na falta de legitimidade democrática. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, não foi eleita por sufrágio universal. No entanto, negociou e aprovou um empréstimo conjunto de 800 bilhões de euros, comprometendo as gerações futuras, sem consultar os cidadãos europeus.

No plano militar, área historicamente reservada às soberanias nacionais, a União caminha agora para uma integração doutrinária, estratégica e orçamentária. Esta mudança põe em causa o próprio princípio da subsidiariedade dos Estados-Membros.

A França, por sua vez, parece estar realizando uma reorientação estratégica. Sob a presidência de Emmanuel Macron, o país está cada vez mais disposto a compartilhar, ou mesmo diluir, suas alavancas de poder (diplomacia autônoma, indústria de defesa, dissuasão nuclear) dentro de uma arquitetura europeia tecnocrática que está pouco sujeita ao controle das urnas.

Um fosso crescente entre instituições e pessoas

Essa divisão não é mais teórica. Na Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro de 2025, a visita do vice-presidente dos EUA, James David Vance, ilustrou o crescente fosso entre as elites europeias e sua opinião pública. Enquanto Bruxelas e certas capitais, lideradas por Paris, apelam a uma integração estratégica mais profunda – incluindo na energia nuclear – Washington reiterou a importância de uma Europa “alinhada com a vontade dos seus povos”.

Pesquisas recentes, discutidas à margem da conferência, confirmam essa tendência: muitos cidadãos europeus expressam sua desconfiança nas escolhas feitas em Bruxelas, particularmente em questões militares, orçamentárias e energéticas. A falta de transparência, a evasão dos parlamentos nacionais e a ausência de referendos estão alimentando uma crise de legitimidade democrática que continua a piorar.

A União Europeia numa encruzilhada

A ideia de uma Europa unida continua sendo uma fonte de esperança, como já demonstram as ambições dos Tratados de Maastricht. Mas a exploração de uma grande crise – neste caso a guerra na Ucrânia – para avançar um projeto federalista sem o consentimento dos cidadãos constitui um precedente com consequências graves.

A União Europeia ainda pode alegar ser democrática quando suas escolhas mais estruturais são feitas a portas fechadas, nos corredores da Comissão, longe da vista do público e das urnas? Os ideais de unidade, paz e cooperação são nobres. Mas não devem servir de pretexto para um confisco silencioso da soberania nacional em favor de um projeto tecnocrático que põe em causa a própria essência da democracia: a livre soberania dos povos.


Publicado no Le Diplomate.Media.

*Alexandre Raoult é aluno de mestrado em uma importante escola de negócios em La Rochelle. Fotógrafo freelancer e jovem entusiasta de geopolítica, ele também se interessa por história e sátira política. É editor do Diplomate Media desde março de 2025.

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