Por Regina Egle Liotta Catrambone*

O rearmamento europeu pode minar os ideais fundadores da União Europeia e, embora o objetivo declarado seja fortalecer sua capacidade de defesa, levanta questões sobre a verdadeira natureza do projeto europeu e sua visão de longo prazo.
Recentes propostas para rearmar a Europa por líderes europeus, incluindo a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, o presidente francês, Emmanuel Macron, o próximo chanceler alemão, Friedrich Merz, e o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, reacenderam o debate sobre a direção que a União Europeia está tomando como entidade política e estratégica.
Embora o objetivo declarado seja fortalecer as capacidades de defesa do continente em resposta às ameaças geopolíticas atuais, essa abordagem levanta questões fundamentais sobre a verdadeira natureza do projeto europeu e sua visão de longo prazo.
Desde a sua fundação, a União Europeia (UE) tem sido construída sobre os princípios de paz, diplomacia e cooperação econômica. Foi desenhada para garantir que a Europa nunca mais descesse aos conflitos devastadores que definiram a primeira metade do século XX.
A UE sempre se posicionou como um modelo de “poder suave” (soft power), confiando na força econômica, multilateralismo e diplomacia em vez da força militar para proteger seus interesses e promover a estabilidade mundial. Um movimento em direção ao rearmamento corre o risco de minar esses ideais fundadores, levando a UE por um caminho que contradiz seu compromisso histórico com a paz.
O impulso para o rearmamento surge em um momento em que a Europa enfrenta inúmeros desafios: incerteza econômica, mudança climática, insegurança energética e desigualdade social. Priorizar os gastos militares em detrimento dessas questões urgentes poderia criar um desequilíbrio perigoso.
O princípio da subsidiariedade, um pilar da governança da UE, enfatiza que as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível dos cidadãos, garantindo que a União aja apenas quando necessário e em áreas onde sua intervenção traga um valor claro. Um investimento em larga escala em defesa, direcionado de Bruxelas, corre o risco de marginalizar as reais necessidades dos Estados-membros individuais, muitos dos quais continuam a lutar com a recuperação pós-pandemia e dificuldades econômicas.
Além disso, há uma questão fundamental sobre se esse impulso militar reflete a vontade dos cidadãos europeus. O projeto europeu foi construído com base na participação democrática, mas grandes decisões sobre segurança e defesa frequentemente ocorrem nos níveis mais altos de governo, longe do debate público. Onde está a consulta cidadã nesta transição em direção à militarização? Se a UE quer permanecer uma instituição democrática, decisões de tal magnitude não devem ser tomadas sem o consentimento claro de seu povo.
Se a UE se movimentar na direção a se tornar uma potência militar, corre o risco de se transformar em algo fundamentalmente diferente do que seus fundadores imaginaram. Existe também a questão de quem controlará esse novo poder militar.
Um Exército europeu ou uma estratégia de defesa da UE estariam totalmente alinhados com os princípios democráticos caros aos Estados-membros? Como esse esforço de rearmamento se encaixaria na OTAN, uma vez que a maioria dos países da UE também são membros da OTAN? Isso levaria a uma maior autonomia europeia em matéria de defesa ou simplesmente criaria outro nível de burocracia e conflitos de interesse potenciais?
Macron tem sido um dos apoiadores mais vocais da autonomia estratégica europeia, argumentando que a UE deveria ser capaz de se defender sem confiar demais nos Estados Unidos.

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Embora a independência estratégica seja um objetivo válido, ela não deve vir em detrimento da identidade central da UE. A militarização não é a única e nem a melhor forma de alcançar a soberania. Uma Europa forte é aquela que lidera pelo exemplo na diplomacia, cooperação econômica e inovação, não aquela que compete em uma corrida armamentista.
Os EUA, como principal parceiro de segurança da Europa, há muito incentivam a Europa a assumir uma maior responsabilidade por sua própria defesa. No entanto, esse incentivo deve ser visto no contexto de interesses estratégicos americanos mais amplos. Os EUA têm um interesse em uma Europa militarmente forte, não apenas para a segurança europeia, mas para seu próprio posicionamento global. A UE deve se perguntar: estamos nos rearmando para a nossa própria segurança ou estamos fazendo isso por um alinhamento com as estratégias geopolíticas americanas?
Malta, como um país neutro, sempre advogou por diálogo e resolução de conflitos em vez de militarização. O ministro das Relações Exteriores, Ian Borg, enfatizou repetidamente a importância da diplomacia na resolução de crises internacionais, afirmando: “Agora, mais do que nunca, a comunidade internacional deve permanecer unida em nossos esforços pela paz na Ucrânia, enquanto defendemos sua soberania e integridade territorial.”
Essa abordagem se alinha com o papel histórico da União Europeia como mediadora global. Em vez de investir bilhões em armamentos e infraestrutura militar, a UE deveria investir em iniciativas de construção da paz, prevenção de conflitos e ajuda humanitária. A UE tem potencial para ser líder em diplomacia, dando o exemplo para o resto do mundo na resolução de disputas por meio do diálogo em vez da força.
Além disso, uma militarização crescente corre o risco de enredar a Europa em conflitos nos quais, de outra forma, poderia navegar por meios diplomáticos. A UE há muito se orgulha de sua capacidade de atuar como uma ponte entre poderes globais concorrentes, utilizando incentivos econômicos, laços culturais e engajamento político para difundir tensões. Se a Europa começar a se armar na velocidade em que alguns líderes estão propondo, ainda será vista como um mediador neutro e crível para a paz?
O debate sobre o rearmamento da Europa não é apenas uma questão de segurança, mas também sobre o tipo de Europa que queremos construir para as gerações futuras. Queremos uma União que siga o caminho das superpotências militares, onde a força é medida em armas e orçamentos de defesa? Ou queremos permanecer fiéis aos ideais que fizeram da UE um farol de paz e cooperação?
Embora a intenção por trás do rearmamento da Europa possa ser salvaguardar seus interesses, devemos considerar cuidadosamente as implicações de longo prazo. Priorizar soluções pacíficas, reforçar a resiliência econômica e abordar os desafios socioeconômicos levará a uma Europa mais estável e próspera. Uma UE militarizada corre o risco de se tornar uma entidade movida pelo medo e pela força em vez da diplomacia e unidade.
O princípio da subsidiariedade nos lembra que as decisões devem ser tomadas no nível mais local possível e com o consentimento daqueles que são afetados. Os cidadãos europeus foram questionados se querem essa mudança para a militarização? Estão dispostos a redirecionar fundos de programas sociais para orçamentos de defesa?
Estas são questões fundamentais que os líderes da UE devem responder antes de se comprometerem com um caminho que poderia redefinir a identidade da Europa por gerações.
Como cidadãos europeus, devemos nos perguntar: estamos dispostos a trocar a alma do projeto europeu pela ilusão de segurança? A verdadeira força da Europa não reside em sua capacidade de fazer guerra, mas em seu compromisso de garantir que a guerra nunca se torne necessária.
Publicado no Times of Malta.
*Regina Egle Liotta Catrambone é uma ativista italiana, fundadora da ONG internacional Migrant Offshore Aid Station e fundadora e diretora do Mediterranean Aid Education Centre.