
Em agosto de 1941, enquanto o Reich avançava pelo Leste Europeu, a brutalidade da guerra revelava um plano sinistro: a “Solução Final”.
Era um dia de agosto. O ano, 1941. Fazia calor em Minsk. Era início de estação, verão. Parecia domingo. Feito festa. Tudo fruição.
A gente do Reich avançava por todo o Leste da Europa. Bielorrússia, Ucrânia, Rússia. Quilômetro por quilômetro. Seu destino: Moscou. Sentido: Ural. Objetivo: triunfar sobre os herdeiros de Tolstói e forjar vitórias totais e sem partilha. Tudo por uma Grande Alemanha. Tipo aquilo projetado em 1938, com a anexação de Anschluss, por um espaço vital que inaugurou uma verdadeira guerra colonial. Teoricamente, por princípios existenciais. Ou, como dizia um general alemão,
“A guerra contra a Rússia é uma parte essencial do combate pela existência do povo alemão. Trata-se do velho combate dos germânicos contra os eslavos, a defesa da cultura europeia contra a invasão moscovita-asiática, a defesa contra o bolchevismo judaico.”
Eis o tom da Barbarossa. 1941 foi o momentum Barbarossa e do deus Molotov-Ribbentrop.
Vivia-se junho-julho. O ano, 1941.
Moscou não era Varsóvia nem Atenas tampouco Paris. A blitzkrieg, por isso, fora insuficiente.
A resiliência do Exército Vermelho era impressionante. Muito maior que a dos franceses, gregos e poloneses. O que impôs à Wehrmacht conjuntos de perdas inimagináveis.
Stalin exigia determinação integral de seus oficiais. Hitler também. Era difícil saber quem tinha mais razões para lutar. Ninguém hesitava. Do mais raso ao mais graduado militar, marinheiro ou aeronauta. O limite era morrer. Quem medrasse, sabia, morria. Quem fosse demasiado corajoso, também. Era certo. De qualquer lado. O que brutalizou sobremodo o conflito. Fazendo da violência uma ubiquidade banal. Mais que outrora e mais que jamais.
Tanto que em um, dois meses os alemães perderam mais homens e materiais que em todas as suas batalhas anteriores desde 1939. O pavor tomou conta. Mesmo os mais experimentados oficiais do Reich jamais tinham visto tanta determinação. Exceto em Verdun, La Somme ou La Marne.
A Eurásia era um inferno. Inferno vermelho.
Que, de súbito, fez-se Medusa diante de Hitler.
Que, por seu turno, metamorfoseou a mentalidade do Reich. Evocando, mais que nunca, a superioridade germânica. Tendo por contraparte os judeus. Judeus-bolcheviques. De todas as idades e condições. Homens, mulheres e crianças. Que passaram a ser exterminados sem preguiça nem perdão. Adicionando ao embate dimensões étnicas, para muito além das ideologias.
O mês ainda era julho. E o ano, 1941.
Malgrado as perdas, a bandeira do Reich era mais e mais hasteada. Concretando a fúria de Hitler em todo o Leste da Europa. Capturando populações. Neutralizando-as e confinando. Para, em seguida, eliminar. Enviando para guetos. Impondo privações. Trabalho forçado. Fome, miséria, desnutrição, infecção. E, por fim, fuzilando. Feito espetáculo.
Prender, confinar, fuzilar. Sem piedade nem perdão. Desejo de Hitler. Desígnio do Reich. Desde sempre. Especialmente desde 1939.
Volte-se, então, a outubro de 1939.
O Reich dava início ao plano Nisko. Um processo de deportação de judeus para a região de Lublin, na Polônia, com o propósito de humilhação, desmoralização, eliminação. Era o início da limpeza étnica nazista. Que depois se somou ao projeto Madagascar. Para onde foram enviados milhares de judeus doentes e sadios. Amplificando o martírio. Que, para muitos, não cessaria nunca mais.
Nem com a morte.
Entre 1939 e 1945, porquanto, houve 1941. Início da Barbarossa. Que levou a gente do Reich a mudar de planos, esquecer das deportações para Lublin e Madagascar para focar na Sibéria.
Território de Stalin. Onde, em seu entender, os judeus, antes de morrer, sofreriam ainda mais.
Mas logo se notou não fazer sentido enviar todo mundo para a Sibéria. Os judeus eram muitos e muito espalhados. O que sugeria ao Reich otimizar a receita prender, confinar, fuzilar.
Além de nazistas, aqueles nazistas eram sádicos. Sedentos por sangue, horror e morte. O que os conduziu a criar um pelotão especializado em fuzilar. Chamaram-no Einsatzgruppen. Esquadrão da morte do Reich.
Criado naquele junho-julho de 1941, ele inaugurou as atividades otimizadas de fuzilamento. Que no primeiro exercício assassinou 23.600 judeus em Kamenets-Podolski duma vez só. E, por entenderem ser bom, chegaram ao número mágico de meio milhão de judeus fuzilados em poucas semanas depois dali.
O início passou. Junho-julho também. Chegou agosto. O ano, 1941.
Fazia calor em Minsk. Era início de estação. Parecia domingo. Fazia-se festa. Tudo em fruição.
O oficialato nazista em solo soviético quis evidenciar a sua performance aos seus superiores em Berlim. Convidaram, então, Führer pra ver. Mas ele não foi. Mas enviou Himmler.
Como se disse, parecia ser festa. Um espetáculo foi armado. Não era o Coliseu. Não era cristãos. Não existiam animais. Mas previa-se muito fogo. Deu-se o start. Iniciaram-se os fuzilamentos. Os verdugos da SS, incorporados ao Einsatzgruppen, descarregaram uma quantidade impressionante de munição sobre dezenas de milhares de pessoas simplesmente por serem judeus. Tudo à luz do dia. Pouco mais ou menos que meio-dia. Causando sensações. Alguns carrascos sorriam. Uns poucos choravam. Outros, somente, sentiam. Tudo diante de Himmler, que tudo anotava.
Eram todos, certo, nazistas. Muitos deles, epidermicamente assassinos. Mas todos, inequivocamente, tinham coração. Ainda eram humanos, demasiado humanos. E, por isso, malgrado a pressão, ainda não tinham sido completamente lobotomizados pelo Mein Kampf. O que lhes permitia nesgas de consciência, escrúpulos, decência. Quem sabe, até sentimentos. Nobres ou não. Decentes ou indigentes. Uma confusa piedade. Transformada em hesitação. Eram petrificantes as cenas de martírio. Mesmo que contra seus inimigos. Em sua maioria, mulheres. Quase todas indefesas.
Algumas gestantes. Outras lactantes. Com filhos nos braços ou por vir. Consumidas pelo medo. Clamando por perdão.
Himmler viu tudo aquilo. Era brutalizante. O que o levou à meditação.
A desgraça, o ódio e o desamor eram desmedidos. Eis a conclusão.
Chocado com tudo isso, de volta a Berlim, Himmler reportou o que viu e sentiu ao Führer. Que entendeu a mensagem e providenciou solução. Não por ser sensível por ser artista ou pintor. Mas por interpretar as externalidades negativas daquele despautério, desumano e desumanizador, sobre o próprio Reich. Que poderia ver seus oficiais delirarem. O que já acontecia. E produzir sinistros nefastos na saúde mental da tropa. Que, malgrado jovem, sabia e sentia o que fazia.
A demanda de Himmler era por métodos “mais humanos”. A solução era criar alternativas. Quem sabe, até mais baratas. Hitler sugeriu o gás. Para ele, mais ameno e profilático. Incumbiu-se, assim, Reinhard Heydrich para materializar a solução.
O mês ainda era agosto. O ano, 1941.
Reinhard Heydrich consultou Viktor Branck, responsável pelos experimentos com gás desde 1939. Sim: desde 1939 que os alemães assassinavam judeus em casas da morte em Hartheim, Sonnenstein, Hadamar, Bernburg Grafeneck e Brandenburg.
Viktor Branck atestou ser possível sofisticar e aumentar a escala do experimento. Mas a custo de recursos e logística. O que impôs uma reunião interministerial que teria lugar na conferência de Wannsee em fins de 1941.
Essa conferência reuniu apenas tecnocratas. Quinze ao todo. Todos representantes de ministérios relevantes do Reich. Que sabiam, intelectual e tecnicamente, do que se tratava. E, forjados em sinergia, planificaram a solução.
A nota final da conferência foi enviada ao Führer no dia 20 de janeiro de 1942. Dela constavam todos os detalhes. Que foram imediatamente aprovados e mandados obrar. Como slogan, “solução final”. Foi aí que surgiu a expressão. “Solução final às populações judaicas”.
Prender, confinar, gaseificar.
Os olhos de Hitler reluziam. O seu semblante também. O seu prazer era incontido. Ele sabia se tratar de um verdadeiro turning point na evolução do Reich. A sua compleição humana começava a se transfigurar.
Prender, confinar, gaseificar.
“Solução final”.
Hitler não tinha palavras para expressar gratidão. E, por isso, apenas disse: “cumpra-se”. Mas não simplesmente no Leste da Europa. Mas em toda parte. Notadamente na “deutsches Einfluβgebient in Europa” [esfera de influência alemã na Europa]. Que envolvia toda a Europa e todos os domínios europeus no Norte da África.
Fez-se, assim, Belzec, Sobibor, Treblinka, Kulmohof, Majdank, Auschwitz, Birkenau. Vagões e mais vagões de judeus foram nesses campos desembarcados. 5.700.000 foram exterminados.
Impossível esquecer. Insuportável relembrar.
Never more.
Publicado no Jornal da USP.
*Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP e professor na Universidade Federal da Grande Dourados.