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Zelensky foi a Washington com intenção de garantir o apoio de Trump em troca dos minérios da Ucrânia, mas se mostrou despreparado em diversos sentidos.
A visita do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, à Casa Branca, não saiu conforme o planejado — ou pelo menos, não conforme ele teria planejado. A conferência de imprensa entre Zelensky e Donald Trump produziu cenas, digamos, extraordinárias, quando a coletiva se transformou em bate-boca, com Trump acusando Zelensky de “apostar com a terceira guerra mundial” e o vice-presidente americano, J. D. Vance, perguntando a ele se “Você já disse obrigado uma vez?”.
“Ou você faz um acordo ou estamos fora”, disse Trump. Vance acusou o ucraniano de “litigar na frente da mídia americana” e disse que sua abordagem foi “desrespeitosa”. “Ele pode voltar quando estiver pronto para a paz”, disse Trump, com sua secretaria de imprensa acrescentando que o líder ucraniano e sua comitiva foram convidados a deixar a Casa Branca após a confusão no Salão Oval.
Trump há tempos critica os bilhões que os Estados Unidos enviaram à Ucrânia depois da invasão russa, e prometeu acabar com a guerra “em um dia” assim que assumisse o cargo. Em 12 de fevereiro, ele falou com o presidente russo Vladimir Putin por telefone, iniciando negociações sem envolver a Ucrânia ou a União Europeia, o que irritou Kiev e chocou lideranças europeias.
Zelensky e os europeus insistiram com Trump para dar garantias de segurança para um cessar-fogo, assegurando que haveria consequências se um dos lados o rompesse, mas Trump se recusou a oferecê-las, dizendo que Putin o “respeita o suficiente” para não quebrar nenhum acordo.
No entanto, de acordo coma alguns analistas, a altercação entre Trump e Zelensky pode ter sido chocante, mas não inesperada. Brian Finucane, do International Crisis Group (ICG), disse que sempre foi provável que a reunião de sexta-feira fosse tensa. “O desempenho do presidente e do vice-presidente no Salão Oval foi sem precedentes, mas não totalmente surpreendente, dados os sentimentos bem conhecidos do presidente Trump sobre o apoio militar dos EUA à Ucrânia e a narrativa sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia que ela promoveu”, disse ele.
O cientista político ucraniano Volodymyr Fesenko, diretor do Centre for Political Studies “Penta” disse à AFP que havia diversos indícios e ações dos Estados Unidos que indicavam que poderia haver uma ruptura. A lista inclui a pressão dos EUA sobre a Ucrânia, a forma como as autoridades americanas falam de Zelensky, a avaliação de Washington sobre o conflito e a atitude do país em relação às negociações de trégua. “Tudo isso mostra que essa ruptura, essa explosão, estava fadada a acontecer mais cedo ou mais tarde”, disse ele.
O que virá a seguir não está claro, mas pode ser um mau presságio para a Ucrânia, disse Finucane. “Há rumores no governo de que ele pode reduzir as remessas de armas para a Ucrânia atualmente em andamento sob a autoridade de retirada presidencial”, disse ele. Essas remessas foram aprovadas por Joe Biden quando estava deixando a presidência, no que pareceu ser uma tentativa de consolidar bilhões em ajuda adicional antes que Trump assumisse o cargo.
Depois do tumulto no Salão Oval, Zelensky admitiu em entrevista à Fox News que seria “difícil” para a Ucrânia conter as forças russas sem apoio americano. No entanto, ele acrescentou que acreditava que o relacionamento com Washington ainda poderia ser salvo, mas que ele gostaria que Trump estivesse “realmente mais do nosso lado”.
Na Europa, os acontecimentos de sexta-feira foram vistos com alarme, com várias potências europeias, incluindo França, Alemanha e Grã-Bretanha, rapidamente reiterando seu apoio à Ucrânia. Líderes europeus imediatamente tuitaram seu apoio a Zelensky. Alguns, inclusive, parecem ter usado frases e expressões idênticas ou muito semelhantes, o que poderia sugerir uma coordenação.
A chefe de política externa da UE, Kaja Kallas, questionou a liderança americana na Aliança Transatlântica, ao declarar que “Hoje, ficou claro que o mundo livre precisa de um novo líder. Cabe a nós, europeus, aceitar esse desafio”, escreveu ela no X, a rede social de Elon Musk.
Diversos líderes europeus devem se reunir em Londres no domingo, 2 de março, para discutir a guerra na Ucrânia, e uma cúpula europeia para discutir a Ucrânia também foi convocada para 6 de março pelo presidente do Conselho Europeu, António Costa.
O bate-boca público evidencia as diferenças entre os governos Trump e Zelensky sobre o “acordo de minerais”. Esse acordo, ao menos da forma como é conhecido, parece mais um memorando de intenções que deixa várias questões importantes para serem resolvidas mais tarde. O acordo prevê a criação de um “fundo de investimento de reconstrução”, de propriedade e administração conjunta pelos EUA e a Ucrânia.
Segundo o acordo, 50% da receita da exploração de “todos os ativos relevantes de recursos naturais de propriedade do governo ucraniano (sejam de propriedade direta ou indireta do governo ucraniano)” e “outras infraestruturas relevantes para ativos de recursos naturais (como terminais de gás natural liquefeito e infraestrutura portuária)” iriam para esse fundo. Isso dá abertura para que infraestruturas privadas se tornem parte do acordo. Se for o caso, é de se esperar que isso aumente o atrito entre Zelensky e alguns oligarcas ucranianos muito poderosos.
No entanto, as contribuições dos EUA não são claramente definidas. O preâmbulo do acordo deixa claro que a Ucrânia já deve dinheiro aos Estados Unidos. O primeiro parágrafo observa que “os Estados Unidos da América forneceram apoio financeiro e material significativo à Ucrânia desde a invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022”. Este valor, de acordo com Trump, chega a US$ 350 bilhões; e de acordo com o Ukraine Support Tracker do Kiel Institute for the World Economy, é cerca de metade disso.
Alguns dizem que pode haver menos depósitos minerais e de terras raras na Ucrânia do que se supõe, já que muitas estimativas ainda são baseadas em dados da era soviética. Qualquer que seja o caso, estima-se que pelo menos 40% desses recursos encontram-se em territórios agora controlados pela Rússia. Como o rascunho deixou detalhes sobre propriedade, governança e operações a serem determinados em um futuro acordo de fundo, novas rodadas de negociações seriam de qualquer forma inevitáveis.
O compromisso dos EUA no acordo é tão vago que daria a Trump capacidade de influenciar de várias formas. Ele pode, por exemplo, usá-lo como uma ferramenta “morde e assopra” com a Ucrânia para obter condições sempre mais favoráveis para os EUA quanto aos retornos do fundo de investimento. Poderia usá-lo para pressionar a Europa a aumentar os gastos com defesa, já que os europeus insistem em garantias de segurança para a Ucrânia. De qualquer modo, a briga na Casa Branca certamente causou ainda mais danos ao relacionamento transatlântico.
Em última análise, a “Ucrânia livre, soberana e segura” prevista pelo acordo parece muito longe de ser algo garantido.
O que a discussão pública na Casa Branca deixou claro, no entanto, foi o despreparo Zelensky ao lidar com a situação. Espera-se que, antes de um encontro de alto nível entre governantes, suas equipes já negociaram e acertaram todos os detalhes com antecedência, portanto esse desacordo público não deveria ocorrer. Além disso, uma declaração conjunta entre dois líderes, com presença da imprensa, deveria, supostamente, ter sido previamente acordada. É claro que os bastidores não são conhecidos. Toda essa negociação prévia pode ter ocorrido e Zelensky pode ter caído em uma armadilha diplomática; ou talvez seus assessores o tenham alertado e ele os tenha ignorado. Não saberemos de todo os detalhes tão cedo. Qualquer que seja o caso, a forma como Zelensky lidou com a situação mostram um homem despreparado, muito longe da imagem de estadista projetada pela grande mídia e pela União Europeia. E isso também diz alguma coisa sobre a liderança atual da Europa.