Com Trump, os Estados Unidos continuarão impondo sua vontade hegemônica tanto aos seus aliados quanto aos seus inimigos, sob o pretexto de “defender a ordem mundial baseada em regras”.
As notícias que vem dos campos de batalha da Ucrânia são consistentemente ruins para o regime de Kiev. Apesar de tentativas anteriores de negar os fatos, o Ocidente começou lentamente a aceitar que a tão alardeada contraofensiva terminou em desastre. A Ucrânia não publica números sobre suas perdas militares, mas, de acordo com estimativas independentes, perdeu até 100.000 homens na fracassada ofensiva de Kursk.
Quando o estado geral de degradação do Exército ucraniano vem à tona, começa o jogo de culpa. O último artigo do The Washington Post é um bom exemplo da mudança de tom. O jornal americano tende a culpar os ucranianos, enquanto os ucranianos criticam seus patrocinadores ocidentais ou uns aos outros, dependendo da situação. A Europa ainda não entrou no jogo de culpa, mas no devido tempo certamente criticará as ações dos ucranianos.
Paralelamente a esta realidade que tentamos mostrar aos nossos leitores, com uma visão objetiva, profissional e realista, observamos uma crescente deslegitimação da legalidade internacional que abre espaço para um mundo sem regras, onde só se aplica uma lei: o dos mais fortes.
Os argentinos sabem bem disso. Para não recuar muito no tempo e ser breve, em 16 de dezembro de 1965 a Assembleia Geral aprovou a Resolução 2065 através da qual reconheceu a existência de uma disputa de soberania entre a Argentina e o Reino Unido e convidou ambos os países a negociar para encontrar uma solução pacífica para a disputa. Essa resolução foi seguida por muitas outras até 2025. O Reino Unido, como faz há séculos, não cumpre nenhuma delas. A lei do mais forte.
O ano de 2024 nos mostrou uma verdade perigosa. Ele nos confirmou que o chamado Ocidente rico, que afirma respeitar o direito internacional, pode violá-lo à vontade e deixar que seus aliados façam o mesmo.
Essa deslegitimação imprudente do direito internacional ocorre no contexto de um tenso conflito sobre a redefinição dos equilíbrios globais.
Para combater a Rússia e a China, os Estados Unidos adotaram a narrativa de “defender a ordem mundial baseada em regras”, um slogan ecoado pelos europeus diante da operação militar especial da Rússia na Ucrânia.
Mas o apoio incondicional fornecido por Washington e muitos países do velho continente ao extermínio da população de Gaza expôs os duplos padrões do Ocidente na aplicação das normas internacionais. Os argentinos também sabem disso muito bem, pois acompanham diretamente o que aconteceu em Gaza por meio de um compatriota digno de honra e respeito, de quem raramente se fala. Assista “Uno tiene que tragarse las lágrimas y tratar de ser un signo de esperanza para todos”: o cotidiano do padre argentino Gabriel Romanelli em Gaza (veja em https://www.bbc.com/mundo/articles/cwy3k1kyn1no).
No momento em que este artigo é escrito, uma notícia impactou o mundo: a guerra em Gaza acabou? É anunciado um cessar-fogo entre o Hamas e Israel, mediado pelo Catar, Egito e Estados Unidos. Mas horas depois lemos no La Prensa: “O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, garantiu que houve uma ‘crise de última hora’ com o grupo terrorista Hamas, razão pela qual a libertação dos reféns e o cessar-fogo estão atrasados.” No entanto, acreditamos que isso não encerra a questão palestina, não garante um estado seguro para os árabes da Terra Santa e não resolve o problema subjacente. Neste sentido, depois de a guerra ter provocado o desaparecimento de pelo menos 5% da população da Faixa (mais de 120 mil pessoas) entre mortes diretas e aquelas imputáveis às consequências sanitárias e sociais do conflito, a situação no Oriente Médio continuará muito complexa.
Diante da ascensão de um mundo multipolar, os Estados Unidos demonstraram estar dispostos a defender sua supremacia por todos os meios, primeiro com aventuras militares no Iraque e no Afeganistão, depois com intervenções “proxy” em países como a Líbia, a Síria, o Iêmen e o Iraque, provocando assim a Rússia, cuja invasão da Ucrânia permitiu a Washington dividir novamente o velho continente em dois, criando uma nova Cortina de Ferro que restabeleceu a dependência dos países europeus em relação aos Estados Unidos.
A ascensão da China foi contra-atacada pela imposição de tarifas, desacoplamento, restrições à exportação de tecnologias avançadas e cerco militar no Pacífico.
De acordo com nossa análise, a tão alardeada ascensão de Trump à presidência dificilmente trará grandes mudanças nesse curso geral. A guerra na Ucrânia não terminará tão rápido quanto alguns asseguram.
Voltando ao tema da nossa coluna sobre a lamentável, longa e irrestrita guerra europeia, podemos ressaltar, recorrendo aos clássicos, que não podemos perder de vista o objetivo final da Anglosfera: controlar a Eurásia.
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A caminho da guerra: Os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides?
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Desde os tempos de Alfred Thayer Mahan, Halford Mackinder e depois Zbigniew Brzezinski, até hoje, a obsessão primeiro do Império Britânico e depois dos Estados Unidos (ou seja, a Anglosfera) tem sido impedir a integração da Eurásia à sombra de uma potência hegemônica opositora.
Inclusive ainda hoje, essa é a visão dominante dentro do establishment americano: a batalha contra a China, a Rússia e o Irã representa o novo capítulo nessa eterna competição pelo controle da massa eurasiana e, portanto, pela hegemonia mundial.
Aos olhos da maioria dos estrategistas americanos, este é um “jogo de soma zero”. Embora neste século, como no anterior, Washington tenha liderado de longe o caminho no uso de violência militar desproporcional, eles veem o mundo como um teatro em que a única alternativa ao domínio unipolar americano é uma confusão perigosa em que não há hipótese de coexistência pacífica.
A chegada de Trump à Casa Branca mudaria essa abordagem básica apenas marginalmente. Por quê? Lembremos que alguns slogans trumpistas como “Make America Great Again” ou “peace through strength” ainda são fórmulas de natureza hegemônica.
Mesmo na visão trumpista, são os EUA que continuam a ditar os termos da “paz”, possivelmente não através do uso da força militar direta, mas através do uso de proxies, coerção econômica e, em última análise, o instrumento de intimidação do poder militar excessivo dos EUA, que na visão de Trump deve ser preservado a qualquer custo.
Uma nova “Doutrina Monroe”
Analisada dessa perspectiva, a abordagem trumpista nada mais é do que a evolução natural do pensamento estratégico americano nas últimas décadas, que passou das intervenções militares diretas de George W. Bush para a “liderança por trás” e o “equilíbrio offshore” de Barack Obama.
De qualquer forma, são as prioridades que estão mudando: não mais a Rússia, mas a China, que pode ser enfraquecida por uma guerra econômica e talvez por ter como alvo um importante parceiro energético como o Irã.
Mas, acima de tudo, um foco renovado no continente americano por meio da definição de uma nova “Doutrina Monroe”, visando restabelecer o controle sobre o continente, visto por Trump como a esfera natural de influência dos Estados Unidos. Um clássico.
A frase “América para os americanos” representava as aspirações americanas de fazer de seus irmãos no continente seu próprio “quintal”. Vários latino-americanos refutaram esta tese: “América para os americanos significa, em inglês simples, a América para os ianques, que estão claramente destinados a dominar todo o continente.”
Declarações recentes do novo presidente apontam nessa direção, segundo as quais o Canadá deveria se juntar aos EUA como o 51º estado, e Washington deveria comprar a Groenlândia e retomar o controle do Canal do Panamá.
Embora absurdas à primeira vista, essas declarações não devem ser menosprezadas, pois sinalizam o desejo de Trump de conter o declínio dos EUA por meio de uma nova projeção externa do poder americano (embora isso ainda precise ser definido concretamente).
O interesse pela Groenlândia, por exemplo, não é nada incomum. Esta vasta ilha é rica em cobalto e outros minerais essenciais para a chamada “transição ecológica”, bem como petróleo e gás. E domina o Oceano Ártico, que, com o derretimento do gelo, começa a adquirir importância estratégica para as rotas marítimas globais.
Os Estados Unidos já têm uma grande base militar (Base Pituffik) na Groenlândia, um elemento-chave de seu sistema global de detecção de potenciais ataques com mísseis (mas também um potencial ponto de lançamento para ataques com mísseis contra a Rússia), embora a ilha esteja sob soberania dinamarquesa.
Mas o que causou ainda maior sensação foram as declarações de Trump há alguns dias, segundo as quais não descartou o uso da força militar para tomar o controle da Groenlândia e do Canal do Panamá (enquanto com o Canadá se limitaria a medidas de coerção econômica).
O elemento mais relevante que pode ser extraído de tais declarações é o desrespeito explícito à legalidade internacional, diferentemente da administração anterior, onde esse desrespeito, embora igualmente evidente, permaneceu implícito.
O outro elemento, que pode ser deduzido do coro unânime de protestos vindos de autoridades do Panamá, Canadá, Dinamarca e outros países europeus, é que Trump criará problemas tanto para os aliados dos Estados Unidos quanto para seus adversários.
Sob o comando de Trump, os Estados Unidos continuarão a tentar pôr fim ao seu declínio e à sua crise interna, impondo sua vontade hegemônica tanto aos seus parceiros quanto aos seus inimigos.
Por fim, não podemos deixar de destacar a importância estratégica do Atlântico Sul e da Antártida. Meus leitores perguntarão: por que você não diz nada sobre isso? E infelizmente devo lembrar que a Anglosfera já controla o Atlântico Sul através de sua base militar em Monte Agradable, nas Ilhas Malvinas, usurpada desde 1833, com uma presença crescente e ascendente cada vez mais evidente. Ou seja, “América (do Ártico ao Atlântico Sul) para os americanos do norte”.
Publicado no La Prensa.