Câmeras corporais mentem? Evidências inéditas sobre limitações tecnológicas e a percepção humana

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Imagem gerada por inteligência artificial.

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Embora desempenhem papel relevante na modernização das práticas policiais, as câmeras corporais possuem limitações que requerem investimentos na “alfabetização” em vídeo, capacitando as partes envolvidas a compreenderem as limitações tecnológicas e contextuais dos equipamentos.


O presente estudo, baseado em artigos científicos recentes, apresenta evidências inéditas de que os vídeos de câmeras corporais (BWC, Body-Worn Camera) não capturam todas as informações disponíveis para os policiais durante incidentes críticos. Por meio da comparação entre gravações de BWCs e dos padrões de fixação visual e movimento ocular de policiais em cenários simulados, ficou demonstrado que as BWCs capturam apenas 66% dos incidentes críticos, enquanto dispositivos de rastreamento ocular registraram 80,5%.

Estas descobertas evidenciam as limitações das BWCs, incluindo seu campo de visão restrito e a ausência de percepção e cognição situacional do policial em ação. O estudo, pela primeira vez, comprova, de forma definitiva, as lacunas existentes na perspectiva fornecida pelas BWCs.

Adicionalmente, foi identificado que a maioria dos advogados, acadêmicos, juízes, promotores, jornalistas, membros da mídia e até comandantes policiais frequentemente desconhecem as diferenças fundamentais entre a tecnologia de gravação e a experiência humana. Sem este conhecimento, os vídeos podem oferecer uma interpretação distorcida e frequentemente incorreta de eventos policiais que envolvem o uso da força. A divulgação isolada de imagens pelas mídias, sem considerar o contexto completo e os fatores envolvidos, pode levar à condenação imediata e, quase certa, injusta de policiais, minando tanto a confiança da comunidade na Polícia quanto a equidade nas investigações.

O estudo destaca, portanto, a importância de treinamento contínuo e de “alfabetização” em vídeo, com foco na conscientização sobre as limitações das BWCs e nas diferenças entre a tecnologia e a percepção humana, para garantir que análises de filmagens sejam precisas, justas e contextualizadas, promovendo maior confiança entre a sociedade e as forças policiais.

Introdução

Câmeras corporais (BWC) são amplamente difundidas como ferramentas indispensáveis na modernização das práticas policiais, proporcionando um registro visual das interações entre os agentes e a comunidade. Além de aparentarem aumentar a transparência, as BWCs também desempenham um papel crucial na promoção da responsabilização, especialmente em incidentes envolvendo o uso da força. Contudo, como apontado por Granot et al. (2014) e Kahan et al. (2008), as gravações capturadas por BWCs não oferecem uma representação completa e objetiva dos eventos e estão, portanto, sujeitas a interpretações enviesadas.

Estudos têm demonstrado que a percepção das filmagens de BWCs varia significativamente entre os espectadores, sendo influenciada por predisposições ou julgamentos prévios em relação à polícia e seu comportamento. A perspectiva fixa das BWCs, combinada com seu campo de visão limitado, frequentemente deixa lacunas interpretativas que podem comprometer a avaliação precisa de incidentes. Embora extensivamente utilizadas em sistemas judiciais, pela opinião pública e pelas próprias autoridades policiais, tais ferramentas tecnológicas nem sempre fornecem uma visão isenta de erros no julgamento feito por alguém não diretamente envolvido no “calor do momento”.

Trabalhos recentes ressaltam que os espectadores tendem a interpretar os eventos registrados pelas BWCs de maneiras distintas, dependendo do campo de visão limitado da câmera e de seus próprios vieses. Por exemplo, Turner et al. (2019) demonstraram que as filmagens de câmeras corporais e câmeras de painel podem gerar conclusões díspares entre os observadores. Somam-se a isso estudos como os de Ware et al. (2008), que sugerem que o foco da câmera pode influenciar os julgamentos, direcionando a atenção para um suspeito específico. Entretanto, pesquisas também indicam que instruções para considerar igualmente as ações do policial e do civil podem mitigar vieses nesses julgamentos (Sternisko et al., 2017).

Além disso, as BWCs não capturam integralmente os processos perceptivos, cognitivos e afetivos dos policiais. Durante incidentes críticos, os policiais precisam tomar decisões rápidas e eficazes com base em informações visuais e comportamentais limitadas, frequentemente em condições de alta pressão. Como Andersen e Gustafsberg (2016) destacaram, a capacidade de avaliar ameaças em cenários mutáveis e dinâmicos depende de habilidades perceptivas e treinamento assaz especializado.

Adicionalmente, observa-se que uma parcela significativa dos profissionais envolvidos no processo judicial – advogados, acadêmicos, juízes, promotores – assim como jornalistas, membros da mídia e até comandantes policiais, frequentemente desconhece as diferenças fundamentais entre a tecnologia de gravação e a experiência humana. Sem compreender essas diferenças, os vídeos capturados pelas BWCs podem ser interpretados de forma inadequada, oferecendo uma visão distorcida dos eventos em questão. Quando divulgadas isoladamente, sem considerar o contexto completo e os fatores envolvidos, essas imagens podem levar à condenação imediata e, logo, injusta de policiais, comprometendo a confiança da comunidade e a equidade nas investigações.

As decisões policiais em situações críticas são profundamente influenciadas por dinâmicas neurobiológicas. Em momentos de alto estresse, ocorre o predomínio da amídala, responsável por reações instintivas voltadas à sobrevivência, muitas vezes descrito como “sequestro da amídala” (Heal, 2018). Durante essas situações, o neocórtex, responsável pelo processamento racional, é temporariamente suprimido. Policiais em campo precisam reagir em milissegundos, tomando decisões intuitivas e rápidas baseadas em experiências anteriores.

Todavia, os avaliadores de vídeos operam em um contexto calmo e racional, utilizando predominantemente o neocórtex. Essa diferença entre o instinto rápido e prático, embora treinado, e a análise calma e distante pode levar à desconsideração do contexto emocional e cognitivo em que as decisões policiais foram tomadas. Ora, isto é muito grave, pois julga a ocorrência toda – incluindo vidas humanas (do policial e dos demais envolvidos, direta ou indiretamente) – pela parte, isto é, o que se vê na câmera.

Como argumentado por Racorti e Reis (2022), decisões em incidentes críticos são fortemente moldadas por repertórios de experiências construídas ao longo da carreira, destacando a importância de treinamentos realistas e contínuos a fim de preparar os agentes para situações de alto risco. Inclusive, avaliadores externos tendem a minimizar a percepção de risco vivenciada pelos policiais, uma vez que possuem tempo e recursos extras para revisar os eventos, muitas vezes desconsiderando a pressão vivida no momento da ação.

Essas dinâmicas neurobiológicas, juntamente com as limitações das BWCs, apontadas por pesquisadores como o dr. Bill Lewinski, evidenciam a incapacidade dessas tecnologias de capturar integralmente o contexto visual, tátil e emocional das interações policiais. As gravações das BWCs não refletem, por exemplo, fenômenos perceptivos, como a percepção alterada de ameaças em situações de estresse (“looming”), e não registram pistas sensoriais táteis, como a resistência física de um suspeito. Cabe destacar, problemas técnicos como campo de visão limitado, gravação em 2D e carimbos de tempo (“timestamps”) imprecisos podem comprometer ainda mais a avaliação justa dos eventos.

Este estudo explora as diferenças entre a perspectiva fornecida pelas BWCs e os padrões de busca visual e tomada de decisão dos policiais durante incidentes críticos. O objetivo é compreender como as limitações das BWCs e as influências neurobiológicas impactam a avaliação de incidentes e destacar a importância de treinamentos realistas e contínuos, além da “alfabetização” em vídeo. Essas iniciativas são essenciais para garantir análises precisas, justas e contextualizadas, promovendo maior confiança entre a sociedade e as forças policiais.

Método

Participantes: o estudo contou com a participação de 44 policiais em atividade, com idades variando entre 32,86 ± 7,2 anos, e tempo de experiência de sete semanas a 23 anos, apresentando uma média de 7,05 ± 6,16 anos.

Procedimento: Ao chegarem, os policiais preencheram um termo de consentimento informado e foram orientados sobre os objetivos do estudo. Em seguida, equiparam-se com dispositivos de rastreamento ocular e câmeras GoPro, além de usarem equipamentos padrões de treinamento. Cada policial participou de um cenário de uso de força simulada, envolvendo dois participantes ativos e quatro instrutores que desempenharam papéis previamente definidos como atores.

O cenário, com duração aproximada de 15 minutos, consistiu em um acidente envolvendo um policial fora de serviço e um motorista agressivo, que, em dado ponto, se tornou hostil e armado. Entre os atores, havia o passageiro do carro do agressor, o motorista que iniciou o conflito e outro motorista que interveio para auxiliar.

Os participantes foram instruídos a agir conforme seu treinamento e experiência, buscando controlar o motorista e resolver o conflito. À medida em que a situação evoluía, o motorista agressivo se tornava mais agitado, culminando no disparo de uma arma de fogo contra o outro motorista e/ou policiais.

Todos os participantes iniciaram o exercício no mesmo local, garantindo consistência nos testes, do quais os atores mantiveram comportamentos semelhantes em todos os cenários. Durante o exercício, os policiais tinham liberdade para reagir de acordo com seu julgamento, empregando medidas defensivas ou ofensivas, ou seja, poderiam revidar os tiros ou buscar proteção.

Os movimentos oculares foram monitorados utilizando dois dispositivos de rastreamento ocular infravermelhos: óculos Tobii 3 Eye Tracking Glasses (50 Hz, Estocolmo, Suécia) e óculos Pupil-Labs Invisible (200 Hz, Berlim, Alemanha). O Tobii 3 possui uma precisão de 0,6 graus de ângulo visual, enquanto o Pupil-Labs Invisible apresenta precisão de 0,5 graus de ângulo visual. As imagens em vídeo capturadas pelos dispositivos de rastreamento ocular forneceram a perspectiva visual (POV, Point of view) dos policiais. Adicionalmente, câmeras corporais GoPro Hero8, montadas no peito dos policiais, registraram um campo de visão amplo de 133 graus, utilizando a configuração digital.

Ambos os dispositivos de rastreamento ocular e a GoPro estão equipados com Unidades de Medição Inercial (IMU, Inertial measurement unit), que permitiram a extração de dados do giroscópio e informações de posição nos eixos X, Y e Z. Todos os dados foram sincronizados com base em um sinal de áudio de 48 KHz. O giroscópio dos dispositivos de rastreamento ocular forneceu dados sobre os movimentos da cabeça, entretanto, o giroscópio da câmera corporal capturou informações sobre a orientação do corpo e a direção relativa da câmera. Esses giroscópios medem a velocidade angular em três eixos: inclinação (X), rotação (Y) e guinada (Z), enquanto os dados de aceleração registram mudanças de velocidade nas mesmas direções.

Os vídeos capturados pelas câmeras corporais e pelos dispositivos de rastreamento ocular foram analisados para avaliar o comportamento dos policiais, incluindo a atenção visual, a natureza e a velocidade de suas respostas às mudanças no cenário, além da rapidez com que resolveram a situação. Essas análises foram posteriormente comparadas com as respostas fornecidas pelos policiais em questionários.

Todos os dados foram sincronizados desde o início até o término dos cenários, que concluíam com o uso da força (Figura 1). Incidentes críticos foram previamente definidos e incluídos nos cenários. Dois avaliadores independentes analisaram os incidentes, considerando tanto as gravações das câmeras corporais quanto os locais de fixação visual registrados pelos dispositivos oculares. Um incidente crítico foi contabilizado para o rastreamento ocular apenas se o policial mantivesse o olhar fixado no evento por pelo menos 100 ms. O software iMotions [1] foi utilizado para pós-processamento, sobrepondo automaticamente os tempos de fixação no vídeo.

Os incidentes críticos incluíram: mulher saindo de um caminhão (1), primeiro impacto de bastão no caminhão (2), queda do bastão (3), testemunha arremessando uma garrafa de vidro (4), suspeito recuperando uma arma (5) e suspeito efetuando disparos (6). Ambas as perspectivas foram pontuadas, e uma pontuação total de incidentes foi calculada para cada cenário e visão dos policiais. A concordância entre os avaliadores foi elevada, com índice de correlação rWG = 0,95.


Figura 1: Imagens sincronizadas das câmeras corporais e oculares.

Análise de Dados

As informações capturadas pelos rastreadores oculares incluíram as coordenadas dos pontos de fixação (x e y), dados de aceleração relativos aos movimentos oculares e dos dispositivos de rastreamento, além dos dados do giroscópio nos eixos x, y e z. De forma semelhante, as câmeras corporais GoPro forneceram dados de aceleração e informações do giroscópio e acelerômetro nos mesmos eixos. Todos os dados foram analisados visualmente, e valores discrepantes ou registros inválidos foram excluídos.

Para avaliar a consistência entre as medições comparáveis (como coordenadas do giroscópio entre os rastreadores oculares e a GoPro), utilizou-se o Coeficiente de Correlação (CC) e o Erro Quadrático Médio (RMSE, Root Mean Square Error). Esses indicadores também mediram o deslocamento em relação ao ponto central (zero) dos dados do giroscópio nos eixos x, y e z. Pontuações mais altas de erro indicam maior desvio do ponto de referência. As diferenças entre as perspectivas capturadas pelas câmeras corporais e pelo foco visual foram analisadas utilizando o software JMP PRO 14.0 (SAS Institute; Cary, NC). A análise considerou as porcentagens de eventos observados (fixados ou não) em comparação com aqueles capturados (ou não) pelas BWCs, além de dados ausentes.

Foi realizada uma MANOVA [2] de medidas repetidas para os incidentes críticos pré-definidos, que incluíram: mulher saindo do caminhão (1), primeiro impacto de bastão no caminhão (2), queda do bastão (3), testemunha arremessando uma garrafa de vidro (4), suspeito recuperando uma arma (5) e suspeito efetuando disparos (6). Para uma análise mais detalhada, conduziu-se uma ANOVA [2] de medidas repetidas para cada incidente individualmente.

Resultados

Os coeficientes de correlação foram calculados entre as coordenadas do giroscópio e os dados do acelerômetro (Accel) fornecidos pelos rastreadores oculares e pela GoPro. Os resultados dessas análises, apresentados na Tabela 1, indicaram que nenhuma das comparações entre os dados do giroscópio foi estatisticamente significativa. Contudo, os dados do acelerômetro mostraram correlações significativas, com os valores mais elevados registrados na direção z.


Tabela 1: Comparação de Erro Quadrático Médio (RMSE) e Coeficientes de Correlação entre os Dados do Óculos Rastreador Ocular e da Câmera GoPro.

 Em geral, 80,5% dos incidentes críticos foram registrados pelos dados oculares, entretanto, apenas 66,2% foram capturados pelas câmeras corporais (BWCs), conforme apresentado na Tabela 2.


Figura 2: Taxas de Erros x Acertos.

Sobretudo, os resultados da MANOVA para a porcentagem de incidentes críticos revelaram um efeito significativo (Lambda de Wilks = 0,535, F(6, 29) = 4,196, p < 0,01).

A análise de acompanhamento com ANOVA destacou efeitos principais significativos em diversos eventos críticos: mulher saindo do caminhão (p<0,01, η²=0,156), primeiro impacto do bastão no caminhão (p<0,01, η²=0,138), queda do bastão (p<0,01, η²=0,164), suspeito recuperando a arma (p<0,001, η²=0,210) e suspeito disparando a arma (p<0,001, η²=0,294), conforme ilustrado na Figura 3.


Figura 3: Diferença percentual entre a filmagem das BWCs e a Visão Humana.

Discussão

Os resultados confirmaram que as câmeras corporais (BWCs) apresentaram uma perspectiva limitada, falhando em registrar pelo menos 33% dos incidentes críticos. Adicionalmente, verificou-se um aumento considerável nos movimentos da cabeça dos policiais durante o instante que monitoravam o ambiente e identificavam sinais comportamentais de possíveis ameaças.

Apesar de capturar 66% dos eventos críticos, as BWCs não conseguiram registrar informações fundamentais, sobretudo em dois eventos que influenciaram diretamente a resposta policial: “suspeito recupera arma” (74% contra 48%) e “suspeito dispara a arma” primeiro (80% contra 45%). Também foi evidenciado que as BWCs não refletem a habilidade dos policiais em identificar padrões comportamentais ao monitorar o ambiente e gerar respostas adequadas ao contexto.

Os dados de Erro Quadrático Médio e as correlações do giroscópio demonstraram uma maior movimentação da cabeça em comparação ao corpo, evidenciando a limitação no campo de visão das BWCs. Embora os dados de acelerometria apresentassem correlações moderadas, essa consistência parece estar relacionada ao movimento simultâneo do corpo e da cabeça durante o cenário.

O processo de monitoramento visual dos policiais baseia-se majoritariamente no reconhecimento de padrões adquiridos por meio de treinamento, experiência e conhecimento tácito. Estudos anteriores, como os realizados por Nieuwenhuys e Oudejans (2011), Murray et al. (2023), Horn et al. (2023), e Vickers e Lewinski (2012), destacam que policiais experientes realizam tomadas de decisão táticas com base em informações cruciais, utilizando padrões de comportamento para definir ações adequadas. Aqueles com maior preparo tático optam por estratégias mais eficientes ao considerarem os resultados possíveis de suas ações. Assim, a fixação visual dos policiais é orientada pela tarefa em execução, o que direciona os processos de atenção.

As filmagens obtidas pelos óculos de rastreamento ocular e pelas BWCs diferiram consideravelmente entre os participantes, uma vez que os policiais agiram conforme seu treinamento e julgamento. Todos os cenários foram configurados para iniciar a partir do mesmo ponto, minimizando vieses. Embora fosse possível projetar situações onde elementos cruciais não estivessem visíveis pelas BWCs, as condições experimentais garantiram que os eventos críticos fossem potencialmente capturados tanto pelas câmeras quanto pelo olhar dos policiais.

As gravações das BWCs não capturam as estratégias visuais de busca utilizadas pelos policiais, levando os espectadores a interpretarem as imagens com base em seus conceitos já anteriormente formados e opiniões prévias sobre a atuação policial, como apontado por Granot et al. (2014) e Kahan et al. (2008). Isso pode gerar interpretações divergentes das intenções e ações dos policiais, como demonstrado por Turner et al. (2019) ao comparar diferentes perspectivas de filmagens. Apesar do seu valor na análise de incidentes, a dependência exclusiva das gravações das BWCs pode levar a conclusões distorcidas ou incompletas.

Decisões policiais sob estresse: a influência do neocórtex e da amídala em situações críticas

As diferenças entre o processamento racional do neocórtex e a reação emocional da amídala impactam as decisões policiais de diversas formas, especialmente em situações críticas:

1. Tomada de decisão instintiva x análise racional: Policiais em campo reagem instintivamente, com a amídala ativando respostas rápidas sob estresse. Em contrapartida, avaliadores analisam os eventos de forma calma e racional, utilizando predominantemente o neocórtex.

2. Diferenças na percepção de risco: A amídala amplifica a percepção de ameaças em situações de estresse, enquanto avaliadores podem minimizar esses fatores, desconsiderando o contexto de risco – de vida inclusive – vivenciado pelo policial.

3. Tempo para responder: Policiais decidem em milissegundos, enquanto revisores de vídeos têm minutos ou horas para avaliar detalhes que o policial não pôde considerar no momento. Quase se assemelharia ao crítico de futebol, que do conforto de sua cabine ou da arquibancada, nunca errou um pênalti. Afinal, tem o crítico a seu favor o conforto de que o jogador, em campo, não dispõe.

4. Impacto do treinamento: O treinamento busca criar respostas automáticas baseadas em padrões de ameaça, que podem ser mal compreendidas fora do contexto emocional e físico do evento.

Conforme descrito por Heal (2018), durante momentos críticos, o “sequestro da amídala” pode suprimir o uso de recursos do neocórtex, favorecendo uma resposta instintiva voltada à sobrevivência. Essa dinâmica neurobiológica, muitas vezes invisível para avaliadores que dispõem de tempo e contexto sereno para analisar os eventos, reforça a importância de considerar o estado emocional e as limitações cognitivas enfrentadas pelos policiais no momento da decisão. Tais fatores podem gerar julgamentos rápidos e intuitivos baseados em experiências passadas, entretanto, o neocórtex de avaliadores externos opera em um ambiente de maior racionalidade e calma.

Essas diferenças neurobiológicas devem ser levadas em conta por tribunais e revisores ao avaliar ações policiais, reconhecendo os desafios únicos enfrentados por agentes em campo (Heal, 2018).

Conforme argumentado no artigo Processo de Tomada de Decisões em Incidentes Críticos: Como se Formam os Pensamentos e as Decisões em Momentos de Caos (RACORTI; REIS, 2022), decisões tomadas, em segundos, durante crises, frequentemente dependem de repertórios de experiências construídas ao longo da carreira, evidenciando a necessidade de treinamentos realistas e contínuos para preparar os agentes para situações de alto risco.

Limitações das câmeras corporais

O Dr. Bill Lewinski, diretor executivo do Force Science Institute, identificou 10 limitações cruciais das BWCs:

1. Campo de visão e percepção visual: As câmeras não acompanham os olhos do policial nem replicam sua percepção visual. Sob estresse elevado, fenômenos como looming podem alterar a percepção do policial;

2. Pistas sensoriais inexistentes: As câmeras não registram pistas táteis ou a experiência do policial, como a tensão resistiva de um suspeito;

3. Velocidade de reação: As gravações não capturam o tempo de reação do policial; o que pode ser mal interpretado por revisores;

4. Desempenho em condições de pouca luz: Câmeras podem capturar imagens mais claras que a visão humana, gerando suposições incorretas sobre o que o policial realmente viu;

5. Obstruções do corpo: Movimentos do policial podem bloquear a visão da câmera, obscurecendo momentos críticos;

6. Limitações de perspectiva: Câmeras gravam em 2D, não capturando profundidade de campo, o que pode gerar erros na avaliação de distâncias;

7. Registro de data e hora inadequados: Carimbos de tempo podem não ser suficientemente precisos para capturar eventos de alta velocidade;

8. Perspectivas limitadas: Uma única câmera, pode não fornecer uma visão abrangente. Múltiplas câmeras são preferíveis;

9. Tendência à reflexão retroativa: Filmagens incentivam uma “visão retrospectiva”, que pode distorcer o julgamento das ações do policial;

10. A importância de investigações completas: As câmeras não substituem uma investigação completa, que deve incluir testemunhas, perícias e depoimentos dos envolvidos.

“Alfabetização” em Vídeo

A “alfabetização” em vídeo é um componente essencial para garantir que vídeos capturados por câmeras corporais sejam analisados de maneira justa e precisa, promovendo uma compreensão mais abrangente e contextualizada dos incidentes policiais. Conforme observado por Eugene O’Donnell, “uma coisa que aprendemos sobre vídeos é que muitas vezes há peças faltando”. Esta observação destaca que gravações podem distorcer ou omitir informações cruciais, como a percepção de objetos que parecem mais próximos ou mais distantes do que realmente estão.

Von Kliem (2024) enfatiza que a responsabilização honesta exige que os avaliadores compreendam tanto as limitações tecnológicas quanto os contextos emocionais em que os vídeos foram capturados. Avaliadores frequentemente analisam as imagens de maneira racional, utilizando predominantemente o neocórtex, enquanto os policiais, em condições de alta pressão, atuam sob a intensa ativação da amídala, que influencia significativamente suas percepções e decisões.

Decisões relacionadas ao uso da força requerem mais do que a simples observação de gravações em vídeo. É necessário contextualizá-las com conhecimento sobre o treinamento policial, os desafios enfrentados em situações críticas e as limitações da percepção humana no caso em si. Especialistas em uso da força desempenham um papel fundamental nesse processo, oferecendo uma análise baseada em experiência prática e compreensão técnica. Contudo, muitas vezes, essas contribuições são subestimadas, levando a decisões tomadas sem o suporte adequado de profissionais capacitados.

A “alfabetização” em vídeo também demanda que os espectadores, incluindo promotores, juízes, acadêmicos, comandantes de polícia e delegados, não apenas compreendam as limitações das BWCs, mas também possuam familiaridade com práticas policiais, avaliações de ameaças, técnicas de pacificação e a complexidade do desempenho humano. No contexto de encontros críticos, é crucial entender que as gravações não podem substituir a experiência ou a percepção do policial no momento do incidente.

Os espectadores alfabetizados em vídeo devem reconhecer que a visão focada de um policial é limitada e nem sempre coincide com o que as câmeras capturam. Eles precisam estar cientes de que as lentes das BWCs podem distorcer a realidade, fazendo com que objetos ou pessoas pareçam mais próximos, mais distantes, mais rápidos ou mais lentos do que eram na realidade. Além disso, as câmeras podem oferecer uma visão em condições de pouca luz que não reflete a experiência visual do agente no local.

Um aspecto fundamental na análise de vídeos é garantir que a revisão seja realizada em condições semelhantes às vividas pelos policiais durante os incidentes. Gravações devem ser visualizadas em tempo real, sem câmera lenta, quadros congelados ou outros aprimoramentos que distorçam a percepção dos eventos em si. Essa prática permite uma avaliação mais próxima da realidade enfrentada, destacando também as limitações de quem analisa os vídeos sem estar presente na ocorrência. Lembre-se, por analogia, que da arquibancada ninguém erra um pênalti, mas em campo sim.

A percepção, a tomada de decisão e o desempenho humano são fortemente influenciados pelo estresse. Avaliadores precisam entender que, enquanto analisam vídeos em um ambiente controlado, os policiais tomam decisões rápidas e intuitivas, guiados pelo “sistema 1” de processamento cognitivo. Humanos interpretam o mundo por meio de significados emocionais e experiências sensoriais, tornando difícil a recordação exata de detalhes como distâncias, falas e frequência de ações em momentos de alta pressão.

Infelizmente, há situações em que as limitações das BWCs são ignoradas e as gravações são apresentadas como reproduções exatas do que os policiais sabiam ou deveriam saber no momento do incidente. Essa abordagem pode perpetuar desinformação, minando a confiança da comunidade, da justiça processual e da integridade das avaliações.

Portanto, é fundamental educar todas as partes envolvidas sobre as limitações das BWCs e promover a “alfabetização” em vídeo como uma ferramenta indispensável para análises justas e contextualizadas. Apenas com esse entendimento será possível garantir avaliações equilibradas que respeitem os desafios enfrentados pelos policiais, atendam às expectativas de transparência e promovam uma correta responsabilidade compartilhada entre as instituições de segurança pública e a sociedade.

Considerações

As câmeras corporais desempenham, sem dúvida, um papel relevante na modernização das práticas policiais, promovendo maior transparência e responsabilização. No entanto, este estudo evidencia que, apesar de sua utilidade, as BWCs possuem limitações consideráveis na captura dos processos perceptivos e cognitivos que orientam as decisões policiais em situações de alta pressão. Problemas como o campo de visão fixo, a incapacidade de registrar movimentos dinâmicos e a ausência de estímulos sensoriais reforçam a necessidade de análises criteriosas e contextualizadas das gravações para evitar interpretações equivocadas e até injustas.

Diferenças neurobiológicas, como a predominância da amídala em respostas instintivas sob estresse e o processamento analítico do neocórtex em contextos mais racionais, expõem os desafios enfrentados pelos policiais em momentos críticos. Essa disparidade é acentuada quando avaliadores externos revisam as imagens em condições descontextualizadas, com tempo e calma que os policiais não possuem no momento da ocorrência. Tal cenário ressalta a urgência de investir em “alfabetização” em vídeo, capacitando todas as partes envolvidas para compreender as limitações tecnológicas e contextuais das BWCs.

Hoje, há uma ampla discussão sobre a revisão de vídeos por policiais antes de redigir relatórios ou prestar depoimentos. Embora a prática seja debatida, pesquisas indicam que a revisão de vídeos e outros estímulos visuais ou auditivos podem ajudar a melhorar a memória de eventos estressantes e complexos, fornecendo um panorama mais detalhado para os envolvidos. Ainda assim, é importante lembrar que o vídeo é uma evidência complementar, não uma representação completa do que realmente aconteceu. Essa distinção é essencial para evitar que conclusões sejam formadas apenas com base nas imagens, ignorando todo o contexto e os fatores humanos que lhes são subjacentes.

É essencial que as instituições de segurança pública informem o grande público, a mídia e outros interessados sobre as limitações das BWCs durante análises públicas e coletivas de imprensa. O avanço de tecnologias, como câmeras acopladas a óculos, pode oferecer uma perspectiva mais alinhada à visão e experiência dos policiais em campo, possibilitando interpretações mais próximas da realidade operacional.

Embora as gravações em vídeo continuem sendo um recurso central nas investigações e processos judiciais, é fundamental desconstruir a crença errônea de que “o vídeo não mente”. Ignorar as limitações das BWCs, a complexidade das decisões sob estresse e a necessidade de análises técnicas especializadas compromete não apenas a confiança da comunidade, mas também a justiça processual e a imparcialidade das avaliações.

Deve-se considerar que a adoção ou a expansão do uso de BWCs, deve ser baseada em critérios técnicos sólidos, levando em conta fatores como custo-benefício, impacto operacional e indicadores objetivos, incluindo o número de prisões realizadas, abordagens efetuadas, armas apreendidas e a redução da letalidade policial. É crucial investigar se essa redução decorre de menor atuação em situações críticas ou de maior eficiência nas intervenções. O feedback dos policiais que utilizam o equipamento é igualmente indispensável, pois suas percepções refletem a eficácia prática e os desafios do uso das BWCs em campo.

Ao considerar a decisão de aquisição ou ampliação do uso de BWCs, é fundamental que essa escolha seja guiada por critérios técnicos e baseada em evidências concretas, e não influenciada por decisões políticas polarizadas ou agendas ideológicas de lados opostos do espectro político. Ficar restrito apenas a isto, longe de ser um avanço, representaria um retrocesso monumental neste campo tão importante para toda a população.

Por fim, a integração de tecnologias mais avançadas e treinamentos realistas é imprescindível para fornecer análises mais precisas e decisões mais equilibradas, tanto no contexto jurídico quanto social. Esta abordagem representa um passo fundamental para o desenvolvimento de um sistema de segurança pública mais justo, eficiente e confiável, alinhado às necessidades concretas das forças policiais e da sociedade. Somente assim será possível alcançar um equilíbrio entre a transparência, a eficiência operacional e o respeito aos direitos de todas as partes envolvidas.


Notas

[1] O iMotions é uma plataforma integrada para análise de dados comportamentais e emocionais, amplamente utilizada em pesquisas para combinar diferentes fontes de dados, como rastreamento ocular, expressões faciais, EEG (eletroencefalografia) e outros sensores biométricos. Essa ferramenta permite uma compreensão aprofundada das respostas humanas em diferentes contextos, incluindo cenários de tomada de decisão sob estresse. Para mais informações, consulte: iMotions – Home Page.

[2] Análise Multivariada de Variância (MANOVA) é uma técnica estatística que permite comparar múltiplas variáveis dependentes simultaneamente entre grupos independentes. Diferente da ANOVA univariada, a MANOVA é usada quando há interesse em avaliar os efeitos combinados das variáveis dependentes, sendo útil para identificar padrões complexos nos dados. Para uma descrição detalhada, veja: HUBERT, Lawrence J.; WAINER, Howard. A Statistical Guide for the Perplexed. Boca Raton: CRC Press, 2013.


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