Causas e consequências da queda de Assad na Síria: uma reflexão crítica

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Imagem gerada por inteligência artificial.

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A Síria parece ter o mesmo destino da Líbia e da Somália: um estado falido, fraturado em zonas de influência, governado por senhores da guerra e representantes estrangeiros.


O mundo foi surpreendido no início de dezembro pelo rápido colapso do Estado sírio sob regime de Bashar al-Assad, a partir de uma ofensiva impulsionada por facções insurgentes islâmicas radicais lideradas pela Organização da Libertação do Levante (HTS, Hayat Tahrir al-Sham) e o Exército Nacional Sírio, apoiado, financiado e estruturado pela Turquia , composto por diversos grupos alinhados com os turcos.

Em apenas duas semanas, rebeldes sírios avançaram de seu enclave no noroeste, capturaram uma série de cidades importantes e chegaram à capital, Damasco, derrubando o presidente Bashar al-Assad, 13 anos após o início da guerra civil no país.

A ofensiva adveio da província de Idlib, ocupada então pelos insurgentes, com direção à Aleppo, com os insurgentes cortando a rodovia M4 e isolando a conexão com esta rodovia, criando um ambiente de cerco operacional para as forças sírias.

Após anos presos em linhas de frente congeladas, os rebeldes realizaram um avanço relâmpago, culminando na derrubada do presidente e na tomada da capital no último fim de semana. Depois de capturar a segunda maior cidade da Síria, Aleppo, no final de novembro, os rebeldes continuaram a ofensiva, avançando ao sul para tomar a cidade de Hama.

O avanço prosseguiu rapidamente e, no sábado, os rebeldes atravessaram a terceira maior cidade da Síria, Homs, enfrentando pouca resistência e avançaram diretamente para Damasco. Na manhã de segunda-feira, foi confirmado que o presidente Assad havia fugido do país, com fontes russas relatando que ele recebeu asilo na Rússia.

O que surpreendeu a muitos analistas foi a rápida e progressiva deterioração das forças militares sírias, que se retiravam de suas posições sem sequer lutarem ou apresentarem uma resistência coordenada e consistente, levando à queda de cidades grandes em cadeia, como Aleppo, Hama e Homs, culminando na fuga de Assad e o colapso total do seu regime.

Nesta análise, buscaremos entender as causas e consequências do colapso do regime baathista na Síria e seu impacto presente e futuro no Oriente Médio.

Causas do colapso do regime baathista sírio

Em pormenorizada porém objetiva análise, vários fatores contribuíram para o enfraquecimento do governo de Assad e seus apoiadores:

Caos econômico, social e institucional: o país estava preso em uma crise humanitária e econômica perpétua, com 90% dos sírios vivendo na pobreza e desnutrição generalizada. Famílias desesperadas fizeram empréstimos apenas para comprar comida, mas não conseguiram pagar. Quedas de energia paralisaram até Damasco, às vezes deixando a capital às escuras por até 20 horas por dia. Os preços da eletricidade dispararam em até 585% apenas na primavera de 2024, empurrando uma população já destituída ainda mais para o desespero. O governo Assad não ofereceu soluções – apenas repressão crescente. Sob sanções esmagadoras, Damasco não conseguiu garantir empréstimos estrangeiros, e com seus campos de petróleo sob controle dos EUA e dos curdos, não havia mais nada para negociar. Nem mesmo o comércio ilícito de drogas da Síria, antes uma tábua de salvação, conseguiu tapar os buracos nas finanças do estado. Os lucros desapareceram nos bolsos dos senhores da guerra e traficantes de drogas, com fortes conexões com o aparato do regime sírio.

Implosão institucional: o Exército mal pago e desmoralizado de Assad, sangrado por anos de guerra civil, continuou a se desintegrar. Por um tempo, representantes iranianos como o Hezbollah apoiaram suas forças, mas em 2024, eles mudaram sua atenção para lutar contra Israel. Tentativas de atrair a Rússia ainda mais para o atoleiro da Síria fracassaram. Moscou, ocupada em outros lugares, não tinha interesse em socorrer Assad.

Então, quando a crise final chegou, Assad se viu sozinho. Seus aliados ficaram longe, seu Exército se dispersou e uma população enfurecida e faminta se voltou contra o governo. Não havia mais ninguém para protegê-lo.

Envolvimento aprofundado Rússia na Ucrânia na guerra de procuração com a OTAN e a prioridade estratégica russa para África e Ártico: a Rússia, um importante aliado de Damasco, está preocupada com a guerra por procuração com a OTAN na Ucrânia, o que limita sua capacidade de fornecer apoio militar em comparação a 2016, bem como definiu nos últimos anos como prioridade estratégica a região do Ártico, a defesa da Bielorrússia e suas ações de sustentação de regimes amigáveis na África, principalmente no Sahel, Argélia e Líbia, tornando-a sobrecarregada para qualquer envolvimento maior na Síria no aspecto militar e econômico.

Diminuição da influência do Hezbollah: o Hezbollah, apoiado pelo Irã, um poderoso aliado armado de Damasco, sofreu perdas significativas em seu conflito com Israel e enfrenta pressão interna no Líbano para reduzir seu envolvimento em conflitos regionais.

Ausência de fortificações, trincheiras e defesa em camadas desde o cessar-fogo de março de 2020.

Nesse contexto de maior fragilidade, rebeldes islâmicos sunitas salafistas e wahhabistas capitalizaram a vulnerabilidade do Irã na região após 14 meses de combate devastador com Israel para costurar Damasco e gerar o colapso do regime de Assad.

O avanço dos terroristas/“rebeldes” apoiados pela Turquia sobre Aleppo, conforme analisado acima, foi um choque para a maioria dos observadores do conflito. Houve quase meia década de paz entre o cessar-fogo de março de 2020 e a fatídica data de 8 de dezembro de 2024 quando Assad fugiu da Síria. A ofensiva rebelde com a queda abrupta do antigo regime sírio se consumou decisivamente, apesar de a linha da frente permanecer a cerca de duas dezenas de quilômetros de Aleppo, o que deveria ter lembrado a Assad e seu decrépito governo o quão vulnerável era a segunda cidade do seu país a um ataque de reconhecimento em força ou assaltos ligeiros.

Na visão do analista geopolítico Andrew Korybko, foram cinco as razões pelas quais a Síria foi pega de surpresa:

1-Complacência e corrupção: para Korybko, o Exército Árabe Sírio (SAA) permaneceu acomodado e desmobilizado porque considerou o cessar-fogo mediado pela Rússia como garantido, após o que a infame corrupção do país entrou em ação para degradar suas capacidades de combate e corroer qualquer nível de prontidão operacional. Como bem observa Korybko, não há desculpa para o fato de mesmo os drones básicos não terem sido utilizados para inteligência, vigilância e reconhecimento (ISR) para detectar o acúmulo de forças rebeldes que precedeu este avanço. Uma grande parte da razão pela qual o SAA não fez nada é provavelmente porque assumiu que seus aliados russos e iranianos assumiriam essa responsabilidade por eles, expondo lacunas e deficiências de coordenação entre as forças militares sírias e seus aliados externos.

2-A rivalidade russo-iraniana: Como bem explicou Korybko, a Rússia e o Irã lutaram juntos contra o terrorismo na Síria, mas também são rivais que competiam entre si pela primeira influência sobre Damasco, citando como exemplo revelador dessa competição o fato de a Rússia sempre nada fazer além de reclamar ocasionalmente sempre que Israel bombardeia o IRGC naquele país, nunca dando à Síria os meios para interceptar esses ataques ou retaliar posteriormente.

3-Aliados distraídos e aleijados: Como relata o analista russo, para piorar ainda mais as coisas para a Síria, o avanço dos terroristas/“rebeldes” sobre Aleppo ocorreu precisamente no momento em que a Rússia está distraída com sua operação militar especial na Ucrânia e o Irã foi paralisado pelas suas guerras com Israel. Sem poder aéreo russo e mão-de-obra iraniana suficientes, incluindo aqueles que este último poderia ter solicitado ao Hezbollah, se tornou extremamente difícil para o SAA afastar os militantes de Aleppo e depois de Hama e Homs.

4-Ignorância das lições das batalhas na Ucrânia: Korybko sustenta que o SAA do regime de Assad poderia ter aprendido as lições da guerra na Ucrânia por si próprio e correspondentemente se preparado muito melhor para o que finalmente veio a acontecer, assimilando por exemplo táticas de drones. No entanto o Exército sírio estava totalmente despreparado para isso.

5-Descumprimento de acordos políticos e de reconciliação pelo regime de Assad: Para Korybko, o regime sírio pagou o preço por não ter se comprometido com a paz ao não aceitar o “projeto de constituição” escrito pela Rússia de 2017, pois apesar de ser repleto de concessões na opinião de Korybko, sua adequação ou pelo menos implementação parcial poderia ter finalmente resolvido o conflito e, assim, evitado o colapso total do regime.

Além desses pontos, valem outros fatores cruciais que acrescentamos e que foram determinantes:

Restrições econômicas do Irã: os problemas financeiros de Teerã, agravados pelas sanções dos EUA, restringiram sua capacidade de fornecer ajuda financeira e militar ao governo de Assad. De acordo com estimativas, Teerã gastou dezenas de bilhões de dólares na Síria, mas diante da sobrecarga com a guerra contra Israel através de seus proxies como o Hezbollah, a escassez de energia que o país sofre e a séria crise econômica em curso, tornou insustentável manter qualquer apoio ao regime em níveis minimamente adequados para sua sustentação.

• Erosão da força de trabalho e logística do IRGC na Síria: comandantes-chave do IRGC, incluindo o ex-chefe da Força Quds extraterritorial do IRGC, Qasem Soleimani, foram mortos nos últimos anos e as forças de substituição não têm as mesmas capacidades. Além disso, grupos proxy como a Divisão Fatemiyoun Afegã e as Forças de Mobilização Popular do Iraque (PMF) são menos eficazes do que antes, em função de desmobilização e perdas cumulativas em anos de combate.

A IRGC, com o general iraniano Soleimani, estruturou e consolidou as Forças de Defesa Nacional, com 300.000 combatentes para formarem brigadas de defesa territorial e liberar o Exército sírio para operações ofensivas. O regime de Assad sabotou essa formação imprescindível, por puro capricho político.

Má governança e inépcia governamental geral: Assad não cumpriu com os acordos de reconciliação com os rebeldes de Daraa e El-Sweida mediados pelos russos. Ao contrário, alienou os combatentes e partidários, não os integrou às estruturas institucionais e resolveu extorquir o máximo das comunidades envolvidas nessas áreas. O regime de Assad desviava verbas e equipamentos fornecidos por russos e iranianos, não se importava com nenhuma coordenação ou interoperabilidade entre as diversas unidades, que agiam como forças de clãs específicos que cuidavam cada qual de seus interesses.

Além disso, o regime quis entregar todas as operações de combate às milícias xiitas e ao Hezbollah. Quando estes se sobrecarregaram com a guerra contra Israel, o país ficou simplesmente sem capacidade de combate. Para agravar, o regime de Assad desmobilizou e expurgou milhares de combatentes bem treinados e experientes, como foi o caso das forças Tiger, e deixou os militares em situação de miséria, tornando a imensa maioria das unidades meramente ilustrativas. Foi revelador do nível de incompetência do regime manter um valor médio equivalente a 0,75 centavos de dólar para remunerar seus soldados.

Quanto à responsabilidade da Federação Russa no fracasso da sustentabilidade do regime baathista, podemos sintetizar as falhas da intervenção russa na Síria em vários eixos e escopos:

• Militar: envolvimento direto limitado a ataques aéreos e forças especiais para reconhecimento, com concentração de unidades nas bases aéreas de Latakia e Khmeimim, sem envolvimento abrangente na organização e treinamento do Exército Árabe Sírio, ressalvadas poucas unidades como as Forças Tiger e o ISIS HUNTER.

Político: a adesão plena e sem vigilância ou assertividade de cumprimento das cláusulas em relação à Turquia principalmente levou ao fracasso total do Acordo de Astana, firmado pela Rússia com Turquia e Irã no final de 2019, quando o regime sírio apoiado pelas forças iranianas no terreno e com os ataques aéreos russos estava em plena vantagem militar, faltando poucas áreas de Idlib para retomar. Congelaram o conflito contando com a contenção pelos turcos dos grupos militantes proxies e das facções extremistas salafistas como o HTS presentes em Idlib e na época fortemente enfraquecidos. Um erro de cálculo terrível, que na verdade atendia aos propósitos limitados de intervenção da Rússia na Síria, mas que gerou um preço enorme anos depois com o colapso militar em inúmeros fronts e o desmantelamento do regime sírio.

Um erro político imperdoável foi aceitar bombardeios israelenses contínuos que tornaram a logística das milícias xiitas e as bases do Hezbollah e da IRGC bastante degradadas e deterioradas, reduzindo muito sua capacidade de combate.

Outro fracasso político pela Rússia foi não garantir efetivamente acordos de reconciliação de facções políticas que buscaram a reconciliação com o regime e o país, lamentavelmente sabotados pelo governo sírio e ignorados pelos moderadores russos.

Econômico: nenhum investimento significativo, nenhum programa de política de desenvolvimento nacional de longo prazo com geração de empregos e crescimento econômico foi trazido pela Rússia. A corrupção do regime continuou a imperar e até a se agravar perante a população.

Institucional: continuou o regime sírio de Assad com uma governança precária e baseada em patronagem, esquemas de favorecimento pessoal e de grupos escancaradamente, extorsões da mukharabak, alienação de comunidades drusas, de Aleppo, e de Daraa. Os russos não definiram nenhum objetivo claro de fortalecer economicamente a Síria nem exigiram condições de sustentação do regime a melhorias institucionais.


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Quanto aos iranianos, podemos sintetizar seus erros estratégicos na Síria nos seguintes pontos:

Militar: baixo nível de confiança, interoperabilidade e coordenação com a maior parte do Exército sírio. A imensa maioria das operações no terreno eram conduzidas pelo Hezbollah, com comandantes da IRGC coordenando, alguns especialistas em sistemas de armas para prover suporte técnico e treinamento de algumas unidades setoriais sírias. Mas o Exército sírio ficava muito posicional e fixo em postos de observação frágeis, pontos de controle limitados e aquartelado. As forças iranianas e seus proxies com a sobrecarga na guerra com Israel ficaram esgotadas, principalmente com os sucessivos ataques aéreos na retaguarda e em armazéns, depósitos e centros de comando que depreciaram significativamente suas capacidades operacionais.

Uma séria vulnerabilidade militar a nosso ver foi a pouca implantação pelo Irã de sistemas de defesa aérea de área nas áreas que controlava na Síria, o que favoreceu a impunidade dos ataques aéreos israelenses.

Político: tal como a Rússia, aderiram ao Acordo de Astana no final de 2019 tendo a Turquia como garantidor do acordo quanto à contenção das gangues e facções islâmicas salafistas de Idlib e proxies turcos, falhando em monitorar e fiscalizar o cumprimento das cláusulas relativas às obrigações turcas quanto ao controle das suas facções aliadas.

Econômico: tal como a Rússia, o regime iraniano não trouxe qualquer mudança de investimento ou governança econômica para a Síria. Mantiveram o regime sírio e acharam que isso bastaria para garantir a perenidade do corredor principal do intitulado “Eixo da Resistência”.

Institucional: tal como a Rússia, os iranianos não promoveram exitosamente nenhuma melhoria nas estruturas de governo, não condicionaram o regime a nenhuma reforma institucional que reconciliasse outras facções do país e gerasse melhores políticas públicas.

Outro ponto a se investigar foi a correlação do colapso do regime de Assad com uma indicativa traição de vários generais do Exército sírio. A rápida queda do governo de Assad deu origem à especulação de que tal não poderia ter acontecido sem subornar os generais locais. Uma das pessoas envolvidas nos rumores é Hussam Luqa, chefe da Direção Geral de Inteligência da Síria.

Ainda é difícil dizer de forma inequívoca quão confiáveis são as suspeitas. Mas os indícios existem:

• O antecessor de Luqa no órgão máximo de inteligência sírio foi Muhammad Dib Zeitoun, defensor da presença russa. Após a sua saída, todo o pessoal pró-Rússia foi expurgado da estrutura, enviando-os do aparelho central para os departamentos regionais, diminuindo a capacidade de trabalho dos russos com seus parceiros em setor tão importante e sensível.

• Desde 2020, Luqa defendia a redução da cooperação com a Rússia e seu aumento com o Irã. Ele conseguiu o apoio de Ali Mamluk , aliado de Assad, que começou a receber uma percentagem de cada empréstimo iraniano para promover os interesses da República Islâmica na Síria governada por Assad.

• Com a deterioração da situação econômica do país, Luqa entrou em contato com os serviços de inteligência da Turquia e do Catar a pretexto de trabalho. Isso não foi tão difícil de fazer, principalmente considerando que sua filha trabalhava na ONU.

Segundo alguns relatos, foi Luqa quem deu a ordem para acabar com a resistência em Homs e Damasco. Ele também está associado a relatos de uma tentativa de golpe, bem como à intenção de prender Assad durante o discurso fracassado à nação em 7 de dezembro.

Agora, o paradeiro de Luqa é desconhecido, mas se ele surgir repentinamente em algum lugar como parte das “novas autoridades sírias”, isto será a confirmação do seu papel na tomada do país por militantes.

Consequências para o Irã

O colapso do governo de Assad desmantelou uma pedra angular da estratégia regional do Irã contra Israel. Também ameaça a sobrevivência dos grupos paramilitares patrocinados pelo Irã (principalmente o Hezbollah) que dependiam fortemente do regime de Assad para apoio. Sem o apoio de Assad, esses grupos poderiam ter dificuldades para sustentar suas operações, colocando em risco a influência da República Islâmica na região.

Para o líder máximo do Irã, Aiatolá Ali Khamenei e a Guarda Revolucionária do Irã, o governo de Assad era um pilar vital do chamado Eixo da Resistência. Sua queda pode até mesmo colocar em risco a estabilidade da própria República Islâmica. A política externa regional do Irã pode enfrentar uma crise grave. Damasco desempenhava um papel crucial na facilitação do transporte de armas, logística e apoio financeiro aos grupos representantes do Irã. Seu colapso provavelmente levará a:

• Descontinuidade severa das transferências de armas para o Hezbollah via aeroportos de Damasco e Latakia;

• Apoio reduzido a grupos palestinos como o Hamas e a Jihad Islâmica;

• Destruição de redes de contrabando de armas e narcóticos para a Jordânia e a Cisjordânia que garantiam recursos alternativos para pagamento de milícias xiitas.

Em fria análise, a queda de Assad pode desmantelar o “Eixo da Resistência” e representar uma séria ameaça aos objetivos geopolíticos da República Islâmica do Irã no Oriente Médio.

O contexto geopolítico atual

Podemos elencar os seguintes desenvolvimentos situacionais que indicarão possíveis desdobramentos à realidade política e militar na Síria:

• Os militantes do Comando Militar Supremo liderado pela organização HTS que tomaram o poder começaram a formar um governo de transição alegando respeito a todas as comunidades étnicas religiosas no país, embora a heterogeneidade das facções armadas e o extremismo que lhes é característico exponha enorme incerteza sobre qualquer perspectiva de estabilidade social no território sírio.

• Alguns representantes do antigo governo sírio prestam assistência em questões de transferência de poder, não havendo certeza de como irão ser aproveitados nas novas estruturas de poder.

• Israel continua a ocupar territórios no sudoeste da Síria, aproveitando o vazio total de poder e consolidando o controle total das Colinas de Golã e da região de Quneitra no sul da Síria. Israel continua a ganhar posições nos territórios sírios ocupados e demonstra o desejo não só de manter e povoar as Colinas de Golã anteriormente capturadas, mas também de estender a ocupação a novos territórios. Até o HTS foi forçado a declarar publicamente que é contra a ocupação israelense e que Israel deve parar os ataques à Síria. No entanto, é improvável que o HTS consiga fazer alguma resistência contra Israel agora.

• Militantes pró-turcos estão atacando Manbij para desalojar os curdos, buscando expulsá-los também de Kobani e Raqqa. Os curdos da facção YPG (“Forças Democráticas Sírias”) estão resistindo e os militantes turcos ainda não lograram êxito em expulsar os curdos da região. A questão chave para o futuro da Síria é se o HTS e a Turquia se limitarão a controlar a Síria na margem esquerda ao longo do Rio Eufrates (incluindo a próxima captura de Tabqa e Raqqa) ou se haverá uma invasão da região autônoma curda de Rojava. Os Estados Unidos e a Turquia estão atualmente negociando esta questão, embora a Turquia esteja mobilizando forças militares e facções abrigadas no intitulado “Exército Nacional Sírio” por ela armado e mantido. Todos os grupos na Síria compreendem perfeitamente que sem o petróleo de Rojava, a situação econômica na nova Síria liderada pelos “jihadistas progressistas” será tão inaceitável ou ainda pior do que era durante o governo Assad. Os EUA, naturalmente, não querem desistir da carta curda, que utiliza para encobrir a extração do petróleo sírio e manter a sua presença militar na Síria.

• As Forças Armadas russas deixaram suas bases em Rojava. Após o colapso do governo Assad, estar em Rojava perdeu o sentido e se tornou arriscado para as pequenas guarnições que ali estavam. No que diz respeito às bases em Latakia, estão em curso negociações sobre a possibilidade de preservá-las, possivelmente sob condições de fornecimento de petróleo e trigo para a Síria por parte dos russos. Entretanto, ainda não há decisão sobre um acordo temporário ou permanente sobre a continuidade das bases militares russas no território sírio agora governado pelo HTS e facções islâmicas e pró-turcas diversas. As negociações com o HTS em relação às bases russas continuam. As partes estão trocando propostas e discutindo possíveis parâmetros. Já existem certos pontos de contato sobre vários parâmetros, mas há questões problemáticas. Atualmente não existem decisões sobre a retirada total das bases em Latakia e Khmeimim, embora haja relatos de provocações nos arredores das bases por militantes de grupos diversos. Caso não seja possível chegar a um acordo com o HTS sobre as bases, o processo de retirada de tropas e equipamentos deverá ser organizado na íntegra. Este também não é um processo rápido.

Dos restantes redutos na Síria, que não foram especificados no acordo sobre bases em Latakia, as tropas russas se retiraram em direção a Tartus ou Khmeimim. Até o momento, não houve nenhum incidente significativo. Os equipamentos excedentes gerados em Latakia serão retirados, e o grupo russo na Síria, mesmo no caso de acordo com a HTS sobre as bases, será reduzido devido à falta de tarefas anteriores que exigiam uma presença militar destacada em diferentes regiões da Síria.

• A Embaixada da Rússia em Damasco também permanece por enquanto em funcionamento normal, provavelmente permanecerá até eventual escalada. A segurança do perímetro exterior é agora assegurada por militantes do HTS, que estão afastando da embaixada militantes de grupos não incluídos no HTS (uma réplica da situação em Cabul), inclusive com resultados fatais para alguns deles.

• Assad e sua família estão asilados em Moscou, já que o presidente Putin concedeu-lhes asilo político. Não se sabe que tipo de atividade o clã Assad irá realizar em Moscou, além de se beneficiar dos recursos retirados da Síria. Quanto a Maher Assad, este foi para o Iraque junto com parte de seus soldados, possivelmente buscando alguma integração com organizações paramilitares xiitas. Um grande número de soldados e equipamentos foram abandonados no leste da Síria, muitos se rendendo e outros fugindo para o Iraque. É improvável que os remanescentes do Exército sírio que foram para o Iraque sejam agora uma força pronta para o combate. Talvez os iranianos os tomem sob a sua proteção e criem formações de sírios sob proteção de suas numerosas estruturas paramilitares proxies. Embora a questão da eficácia de combate das formações sírias permaneça em questão, ter mobilizados para suas facções é uma preocupação dos iranianos.

• O Ocidente já se prepara para legalizar o grupo extremista HTS e seu líder Al-Julani, apresentando-os como “rebeldes progressistas”, embora na essência sejam a Al-Qaeda em escopo de ação, visão ideológica e concepção de militância jihadista.

• O ISIS está agora recrutando pessoal ativamente, aproveitando o fato de muitos militantes extremistas e radicalizados terem sido libertados da prisão e ter-se formado um vácuo de poder judicial e legal. O ISIS se fortalecerá por consequência, influenciando a dinâmica social e institucional da nova Síria e mantendo um cenário de constante instabilidade.

• O Hamas felicitou os militantes islâmicos pela tomada do poder na Síria. Isto não deveria surpreender; o Hamas esteve ao lado dos militantes até 2016, evidenciando as ligações entre o grupo de Gaza e os extremistas salafistas na Síria.

• O Líbano e o Iraque continuam reforçando a fronteira, antecipando um aumento no fluxo de refugiados e possíveis ataques de militantes extremistas. Os roubos e saques continuam em todo o país. Há também represálias contra as forças de segurança , funcionários públicos e políticos que serviram Assad. Os militantes do HTS tentam criar uma aparência de legitimidade, mas fora de algumas grandes cidades o poder reside essencialmente em gangues armadas que aproveitam o vácuo de poder e segurança. O HTS, mesmo que queira, não conseguirá parar ações criminosas nem se constituir como força organizada de aplicação estável de segurança.

• A pior situação na Síria será para os alauítas, formalmente considerados xiitas por razões políticas, e apenas recentemente. Na verdade, os alauítas são uma comunidade étnico-confessional separada que formou seu ensino religioso sincrético com base no paganismo, no cristianismo e no islamismo. O clã Assad é alauíta, foi o pai de Bashar al-Assad quem iniciou a reaproximação entre os alauítas e os xiitas por razões políticas durante seu regime. Os sunitas locais têm inúmeras reivindicações contra os alauítas: eles não são considerados muçulmanos e também não são classificados como cristãos; na verdade, são classificados como pagãos, o que os afasta da proteção da sharia. Portanto, para os extremistas das facções islâmicas sírias, pode-se fazer o que se quiser com eles, até mesmo matá-los. Ocorre que os alauítas vivem de forma compacta na área onde estão localizadas as bases russas. Se houvesse um desejo de influenciar a situação de segurança local, a Rússia poderia usar a minoria alauíta como um fator que permitiria projetar o poder russo na região no futuro. Tudo depende da vontade política e da conveniência com os objetivos da elite russa.

• Israel continua a bombardear armazéns e posições do antigo Exército sírio, tentando destruir parte do equipamento militar do antigo Exército Árabe Sírio.

• A situação econômica da Síria está se deteriorando acentuadamente. A moeda local entrou em colapso, crescem problemas com combustíveis e lubrificantes (que existiam antes disso), há crise de oferta de alimentos, o custo de vida é alto e a maioria da população está sem perspectiva e imersa na pobreza e na miséria.

Cinco opções para o desenvolvimento da situação na Síria: previsões do jornal turco Sabah

O jornal turco Sabah apresentou cinco cenários possíveis para o desenvolvimento da situação na Síria tendo como pano de fundo a derrubada do regime de Assad e os conflitos em curso no país:

1-República Democrática Síria: a possível criação de uma aliança de facções da oposição, apesar das suas diferenças ideológicas.

2-República Islâmica da Síria: opção em que o principal interveniente será Hayat Tahrir al-Sham (HTS), que deverá liderar o regime islâmico.

3-Estado anti-xiita sob controle israelense: hipótese sobre a formação de um novo estado centrado em sentimentos anti-xiitas e apoiado por Israel.

4-República Federal da Síria: cenário em que a Síria está dividida em várias unidades territoriais independentes ou semi-independentes sob controle dos Estados Unidos, com uma possível divisão do país em linhas étnicas ou religiosas.

5-Desintegração da Síria: é a opção mais radical, envolvendo uma divisão completa do país e sua desintegração em várias partes.

Tendência futura a um Estado sírio permanentemente caótico e conflagrado

Em nossa avaliação embasada nos argumentos acima, assim que começarem os primeiros problemas e diferenças nos esquemas de ganhos e divisão de espólio de recursos do país, emergirem as primeiras divergências e descontentamentos, esses mesmos militantes extremistas agora retratados como “progressistas” por parte relevante da mídia ocidental mainstream, voltarão a pegar em armas e a procurar o inimigo a ser aniquilado uns nos outros.

Acrescente-se a toda esta perspectiva, a difícil situação econômica, a ressurgência revigorada dos militantes do ISIS e a instabilidade com confrontos difusos se tornará comum, pois a Síria continua sendo um mosaico de facções hostis, muitas com rancores de longa data. Devemos aqui lembrar que os agora aliados circunstanciais SNA e HTS já lutaram pelo domínio em Idlib, apesar de ambos serem apoiados pela Turquia. Há também os curdos no nordeste, os alauítas na costa, os drusos no sul e várias facções apoiadas pelos EUA no sudeste. Depois, como já alertado, temos o soerguimento do ISIS, ainda à espreita no deserto, pronto para explorar o caos.

Em geral, após a divisão da antiga República Árabe Síria, podemos esperar a eclosão de uma guerra civil por áreas de interesse entre facções militantes, com o muito provável desmembramento da Síria em enclaves dominados autonomamente por grupos inconciliáveis, em um cenário similar àquele vigente na Somália.

A Síria parece destinada, portanto, a seguir a trajetória pós-Gaddafi da Líbia e da Somália depois de 1991: um estado falido, fraturado em zonas de influência, governado por senhores da guerra e representantes estrangeiros. Isso seria um desastre não apenas para os sírios, mas para o Oriente Médio como um todo.

Referências bibliográficas

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DZULHISHAM, Huzeir Ezekiel. CO24193 | Explaining the Collapse of Syria’s Assad Regime. RSiS, 13 de dezembro de 2024. Disponível em: https://www.rsis.edu.sg/rsis-publication/rsis/explaining-the-collapse-of-syrias-assad-regime/.

Publicado no História Militar em Debate.

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