Aparentemente a Rússia está apenas esperando o vencimento do contrato para iniciar uma nova fase da guerra: atacar os gasodutos ucranianos, o que deixaria a Ucrânia em uma situação energética ainda mais crítica.
Poucos tem se dado conta de um aspecto central do contexto político-estratégico da Guerra Russo-Ucraniana: a questão do gás russo que vem sendo bombeado para a Europa, através do território ucraniano, de forma contínua desde o início das grandes operações militares russas em fevereiro de 2022.
Neste artigo procuramos jogar alguma luz sobre essa questão importantíssima, e pouco explorada, do conflito entre a Rússia, a Ucrânia e União Europeia, para a qual se aproxima um momento decisivo, na medida em que o contrato entre Rússia e Ucrânia será encerrado em 31 de dezembro de 2024, caso não seja renovado.
O contrato de trânsito do gás russo na Ucrânia
Sim, existe um contrato entre a Rússia e a Ucrânia para o trânsito de gás russo pelo território ucraniano, e que se manteve em vigor em meio à guerra entre os dois países desde 2022. Este contrato foi assinado em 2019 com duração de cinco anos, portanto com término previsto para o último dia do ano de 2024.
Principais pontos do contrato de trânsito de gás entre Rússia e Ucrânia:
• A Rússia se comprometeu a enviar cerca de 15 bilhões de metros cúbicos de gás através da Ucrânia anualmente;
• A Ucrânia recebe taxas de trânsito pela passagem do gás russo pelo seu território;
• Ambas as partes têm responsabilidades na manutenção e operação dos gasodutos para garantir o fluxo contínuo de gás.
Apesar da invasão russa à Ucrânia em fevereiro de 2022, o contrato de trânsito de gás não foi finalizado devido à dependência europeia do gás russo e à necessidade de manter a estabilidade energética na região, inclusive e principalmente na própria Ucrânia, sobre a qual há suspeitas de que o utiliza, em que pese essa possibilidade não estar prevista no contrato. Além disso, a Ucrânia continuou a receber as taxas de trânsito previstas, o que foi essencial para a combalida economia do país.
Nos termos do atual contrato, a empresa russa Gazprom foi obrigada a pagar à Ucrânia pelo trânsito de 65 bilhões de metros cúbicos (bcm, billion cubic meters) (~670 TWh) de gás em 2020, caindo para 40 bcm (~412 TWh) por ano até 2024. Isso, independentemente de a Gazprom ter efetivamente enviado ou não o montante acordado (KELIAUSKAITĖ e ZACHMANN, 2024).
O fluxo do trânsito de gás em 2024 esteve em torno de um total de 44 milhões de metros cúbicos por dia, o que equivale a 16 bcm/ano. Isso é significativamente abaixo do montante contratado de 40 bcm/ano. As receitas das taxas de trânsito para a Ucrânia variaram de 1,2 bilhões de dólares em 2022 para 0,8 bilhão de dólares em 2023, ou seja, mesmo com uma queda pelas sanções impostas por alguns países europeus, que cortaram importações, o montante equivaleu a cerca de 0,5% do PIB da Ucrânia (ibid.).
A Tabela 1 apresenta as importações de gás da União Europeia (UE) entre os anos de 2021 e 2024.
Já a Tabela 2 apresenta os principais importadores europeus do gás russo, no mesmo período (2021-2024).
A Ucrânia vem deixando clara sua posição de que não pretende estender o contrato para o trânsito de gás russo por seu território, mesmo ciente de que essa decisão afetará suas relações com os países vizinhos europeus que dele dependem. Mas, tanto o ministro da Energia da Ucrânia, German Galushchenko, quanto o CEO da empresa ucraniana Naftogaz, Oleksiy Chernyshov, enfatizaram em suas declarações que o curso estratégico do país visa reduzir a dependência da Rússia (LANSHINA e UVAROV, 2024).
Além dos países da UE, outro país que possui grande dependência do gás russo, e se utiliza do contrato de trânsito de gás, é a Moldávia, assim como sua província rebelde, a Transnístria. Dados de 2023 revelam que a Moldávia recebeu um total de 2,6 bcm naquele ano, o que significa que o país recebeu quase todas as suas importações de gás natural via Ucrânia, com origem russa.
As opções para a Moldávia são limitadas, pois o país depende grandemente das importações de gás russo através da Ucrânia e, no caso de um fechamento completo do corredor de trânsito ucraniano, a única rota alternativa de importação para abastecer o país seria através da Romênia, que, entretanto, não tem capacidade de atender toda a demanda moldava.
Os gasodutos ucranianos
Historicamente, o território ucraniano constituía a única rota de trânsito para o gás produzido na União Soviética (URSS) para exportação aos países europeus. Em decorrência disso, uma densa rede dutoviária foi construída na Ucrânia, ainda no período da URSS.
No entanto, após a queda da URSS, a grande produtora passou a ser a Federação da Rússia, que começou a desenvolver sua estratégia de construir gasodutos em rotas alternativas à Ucrânia. Foram então construídos o gasoduto Yamal-Europa, o Blue Stream, depois os gasodutos Nord Stream 1, Turk Stream I e II e, finalmente, o gasoduto Nord Stream 2. Em consequência, os fluxos de trânsito de gás pela Ucrânia foram bastante reduzidos (RILEY, 2024).
O Mapa 1 apresenta um mapa com a localização atual dos gasodutos na Ucrânia que se originam na Rússia.
Atualmente, o único terminal russo que ainda se mostra operacional é justamente o de Sudzha, no Oblast de Kiev. O terminal de Sokhranovka foi desativado em maio de 2022, ou seja, assim que a guerra em larga escala se iniciou.
Mas então surge mais uma dúvida: O terminal de Sudzha permanece ativo, mesmo com a invasão ucraniana à Kursk?
A resposta é sim. O terminal de Sudzha, apesar de alguns danos causados durante os combates, continua a operar e a fornecer gás para os clientes da Europa, sujeito às cláusulas do tratado de trânsito de gás russo-ucraniano de 2019.
Isso tem permitido que os contratos de fornecimento de longo prazo existentes entre a Gazprom e a empresa SPP da Eslováquia e a empresa Moldovagaz continuassem, bem como para os outros clientes menores da Gazprom através da rota de trânsito ucraniana na Hungria e na Itália.
Isso é particularmente relevante para a Eslováquia e a Moldávia durante o inverno, ou seja, no momento atual, pois os preços da energia no mercado mundial estão altos, e as empresas europeias de energia conseguem economizar cerca de 5% em relação aos preços dos mercados globais.
Com relação às vendas russas de gás para outros clientes europeus, as entregas ao longo do corredor de trânsito ucraniano ocorrem sob contratos de longo prazo entre a Gazprom e seus clientes remanescentes. No entanto, os volumes entregues na maioria dos casos ficaram significativamente abaixo do valor contratado nos últimos 12 meses. Esta “sub-entrega” pode ser creditada a uma combinação de restrições de fornecimento politicamente motivadas pela Rússia, demandas mais baixas pelos clientes europeus da Gazprom ao longo da rota de trânsito Ucraniana, problemas de pagamento (no caso da Moldávia), e uma preferência por usar o corredor Turk Stream (no caso da Hungria).
Isso também é importante para a Ucrânia, pois ao manter o trânsito do gás russo pelo seu território, o país acaba tendo duas vantagens. Primeiro, continua recebendo os pagamentos das taxas de trânsito da Gazprom russa. Segundo, a Ucrânia reduz o risco de ataques russos em sua rede de gasodutos, que até agora nunca foram alvos dos mísseis ou drones de longo alcance da Rússia.
Riscos da não renovação do contrato de trânsito do gás russo
O principal risco a ser considerado com uma não renovação do contrato de trânsito de gás russo pela Ucrânia até 31 de dezembro de 2024, está relacionado à possibilidade de que os gasodutos ucranianos passem a ser um alvo militar da Rússia, coisa que não vinha ocorrendo.
As estações de compressão e seções dos principais troncos do corredor de trânsito de gás ucraniano estão localizadas acima do solo e vulneráveis a ataques de drones e mísseis de precisão russos.
Tendo em vista que os volumes exportados pela Rússia são hoje bem menores do que os verificados no pré-guerra, o único interesse russo tem sido manter uma boa relação com países da OTAN que são seus clientes e mantém importações do seu gás. Isso é particularmente relevante no caso da Eslováquia e da Hungria.
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Uma vez encerrado o contrato por força de um desinteresse ucraniano, a Rússia se verá livre para destruir a infraestrutura de gasodutos ucranianos, o que seria catastrófico para a infraestrutura energética da Ucrânia, já extremamente debilitada pelos contínuos ataques russos às usinas termoelétricas, linhas de transmissão e estações transformadoras.
Recentemente, os Estados Unidos realizaram o primeiro fornecimento de GLP para a Ucrânia. Tal operação foi realizada por meio do terminal de transbordo de gás da Grécia (Terminal de Revithoussa), tendo sido fornecidos 100 milhões de metros cúbicos (1 TWh).
A Ucrânia vem se preparando para o fim do contrato de trânsito russo, mas há um problema: sem sua rede de gasodutos, o gás dos EUA se tornará inviável.
Mas há outros riscos, e a questão do gás russo afetará diretamente a Moldávia. A situação da Moldávia e da Transnístria em relação ao fornecimento de gás russo é bastante complexa, especialmente com o fim iminente do contrato de trânsito de gás russo pela Ucrânia, que expira em 31 de dezembro de 2024. A Moldávia recebeu em 2024 cerca de dois bilhões de metros cúbicos de gás russo, canalizado através da Ucrânia para atender às necessidades do país e da região separatista da Transnístria.
Outro país em risco é a Eslováquia. O primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico, acabou de realizar uma visita surpresa a Moscou para se reunir com o presidente russo, Vladimir Putin. Durante a reunião, que não foi anunciada previamente, os dois líderes discutiram várias questões, mas principalmente o fornecimento de gás russo, do qual a Eslováquia é altamente dependente. Fico, que desempenha este novo mandato desde outubro de 2023, já ordenou a suspensão da ajuda militar à Ucrânia e apoia a abertura de negociações de paz para resolver o conflito. Ele também criticou Kiev por colocar em risco o fornecimento de gás russo, uma vez que a Ucrânia anunciou que não renovaria o contrato de trânsito de gás com Moscou após o final do ano. Independentemente da renovação do contrato com a Ucrânia, a Gazprom já confirmou que suspenderá as exportações de gás para a Moldávia a partir de 1º de janeiro de 2025, devido a dívidas não pagas. Isso levará a cortes severos de energia na Moldávia e na Transnístria. Especula-se que o real motivo da suspensão do envio do gás russo para a Moldávia seria uma retaliação russa à postura da Moldávia, cada vez mais próxima à UE e à OTAN.
Também haverá um risco para a Rússia, mas já precificado, qual seja uma redução do faturamento da Gazprom, que deixaria de receber pelo gás atualmente exportado para alguns países europeus, conforme já demonstrado. A possibilidade de que a Rússia atenda a Eslováquia por intermédio do Turk Stream e da Hungria, pode ser uma possibilidade a ser explorada.
Conclusão
A questão do fornecimento do gás russo é um capítulo à parte na Guerra Russo-Ucraniana. Poucas vezes na história tivemos um caso na qual dois países em guerra mantiveram um contrato comercial em vigor. Existem alguns casos históricos onde países em guerra mantiveram contratos comerciais. Um exemplo foi durante a Primeira Guerra Mundial, quando os Estados Unidos e a Alemanha mantiveram alguns contratos comerciais, apesar do conflito.
Mas nessa caso do trânsito do gás russo, a questão se mostrou bem mais central e complexa do que qualquer outro exemplo que possamos levantar.
Mesmo a questão da invasão ucraniana na direção de Kursk (Sudzha) ganha um novo contorno, ao analisarmos a questão de que o único terminal ativo para as exportações russas de gás para a Europa está hoje em mãos das Forças Armadas da Ucrânia.
Tomando por base as recentes declarações feitas pelo presidente Putin, no sentido de que não iria se esforçar para renovar o contrato com a Ucrânia, fica a impressão muito clara de que a Rússia está apenas esperando o vencimento do contrato para começar uma nova fase de sua campanha militar, qual seja, atacar os gasodutos ucranianos com seus drones e mísseis de longo alcance, o que colocaria a Ucrânia em uma situação bem mais crítica em termos de sua capacidade de geração de energia, que nem mesmo uma garantia de fornecimento de gás dos EUA poderá ajudar.
Referências
HROMADSKE. In 3-4 years, Russia will completely lose European gas market. This will end transit through Ukraine — GTSOU chief. 9 de julho de 2022. Disponível em: https://hromadske.ua/en/posts/in-3-4-years-russia-will-completely-lose-european-gas-market-this-will-end-transit-through-ukraine-gts-chief.
KELIAUSKAITĖ, Ugnė; ZACHMANN, Georg. The end of Russian gas transit via Ukraine and options for the EU. Bruegel, 17 de outubro de 2024. Disponível em: https://www.bruegel.org/analysis/end-russian-gas-transit-ukraine-and-options-eu.
LANSHINA, Tatyana; UVAROV, Alexey. Transit cannot be halted. Riddle Russia, 20 de dezembro de 2024. Disponível em: https://ridl.io/transit-cannot-be-halted/.
LOSZ, Akos. Q&A | Russian Gas Transit through Ukraine. Center on Global Energy Policy at Columbia University SIPA, 3 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.energypolicy.columbia.edu/qa-russian-gas-transit-through-ukraine/.
RILEY, Alan. The End of the Affair? The Transit of Russian Gas Across Ukraine. ICDS, 27 de dezembro de 2024. Disponível em: https://icds.ee/en/the-end-of-the-affair-the-transit-of-russian-gas-across-ukraine/.