Por Giuseppe Gagliano*
De uma perspectiva estratégica e militar, a percepção da Alemanha como inimiga da Rússia torna ainda mais difícil a desescalada da tensão entre a Rússia e o Ocidente.
No atual contexto geopolítico, as relações entre a Alemanha e a Rússia deterioraram-se consideravelmente, marcando um regresso à dinâmica de hostilidade entre os dois países durante a Segunda Guerra Mundial. O apoio de Berlim à Ucrânia no conflito com Moscou transformou uma relação de respeito mútuo e cooperação, desenvolvida nas décadas após a Guerra Fria, em uma nova fase de tensão e inimizade. A Alemanha, outrora admirada pelos russos pela sua estabilidade econômica e papel de liderança na Europa, é mais uma vez vista como um inimigo.
A gênese da mudança: a invasão russa da Ucrânia
O início da ofensiva russa na Ucrânia, em fevereiro de 2022, marcou um ponto de virada nas relações entre Moscou e Berlim. O apoio explícito da Alemanha a Kiev, expresso através do envio de armas, ajuda econômica e apoio diplomático, desencadeou uma crescente propaganda antialemã nos meios de comunicação russos, influenciando a opinião pública. De acordo com um estudo recente do Levada Center, um dos principais institutos de pesquisa independentes da Rússia, 62% dos russos têm atualmente uma opinião negativa ou algo negativa sobre a Alemanha. Este número marca uma mudança drástica em relação a 2019, quando 61% da população russa tinha uma opinião positiva sobre a Alemanha.
A evolução desta percepção foi alimentada ainda pela propaganda estatal russa que retratava a Alemanha como um adversário direto do povo russo devido ao seu apoio à Ucrânia. Além disso, a ênfase nas memórias históricas relacionadas com a Segunda Guerra Mundial desempenhou um papel fundamental na redefinição da Alemanha como um inimigo histórico e atual, relembrando a devastação causada pela invasão nazista da União Soviética.
A dimensão estratégica e militar da percepção russa
Do ponto de vista militar, a Alemanha foi integrada ao discurso russo como um dos principais intervenientes na coligação ocidental que, juntamente com os Estados Unidos e a OTAN, procura conter e ameaçar a Rússia. A expansão da OTAN para o leste e o envolvimento direto da Alemanha no fornecimento de armas à Ucrânia são vistos em Moscou como uma ameaça direta à segurança nacional russa e à sua influência na região.
A resposta russa a esta percepção foi dupla. Por um lado, Moscou intensificou suas operações militares na Ucrânia, visando especificamente infraestruturas estratégicas e capacidades militares ucranianas reforçadas pela ajuda ocidental. Por outro lado, a Rússia reforçou suas capacidades defensivas e sua retórica antiocidental, identificando a Alemanha como um ator-chave nesta nova “guerra fria” que opõe Moscou ao Ocidente.
O papel da propaganda e a manipulação da opinião pública
Um elemento crucial que contribuiu para a mudança na percepção da Alemanha foi o uso maciço de propaganda por parte do governo russo. Desde o início da invasão da Ucrânia, os meios de comunicação russos intensificaram as mensagens antiocidentais, retratando a Alemanha como um país que traiu seus laços com a Rússia para abraçar uma política de hostilidade. Segundo Lev Gudkov, diretor do Levada Center, esta campanha de desinformação teve um impacto significativo na opinião pública russa, aumentando o ressentimento em relação a Berlim.
LIVRO RECOMENDADO:
Stalingrado: 1942: O início do fim da Alemanha nazista
• Alexander Werth (Autor)
• Em português
• Kindle ou Capa comum
O fato de o Levada Center ter sido rotulado como “agente estrangeiro” pelo governo russo em 2016 é indicativo da crescente repressão das vozes independentes na Rússia. No entanto, os dados coletados pelo instituto oferecem uma visão sobre como a propaganda estatal conseguiu moldar o pensamento coletivo. Sessenta e quatro porcento dos entrevistados disseram que não aprovam que a Alemanha critique a guerra e apoie a Ucrânia, enquanto apenas 11% compreendem as ações do governo alemão. Isto mostra o quão bem sucedida tem sido a narrativa do governo em convencer uma grande maioria da população de que a Alemanha representa uma ameaça direta aos interesses russos.
Implicações geopolíticas de longo prazo
A deterioração das relações entre a Rússia e a Alemanha tem implicações importantes para a estabilidade geopolítica europeia. Por um lado, marca o fim de uma longa fase de colaboração econômica e diplomática que caracterizou as relações entre os dois países desde o fim da Guerra Fria. Berlim, como potência econômica europeia, era um dos principais parceiros comerciais de Moscou e sua dependência dos recursos energéticos russos era há muito tempo um fator de estabilidade nas relações bilaterais. Contudo, com a guerra na Ucrânia, a Alemanha optou por reduzir drasticamente sua dependência energética da Rússia, adotando sanções contra Moscou e reforçando sua participação na aliança ocidental.
Por outro lado, esta evolução contribui para polarizar ainda mais o conflito entre a Rússia e o Ocidente. A Alemanha, como membro central da OTAN e um ator-chave na União Europeia, é agora vista em Moscou não apenas como um adversário político, mas também como um adversário militar. Isto poderia levar a Rússia a reforçar ainda mais as suas posições estratégicas ao longo da sua fronteira ocidental e a intensificar seu envolvimento militar na Ucrânia, em uma tentativa de minar o apoio ocidental.
* * *
O regresso da Alemanha como uma “nação inimiga” na percepção russa representa um exemplo emblemático de como a geopolítica pode ser influenciada não só pelos acontecimentos no terreno, mas também pela propaganda e pela manipulação da opinião pública. A Rússia, através de histórias direcionadas, reposicionou a Alemanha como adversária, usando o passado histórico e a guerra na Ucrânia como catalisadores para esta mudança de percepção.
De uma perspectiva estratégica e militar, este desenvolvimento torna ainda mais difícil a desescalada do conflito entre a Rússia e o Ocidente. Com a Alemanha agora claramente identificada como um dos principais inimigos de Moscou, é provável que o conflito continue a se agravar, com potenciais consequências para a estabilidade europeia e a segurança global.
Publicado no Cf2R.
*Giuseppe Gagliano é presidente do Centro Studi Strategici Carlo de Cristoforis, em Como, Itália. É membro do comitê internacional de assessores científicos do Centre Français de Recherche sur le Renseignement (Cf2R).