Para que uma guerra seja classificada como irrestrita, deve perseguir um objetivo político pelo exercício da violência em sentido amplo, além do domínio militar, combinando elementos de todas as dimensões da segurança; é o que está ocorrendo na guerra europeia.
O caso Vuhledar realça a cruel realidade da Ucrânia. Putin continua a enviar suas tropas, independentemente das perdas. Com a perda da importante base de Vuhledar, os ucranianos teriam perdido a sua “dobradiça” entre a frente de Donbass e o sul. Este é um “exemplo clássico” de guerra de desgaste.
Os russos não pararam e continuaram atacando a cidade com artilharia, foguetes, com bombas planadoras. Semana após semana, mês após mês. E agora já se passou um ano e meio. Um ano e meio de ataques constantes. A base, esta importante fortaleza, estava simplesmente pronta para o desastre.
A 72ª Brigada Mecanizada ucraniana foi forçada a abandonar a cidade para evitar ser completamente destruída no cerco iminente. Sabemos que existem unidades destacadas que lutam há 955 dias. E aos poucos elas vão se desgastando e, em algum momento, não conseguem mais fazer nada.
“Eu chamo isso de drama da guerra de desgaste, e muitos ainda não entendem. Se nada melhorar, se a Ucrânia ainda não tiver nada com que tomar medidas contra as bombas planadoras, se não tiver nada com que revidar a artilharia inimiga com contra-ataques, fogo de artilharia, então você pode ser um combatente de elite, mas será simplesmente destruído com o tempo”, diz o coronel austríaco M. Reisner, que pinta um quadro sombrio para o futuro. “Se a Ucrânia não conseguir escapar deste drama da guerra de desgaste, isto continuará”, acrescenta. Isto também explica os pedidos contínuos do presidente Volodymyr Zelensky por mais apoio e novos sistemas de armas.
Recrutamento
Entretanto, o Kremlin está disposto a continuar a recrutar a um ritmo sustentado. Atualmente, entre 30.000 e 35.000 homens juntam-se ao Exército russo todos os meses, e aparentemente ainda existem sistemas de armas suficientes disponíveis.
De acordo com avaliações internacionais, presume-se que a Rússia será capaz de resistir durante pelo menos mais dois ou três anos. A questão é: conseguirá a Ucrânia aguentar tanto tempo? A resposta a isto pode ser encontrada em Bruxelas e na Casa Branca: “O Ocidente deve decidir como quer proceder com a Ucrânia”. A UE finalmente admite: as sanções não funcionaram e tentam explicar por que… sem sucesso.
E é aqui que voltamos à Guerra Irrestrita, explicada diversas vezes nesta coluna: “A Guerra da Ucrânia pode ser analisada a partir do conceito de ‘Guerra Irrestrita’” seguindo o livro de mesmo título que mandamos traduzir, na Escola Superior de Guerra Conjunta das Forças Armadas da Argentina, do chinês para o espanhol. Os autores são Qiao Liang e Wang Xiangsui. É um livro sobre estratégia militar, escrito em 1999, que expõe como uma nação como a China poderia derrotar um adversário tecnologicamente superior através da guerra em todas as áreas de poder, para além do militar.
Entre as operações distintas da guerra, podemos citar a guerra comercial. Pode-se dizer que há duas décadas esta expressão era uma frase retórica e descritiva mas, hoje, tornou-se uma ferramenta indispensável nas mãos de muitos países para travar guerras não militares. Assim, hoje podemos dizer que a guerra econômica do Ocidente contra Moscou, após a invasão da Ucrânia, teve sucesso limitado a curto prazo.
Sanções contra a Rússia
De 26 a 27 de setembro de 2024, a Escola Fletcher da Universidade Tufts organizou um workshop sobre “Implicações globais da guerra econômica entre a Rússia e o Ocidente”. Reuniu duas dezenas de especialistas, tanto acadêmicos como profissionais, para discutir o impacto das sanções abrangentes impostas à Rússia por cerca de 50 países após a invasão em grande escala da Ucrânia. A reunião não deu uma resposta decisiva à questão-chave: as sanções funcionam? E à questão relacionada: devem ser eliminadas, ampliadas ou intensificadas?
Em parte, isto se deve ao fato de os líderes ocidentais terem sido vagos na definição dos alvos das sanções, que mudaram ao longo do tempo. Inicialmente, o objetivo era dissuadir a Rússia de lançar a operação militar. Não funcionou. Portanto, o objetivo era então colapsar a economia russa, forçar uma corrida aos bancos e o colapso do rublo, o que, esperava-se, levaria as elites russas e/ou o povo russo a rebelar-se contra Putin e forçá-lo a abandonar a guerra. Por uma semana ou duas, pareceu funcionar. Mas o Banco Central russo impôs controles rigorosos para impedir as saídas de capital e acabou com a convertibilidade do rublo. A economia russa não entrou em colapso.
LIVRO RECOMENDADO:
Economic War: Ukraine and the Global Conflict Between Russia and the West
• Maximilian Hess (Autor)
• Edição Inglês
• Kindle ou Capa dura
Depois disso, o foco voltou-se para o desgaste, aumentando o custo para o Kremlin, na esperança de que isso o torne mais disposto a sentar-se à mesa de negociações e acabar com a guerra. Ao reduzir os objetivos declarados, os líderes podem continuar a insistir que as sanções estão funcionando.
Maximilian Hess, autor do livro Economic War: Ukraine and the Global Conflict between Russia and the West (Guerra Econômica: a Ucrânia e o Conflito Global entre a Rússia e o Ocidente, sem tradução em português), argumentou que Putin tem preparado a Rússia para uma guerra econômica com o Ocidente desde a aprovação da Lei Magnitsky em 2012.
Historicamente, as sanções só funcionaram em cerca de um terço dos casos. O sucesso só é alcançado se forem multilaterais e envolverem a maioria dos principais intervenientes econômicos. No caso da Rússia, houve uma solidariedade inesperada entre os europeus e os Estados Unidos, o que afetou a Rússia dada a sua dependência das exportações de petróleo e gás para a Europa. No entanto, apenas algumas outras nações aderiram às sanções (Japão, Coreia do Sul, Singapura, Austrália). Entretanto, China, Índia, Turquia e outros aumentaram seu comércio com a Rússia, comprando o petróleo que já não fluía para a Europa.
Entretanto, Craig Kennedy, de Harvard, sugeriu que as sanções podem ser um jogo de soma negativa, prejudicando tanto o país que as impõe como o alvo. Isto foi certamente verdade no caso da Alemanha, atingida por um aumento de 400% no preço do gás natural em 2022. Alguns dizem que a Alemanha deu um tiro no próprio pé… (ver https://tradingeconomics.com/commodity/eu-natural-gas).
O organizador Daniel Drezner observou que houve várias consequências não intencionais cujas ramificações ainda não foram reveladas. Estas incluem a emergência de uma “frota paralela” de petroleiros não segurados que transportam petróleo russo para a Índia e a China e a expansão de uma rede paralela de transações financeiras que facilita a evasão de sanções por parte da Rússia.
Ao tornar mais difícil para os russos exportarem capital, as sanções aumentaram o investimento na economia russa e ligaram ainda mais estreitamente a elite empresarial, que era a principal apoiadora da ocidentalização, ao Kremlin. A guerra institucionalizou ainda mais a militarização da economia, da política e da sociedade da Rússia, e poderá ser muito difícil tirar o país desse caminho em um futuro pós-Putin.
Finalmente, Drezner apontou uma importante consequência não intencional para a Rússia: a guerra uniu o Ocidente, levou a Suécia e a Finlândia a se juntarem à OTAN e a Alemanha a se rearmar. Isto desfaz um objetivo estratégico russo de décadas de separar a Europa e os Estados Unidos.
Os analistas concordaram com as afirmações de que as sanções, apesar de todas as suas limitações, estão comprimindo as perspectivas de crescimento econômico a longo prazo da economia russa, particularmente no que diz respeito ao acesso ao investimento e à tecnologia.
É difícil dizer como (e quando) este conflito terminará ou qual será a situação final.
Para que uma guerra seja classificada como irrestrita, deve perseguir um objetivo político através do exercício da violência em sentido lato, ou seja, ir além do domínio militar para combinar irrestritamente elementos das diferentes dimensões da segurança, ultrapassando suas fronteiras. É isto o que está se desenvolvendo na guerra europeia.
Publicado no La Prensa.