O impacto negativo da doutrina da OTAN no conflito e no Exército ucraniano

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O presidente dos EUA, Joe Biden (dir.) com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, à margem da Cúpula da OTAN em Vilnius, 12 de julho de 2023 (Andrew Caballero-Reynolds/AFP/Getty Images).

Por Giuseppe Gagliano*

O presidente dos EUA, Joe Biden (dir.) com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, à margem da Cúpula da OTAN em Vilnius, 12 de julho de 2023 (Andrew Caballero-Reynolds/AFP/Getty Images).

A doutrina da OTAN se mostrou totalmente equivocada na Ucrânia, e se a aliança não refletir seriamente sobre seus erros, seu poder de dissuasão sofrerá um golpe fatal, abrindo caminho para conflitos incontroláveis no futuro.


A Ucrânia cometeu um erro fatal ao confiar totalmente na OTAN, acreditando que esta aliança militar representava uma potência invencível. Este erro certamente permitiu que seus líderes enriquecessem e incentivou a corrupção generalizada em todos os níveis do país. No entanto, esta escolha teve consequências devastadoras em nível coletivo e nacional, conduzindo a uma crise econômica, social e demográfica de proporções catastróficas.

A destruição material e as perdas humanas causadas pelo conflito são evidentes, mas o que é menos visível é o impacto negativo da subordinação militar a uma estratégia que não só era inadequada para a Ucrânia, mas cujos acontecimentos mostraram que era perigosamente errada. A OTAN impôs a Kiev um modelo operacional e tático baseado em sua própria doutrina militar, ou seja, construído sobre pilares conceituais que já não refletem a realidade.

O primeiro destes pilares é a crença de que a superioridade tecnológica absoluta garante o domínio incontestável no campo de batalha. O segundo pilar é que a capacidade de infligir perdas decisivas na fase inicial do conflito é um fator de sucesso. A terceira baseia-se na ideia de que a vitória pode ser alcançada rapidamente. Estas suposições operam em um conflito assimétrico, caracterizado por uma disparidade esmagadora entre as forças envolvidas. Mas revelaram-se ultrapassadas ​​no contexto do conflito ucraniano.

A doutrina estratégica dos Estados Unidos, que se baseia nestes três pilares, visa impedir o surgimento de uma potência equivalente. No entanto, muitas vezes provou ser ineficaz durante as operações americanas. O único caso em que se pode falar de sucesso total é a intervenção na Sérvia em 1999, que resultou na separação do Kosovo da Sérvia – e na criação de um Estado subordinado – e no estabelecimento de uma das maiores bases da OTAN, Camp Steel, no coração dos Balcãs.

Em outros conflitos, porém, essa doutrina não produziu os resultados esperados. No Afeganistão, após 20 anos de guerra, assistimos a uma retirada desastrosa de Washington. No Iraque, a rápida derrota do regime de Saddam Hussein entregou o país à influência do Irã, um inimigo ferrenho dos Estados Unidos. Na Líbia, o assassinato de Gaddafi dividiu o país em dois, com uma parte controlada pelo Ocidente mergulhada no caos e a outra alinhada com a Rússia.

Na Ucrânia, o conflito iniciado em 24 de fevereiro de 2022 é de natureza simétrica, contrastando com o modelo assimétrico em que se baseia toda a doutrina e conceito de operações da OTAN, até aos aspectos logísticos e industriais. Embora a Rússia tenha uma clara vantagem em termos de equilíbrio de poder sobre a Ucrânia, o enorme apoio prestado pelos 36 países membros da OTAN reequilibrou a situação.

O objetivo dos Estados Unidos nunca foi derrotar a Rússia no terreno, mas sim enfraquecê-la política e militarmente. No entanto, quando o Exército ucraniano se revelou incapaz de cumprir a tarefa que lhe foi atribuída, a OTAN aumentou o seu envolvimento até assumir o controle estratégico e operacional da guerra. Um dos principais problemas que então surgiram foi a dificuldade de impor os padrões da OTAN às forças ucranianas, porque dificilmente são compatíveis com o modelo operacional soviético em que se baseava o Exército de Kiev. À medida em que o equipamento da era soviética foi destruído e substituído por equipamento ocidental e o comando americano tornou-se cada vez mais onipresente, esta contradição tornou-se flagrante. O modelo da OTAN tem consistência interna, uma estrutura organizacional de unidades e equipamentos específicos e um modelo operacional particular. Aplicar este modelo a um Estado despreparado no meio de uma guerra de alta intensidade revelou-se quase impossível.


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A entrega de equipamentos ocidentais causou problemas na formação do pessoal, que foi instruído de forma apressada e inadequada, o que levou a graves dificuldades logísticas como a manutenção e reparação de equipamentos, para as quais o Exército ucraniano não estava preparado. Além disso, a grande variedade de sistemas de armas fornecidos pelos países ocidentais complicou ainda mais a situação. Embora formalmente padronizados de acordo com os padrões da OTAN, cada um destes sistemas tinha muitas especificidades, criando problemas de gestão. Por exemplo, algumas peças de artilharia de determinado calibre não eram capazes de utilizar todas as munições desse mesmo calibre, causando dificuldades de abastecimento. Isso tornou a logística ainda mais complexa.

O planejamento operacional e a ação tática também foram influenciados negativamente pela adoção de modelos da OTAN, para os quais o pessoal ucraniano não estava suficientemente preparado. A maioria dos soldados ucranianos recebeu um treinamento mínimo na Europa e, considerando que o Exército de Kiev conta hoje com cerca de 600.000 a 700.000 homens nas linhas de frente, apenas uma pequena fração foi treinada de acordo com os protocolos da OTAN, um número totalmente insuficiente. Além disso, o treinamento ministrado concentrou-se principalmente no uso de sistemas de armas específicos, sem fornecer o treinamento tático e operacional necessário para seu emprego em nível de unidade. Isto causou um desalinhamento entre o planejamento do comando da OTAN e as capacidades reais do Exército ucraniano.

Um exemplo notável deste desalinhamento é a fracassada ofensiva ucraniana no sudeste, onde o exército, equipado com veículos Bradley e tanques Leopard, foi forçado a lançar um ataque quando estava claro que as condições para o sucesso não estavam presentes. As forças russas estabeleceram uma formidável linha defensiva, conhecida como “Linha Surovikin”, e o Exército ucraniano não tinha nem o apoio aéreo e nem a artilharia necessários para conduzir tal ofensiva com sucesso. O resultado foi um fracasso total, com perdas significativas.

Outro exemplo recente desta contradição ocorreu na região de Kursk, onde as forças ucranianas entraram em território russo utilizando pequenas unidades sabotadoras: o valor estratégico da operação revelou-se insignificante. Embora o ataque tenha sido temporariamente bem sucedido, os danos infligidos às forças russas foram mínimos, enquanto as perdas ucranianas foram muito elevadas – cerca de 6.000 mortos e feridos em poucos dias. O ataque não distraiu as forças russas do Donbass, que continua a ser o centro de gravidade do conflito. Nesta frente, as defesas ucranianas foram gradualmente corroídas e agora restam apenas algumas fortalezas defensivas, para além das quais não existem obstáculos naturais ou defesas fortificadas até o Dnieper. O centro logístico estratégico de Pokrovsk fica agora a poucos quilômetros das unidades russas e, mais ao norte, a linha fortificada Slavyansk-Kramatorsk poderá ser a próxima a cair.

***

O conflito em Donbass é decisivo para o resultado da guerra e as forças russas, graças à sua superioridade na artilharia e na aviação, estão acelerando o seu progresso. O ataque ucraniano a Kursk, longe do ponto decisivo da batalha, apenas alongou a linha da frente para norte, sem proporcionar qualquer vantagem estratégica significativa. Ao analisar esta situação, é claro que a doutrina estratégica da OTAN teve efeitos negativos para a Ucrânia, tanto política como militarmente.

Uma derrota de Kiev não representaria apenas um fracasso político para a Aliança Atlântica, mas também colocaria em questão a sua eficácia militar. Se a OTAN não refletir seriamente sobre estes erros, seu poder de dissuasão poderá sofrer um golpe fatal, abrindo caminho para uma série de conflitos incontroláveis ​​no futuro.


Publicado no Cf2R.

*Giuseppe Gagliano é presidente do Centro Studi Strategici Carlo de Cristoforis, em Como, Itália. É membro do comitê internacional de assessores científicos do Centre Français de Recherche sur le Renseignement (Cf2R).

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