Ucrânia: os perigos de uma narrativa descolada da realidade

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Alexey Belkin/Russian Look/News.ru/Picture Alliance.

Por Giuseppe Gagliano*

Alexey Belkin/Russian Look/News.ru/Picture Alliance.

A busca incessante de controle sobre a narrativa global pode fazer com que o Ocidente perca de vista a realidade, uma desconexão que pode transformar a guerra de informação em um conflito armado incontrolável.


A propaganda de guerra e o engodo são tão antigos quanto o tempo. Nada de novo, então. Contudo, o que é realmente inovador é que a guerra de informação já não ocorre como complemento às ações militares operacionais, mas se tornou um fim em si mesma. O Ocidente passou a considerar que “possuir” a narrativa vencedora – e apresentar a do “outro” como desajeitada, dissonante e extremista – é mais importante do que confrontar os fatos no terreno. Dessa perspectiva, apreender a narrativa vencedora significa vencer. Assim, a “vitória” virtual triunfa sobre a realidade “real”.

Desta forma, a guerra torna-se um cenário para impor o alinhamento ideológico através de uma ampla aliança global, e fazê-lo através de uma mídia complacente. Para os ocidentais, este objetivo goza de maior prioridade, por exemplo, do que garantir capacidade de produção suficiente para apoiar objetivos militares. O desenvolvimento de uma “realidade” imaginada tem precedência sobre a configuração da realidade no terreno.

O fato é que esta abordagem cria armadilhas de falsas realidades e falsas expectativas, das quais se torna quase impossível escapar (quando se torna necessário), precisamente porque a narrativa imposta ossificou o sentimento público. A possibilidade de um Estado mudar de rumo à medida em que os acontecimentos se desenrolam é reduzida ou perdida, e a leitura dos fatos no terreno é desviada para o politicamente correto e longe da realidade.

O efeito cumulativo de uma “narrativa virtual vencedora”, no entanto, acarreta o risco de deslizar gradualmente para uma “guerra real” não intencional. Tomemos, por exemplo, a incursão orquestrada e equipada pela OTAN na região simbolicamente significativa de Kursk. Em termos de “narrativa vencedora”, seu apelo ao Ocidente é óbvio: a Ucrânia “leva a guerra para a Rússia”. Se as forças ucranianas tivessem conseguido capturar a central nuclear de Kursk, Kiev teria uma importante carta de negociação para jogar e poderia ter resultado na retirada das forças russas da linha da frente de Donbass, cada vez mais em colapso.

Além disso, em termos de guerra de informação, os meios de comunicação ocidentais estavam prontos e alinhados para mostrar o presidente Putin como “congelado” pela incursão surpresa e “oscilando” sob a ansiedade que teria causado na opinião pública russa, levando-a a voltar-se contra Putin, que estaria furioso após a humilhação sofrida. William Burns, o diretor da CIA, anunciou que a Rússia não ofereceria concessões à Ucrânia até que o excesso de confiança de Putin fosse desafiado e Kiev pudesse demonstrar sua força. Outras autoridades dos EUA acrescentaram que a incursão em Kursk por si só não traria a Rússia à mesa de negociações; seria necessário construir outras operações ousadas para abalar a compostura de Moscou.

Obviamente, o objetivo da operação era mostrar que a Rússia era frágil e vulnerável, em linha com a narrativa de que a qualquer momento este país poderia desmoronar, deixando obviamente o Ocidente como vencedor. A incursão em Kursk foi, portanto, uma grande aposta da OTAN… mas foi perdida!

Não é difícil ver como esta visão de mundo unidimensional pode ter contribuído para que os Estados Unidos e os seus aliados interpretassem mal o impacto da “ousada aventura” em Kursk sobre os russos comuns. “Kursk” tem uma história. Em 1943, a Alemanha invadiu a Rússia através desta região para criar distração das próprias perdas e foi finalmente derrotada na Batalha de Kursk. O regresso das forças hostis com tanques alemães a este espaço deve ter deixado muitas pessoas sem palavras; O atual campo de batalha em torno da cidade de Sudzha é precisamente o local onde, em 1943, os 38º e 40º Exércitos soviéticos recuaram para preparar uma contraofensiva contra o 4º Exército alemão.

Ao longo dos séculos, a Rússia foi atacada várias vezes no seu flanco ocidental pelo Ocidente, notavelmente por Napoleão e Hitler. Não é de surpreender que os russos sejam muito sensíveis a esta história sangrenta. William Burns e outros pensaram sobre isso? Talvez imaginassem que se a OTAN invadisse a Rússia, Putin se sentiria “desafiado” e, com mais pressão, se afastaria e aceitaria um resultado “congelado” na Ucrânia e na sua entrada na OTAN?

Em última análise, a mensagem enviada pelos serviços ocidentais foi que o Ocidente (OTAN) estava atacando a Rússia. Este é o significado da escolha deliberada da região de Kursk. Basicamente, a mensagem de Burns era que a Rússia deveria se preparar para a guerra com a OTAN.


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Para ser claro, a “narrativa vencedora” sobre a operação Kursk não é nem engodo nem simulação. Os acordos de Minsk foram exemplos de engodo, mas se basearam em uma estratégia racional (ou seja, foram historicamente normais). As fraudes de Minsk visavam ganhar tempo para o Ocidente fortalecer a militarização da Ucrânia antes de atacar Donbass. O engodo funcionou, mas apenas à custa de uma quebra de confiança entre a Rússia e o Ocidente.

Kursk, por outro lado, é de natureza diferente. A narrativa desenvolvida baseia-se em noções de excepcionalismo ocidental. O Ocidente percebe-se como estando prestes a avançar para “o lado certo da História”.

As “narrativas vencedoras” afirmam essencialmente, em formato secular, a inevitabilidade da missão escatológica ocidental de redenção e convergência globais. Neste novo contexto narrativo, os fatos no terreno se tornam meros inconvenientes e não realidades a levar em conta. Este é o calcanhar de Aquiles deles.

Sem dúvida, a escolha de uma ofensiva na região de Kursk pareceu inteligente e ousada para Londres e Washington. Mas com que resultado? Não alcançou nem o objetivo de tomar a central nuclear de Kursk e nem o de manter as tropas russas afastadas da linha da frente de Donbass. Além disso, a presença ucraniana na região de Kursk será eliminada mais cedo ou mais tarde.

O que esta operação fez, contudo, foi pôr fim a qualquer perspectiva de um possível acordo negociado na Ucrânia. A desconfiança da Rússia com o Ocidente é agora absoluta. Isto fez com que Moscou estivesse mais determinada do que nunca a levar a cabo sua operação especial. A presença visível de equipamento alemão em Kursk despertou velhos fantasmas e consolidou a convicção das intenções hostis do Ocidente para com a Rússia.

O Ocidente está agora preso em sua própria narrativa “vitoriosa”. Slogans vazios e declarações de propaganda, embora pareçam ter tido um impacto a curto prazo na população, correm o risco de exacerbar o conflito em vez de resolvê-lo. O que o Ocidente subestimou foi a profunda memória histórica e a resiliência cultural da Rússia, que responde não só às operações militares, mas também aos símbolos e sinais, percebidos como ameaças existenciais.


Esta estratégia baseada na superioridade narrativa pode levar a uma escalada não planejada, onde a realidade no terreno fica fora de controle. A obsessão em controlar a narrativa levou a uma simplificação excessiva dos conflitos, ignorando a complexidade histórica, cultural e geopolítica das situações. A retórica ocidental de “levar democracia” pode se tornar uma justificativa vazia para ações que não levam em conta as dinâmicas locais e que, de fato, podem reforçar o nacionalismo e a hostilidade que afirmam erradicar.

O paradoxo é que a busca de controle total sobre a narrativa global pode fazer com que o Ocidente perca de vista a realidade, criando um ciclo vicioso em que cada ação enérgica justifica uma reação defensiva e cada narrativa vencedora gera mais divisão. A desconexão entre a narrativa e a realidade no terreno pode levar a graves erros de cálculo, que podem transformar a guerra de informação em um conflito armado incontrolável.

Em conclusão, à medida em que o Ocidente se concentra na criação de uma realidade imaginada onde é sempre o vencedor, corre o risco de ignorar as lições da História. A confiança exclusiva em narrativas vencedoras e a recusa em confrontar a realidade concreta podem levar não só a fracassos estratégicos, mas também a consequências devastadoras para a estabilidade global.


Publicado no Cf2R.

*Giuseppe Gagliano é presidente do Centro Studi Strategici Carlo de Cristoforis, em Como, Itália. É membro do comitê internacional de assessores científicos do Centre Français de Recherche sur le Renseignement (Cf2R).

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