Decisões inconscientes em situações de disparo contagioso: Análise das implicações para o treinamento policial

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Equipe do GATE, Grupo de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Cortesia do coronel Valmor Racorti).

Por Valmor Saraiva Racorti e Gabriel André Cardoso Ramos*

Equipe do GATE, Grupo de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Cortesia do coronel Valmor Racorti).

O treinamento baseado em cenários realistas, simulando as condições encontradas em operações reais, ajuda a reduzir a ocorrência de disparos contagiosos, promovendo maior discernimento e controle entre os policiais.


Introdução

A tomada de decisão em situações críticas, especialmente no contexto policial, é um processo que muitas vezes ocorre em frações de segundo. Em cenários em que a vida de policiais e civis está em risco, as decisões devem ser rápidas, precisas e, muitas vezes, inconscientes. Este artigo examina o fenômeno do “disparo contagioso”, no qual o disparo de uma arma por um policial pode desencadear uma resposta automática e semelhante por parte de outros policiais, mesmo na ausência de um perigo iminente.

O conceito de disparo contagioso refere-se ao fenômeno no qual o disparo de uma arma de fogo, realizado por um policial, ocasiona uma reação em cadeia, levando outros policiais a também dispararem suas armas, independentemente da avaliação individual da necessidade de tal ação. Esse comportamento é geralmente impulsionado por reflexos automáticos e pela pressão do ambiente, onde o som ou a visão de um disparo pode ser interpretado como um sinal de ameaça iminente, levando a uma resposta instintiva e coletiva. O disparo contagioso é, portanto, uma resposta reativa e não deliberada, que pode ocorrer mesmo quando a ameaça real é ambígua ou inexistente.

Esse fenômeno, embora amplamente discutido na mídia e entre observadores policiais, carece de uma investigação empírica robusta. Estudos como Contagious fire? de White e Klinger (2012) destacam que, apesar da popularidade do termo, faltam dados concretos que documentem sua ocorrência e características.

Tomada de decisão inconsciente: o papel da intuição

Malcolm Gladwell, em Blink: A decisão num piscar de olhos (2016), apresenta uma análise aprofundada sobre como as pessoas tomam decisões rápidas e muitas vezes inconscientes em situações de alta pressão. O autor argumenta que essas decisões são frequentemente baseadas em padrões de reconhecimento desenvolvidos ao longo do tempo, por meio da experiência e do conhecimento acumulado.

Gladwell afirma que “a mente é capaz de tomar decisões complexas e importantes em frações de segundo, muitas vezes sem a interferência da consciência”. Esse tipo de julgamento rápido, embora eficaz em muitas situações, pode ser problemático quando aplicado em cenários cuja avaliação precisa das circunstâncias é crucial, como em confrontos armados.

Disparo contagioso: evidências experimentais e análises empíricas

No estudo de DeCarlo et al. (2024), 169 policiais de 11 departamentos diferentes foram submetidos a um experimento que simulava uma situação potencialmente letal. Os policiais foram divididos em dois grupos: no grupo experimental, os policiais participantes estavam entre colegas que disparavam suas armas ao ver um suspeito sacar um celular, enquanto no grupo controle, os colegas não disparavam.


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Os resultados mostraram que os policiais no grupo experimental foram significativamente mais propensos a disparar suas armas (92%) em comparação com o grupo controle (49%). Além disso, quando os policiais disparavam, aqueles no grupo experimental disparavam uma média de 3,21 tiros, comparado com 1,13 tiros no grupo controle.

Essas descobertas trazem evidências claras de que o comportamento de um policial ao disparar sua arma pode influenciar diretamente os colegas ao seu redor, reforçando a tese do disparo contagioso. Entretanto, White e Klinger (2012) em Contagious fire? argumentam que, embora o conceito tenha ganhado popularidade, a realidade empírica desse fenômeno ainda é contestada. Cabe destacar a necessidade de duas condições essenciais para a caracterização do disparo contagioso: a participação de múltiplos atiradores e muitos disparos, sendo a resposta dos policiais secundários muitas vezes mais reativa do que determinada.

Análise e discussão

Já os resultados do estudo de DeCarlo et al. (2024) indicam que a presença de disparo contagioso entre policiais é um fenômeno real e mensurável. Quando o grupo de controle disparava suas armas, os policiais participantes não apenas eram mais propensos a disparar, mas também a disparar mais tiros. Isso sugere que, em situações de alto estresse, a resposta de disparar uma arma pode ser desencadeada não apenas pela percepção direta do perigo, mas também pelo comportamento de outros policiais no ambiente.

As descobertas podem ser interpretadas à luz das teorias apresentadas por Gladwell (2016), que argumenta que, em situações de alta pressão, as decisões muitas vezes ocorrem de maneira inconsciente, baseadas em padrões de comportamento previamente estabelecidos. Em Blink, Gladwell observa que “a intuição, muitas vezes, age de forma automática e rápida, com pouco ou nenhum controle consciente” (2016). No contexto do disparo contagioso, isso implica que os policiais podem estar reagindo instintivamente aos tiros de seus colegas, sem passar por um processo deliberado de decisão.

O incidente ocorrido em 2021, envolvendo o Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD, Los Angeles Police Department), oferece um exemplo concreto da complexidade e gravidade do fenômeno do disparo contagioso em situações reais. No caso em questão, um homem armado com uma faca de açougueiro, que apresentava sinais de disfunção mental, ameaçava a vizinhança. Após várias tentativas de verbalização sem sucesso, o suspeito avançou em direção aos policiais com a faca erguida, em posição ameaçadora.

Diante da situação, um dos policiais decidiu utilizar uma arma de menor potencial ofensivo, disparando um projétil de 40 mm (munição de borracha e espuma prensada). No entanto, o som do disparo, que se assemelha ao de uma arma de fogo real, desencadeou uma resposta instintiva em dois outros policiais, que acabaram disparando suas armas letais, resultando na morte do suspeito. Este caso ilustra como o disparo contagioso pode ocorrer em situações cujo controle da resposta é fundamental para evitar o uso indevido da força letal.

O exemplo anterior sugere que o disparo contagioso pode ser dividido em três tipos mais recorrentes:

1. Descontrole da consciência situacional: Em situações de troca de tiros, o policial pode começar a disparar simplesmente por ouvir ou ver disparos, mesmo sem a certeza de que estes representam uma ameaça real. Este descontrole da consciência situacional é exacerbado pelo estresse intenso e pela pressão do momento, levando a uma resposta automática e, muitas vezes, desnecessária.

2. Afirmação pessoal: Alguns policiais podem disparar suas armas para se autoafirmarem como participantes ativos de uma ocorrência de troca de tiros. Neste caso, o disparo não é necessariamente uma resposta a uma ameaça percebida, mas sim um reflexo do desejo de ser parte da ação, o que pode ter sérias consequências para a segurança de todos os envolvidos.

3. Indução por disparos alheios: O policial que, ao perceber uma ameaça real, acaba realizando disparos sem a devida precisão ou necessidade, induzido pelo som ou pela visão dos disparos realizados por seus colegas. Respostas como esta podem resultar em uma escalada desnecessária da força, em que cada disparo adicional contribui para um ciclo de reações que pode culminar em tragédia.


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A análise desses tipos de disparo contagioso enfatiza a importância de treinar policiais para manter o controle da consciência situacional e a capacidade de tomada de decisão consciente, mesmo sob pressão extrema. Programas de treinamento que enfatizem a dissociação da resposta individual do comportamento do grupo, bem como o desenvolvimento de habilidades para avaliar a necessidade real do uso da força, são essenciais para minimizar os riscos associados ao disparo contagioso.

Conclusão

Examinamos a interseção entre a tomada de decisões inconscientes e o disparo contagioso em situações policiais, destacando as implicações para o treinamento e a prática policial. As descobertas sugerem que a resposta instintiva ao fogo de colegas policiais é um fenômeno real que pode aumentar o risco de uso indevido da força letal, embora sua prevalência e causas exatas ainda exijam mais investigação.

Para mitigar esse risco, é fundamental que o treinamento policial seja reformulado para enfatizar a tomada de decisões conscientes e controladas, especialmente em cenários de alta pressão. O treinamento baseado em cenários realistas, que simule as condições encontradas em operações reais, pode ajudar a reduzir a ocorrência de disparos contagiosos, promovendo uma cultura de maior discernimento e controle entre os policiais.

Desenvolver e aplicar estratégias de mitigação para os três tipos recorrentes de disparo contagioso pode contribuir significativamente para a redução de incidentes fatais que ocorrem devido a respostas instintivas ocorridas em lugar  de respostas ponderadas e deliberadas.

O estudo reforça a importância de compreender e abordar os processos inconscientes que influenciam o comportamento policial, não apenas para melhorar a precisão técnica, mas também para promover uma maior consciência situacional e controle em situações críticas.

Referências

DECARLO, John; DLUGOLENSKI, Eric; MYERS, David. An experimental test of the contagious fire thesis in policing. Journal of Criminal Justice, vol. 93, agosto de 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jcrimjus.2024.102215.

GLADWELL, Malcolm. Blink: A decisão num piscar de olhos. 240 páginas. 2016, Editora Sextante.

WHITE, Michael D.; KLINGER, David. Contagious Fire? An Empirical Assessment of the Problem of Multi-shooter, Multi-shot Deadly Force Incidents in Police Work. Sage Journals: Crime and Delinquency, 24 de junho de 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0011128708319581.


*Valmor Saraiva Racorti é coronel da PMESP e instrutor pela Universidade do Texas/Programa ALERRT. Comandou o Batalhão de Operações Especiais, que compreende o GATE e o COE. Realizou o Curso Preparatório de Formação de Oficiais em 1990-1991. Graduado em Direito pela UNISUL, é bacharel, mestre e doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança “Cel PM Nelson Freire Terra”. Foi comandante de Pelotão ROTA no 1º BPChq de 1994 a 2006, Chefe Operações do COPOM em 2006, Oficial de Segurança e Ajudante de Ordens do Governador do Estado de 2007 a 2014, Comandante de Companhia ROTA no 1º BPChq de 2014 a 2016 e Comandante do GATE de 2016 a 2019. Tendo atuado em mais de 500 incidentes críticos, atualmente comanda o Policiamento de Choque da PMESP (ROTA, ROCAM, CHOQUE, GATE, COE, CANIL e REGIMENTO).

*Gabriel André Cardoso Ramos é primeiro-tenente da PMESP formado pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco. Trabalhou como Comando Força Patrulha na região metropolitana da cidade de São Paulo, tendo atuado também no 5º Batalhão de Ações Especiais de Polícia por dois anos. Atualmente é Comandante de Equipe na Unidade de Intervenção Tática do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE-SP), tendo como missão principal o resgate de reféns e contraterrorismo.

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3 comentários

  1. Assunto muito relevante para o serviço policial, as vezes, o simples fato de tratar deste tema em preleções já ajuda a trazer esse discernimento em ocorrências de disparo de arma de fogo.

    1. Parabéns pela iniciativa de trazer à tona de forma científica a análise do tema! Acredito que somente através da pesquisa e discussão técnica será possível desmistificar condutas e evitar opiniões distorcidas por parte de pseudoanalistas e especialistas sem conhecimento de causa!!…opinião não é ciência!

  2. Excelente explanação sobre um assunto de supra importância no âmbito de segurança pública e privada.

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