Ofensiva ucraniana na Rússia: sucesso tático, mas erro estratégico

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Russos disparam canhões autopropulsados Giatsint-S em direção a posições ucranianas em local não revelado na região de Kursk, Rússia, 18 de agosto de 2024 (Serviço de Imprensa do Ministério da Defesa da Rússia/AP).

Por Olivier Dujardin*

Russos disparam canhões autopropulsados Giatsint-S em direção a posições ucranianas em local não revelado na região de Kursk, Rússia, 18 de agosto de 2024 (Serviço de Imprensa do Ministério da Defesa da Rússia/AP).

A Ucrânia parece favorecer manobras publicitárias, mas guerras não são vencidas por furos de reportagem; é questionável se essa abordagem se deve à dependência do país dos patrocinadores estrangeiros ou se Kiev passou a acreditar na própria propaganda.


A concentração de forças ucranianas na região de Sumy não passou despercebida, como relataram diversas fontes. O que surpreendeu, porém, foi o uso inesperado desta força militar. Poder-se-ia pensar que este agrupamento pretendia reduzir a saliência criada pelos russos na região de Kharkov, ou que era uma preparação para um hipotético ataque russo no setor Sumy, uma possibilidade mencionada pelas autoridades ucranianas há algumas semanas.

A escolha do Estado-Maior ucraniano para invadir o território russo, a primeira desde 1941, apanhou a todos de surpresa, a começar pelos russos, mas também pelos aliados mais próximos da Ucrânia. Esta é a primeira verdadeira surpresa militar do ano de 2024. Na verdade, dada a falta crônica de tropas na frente e as dificuldades dos ucranianos em estabilizar o ataque russo no Donbass, não parecia óbvio que Kiev escolheria abrir uma nova frente.

O sucesso tático desta operação é inegável. A Ucrânia rapidamente assumiu o controle de várias dezenas de localidades, às vezes deslocando-se mais de 30 km dentro do território russo. Este ataque relâmpago foi realizado em um setor vulnerável e mal protegido da fronteira russa, em coordenação com ataques maciços de drones na região de Kursk. Foram mobilizados meios significativos de guerra eletrônica para neutralizar ao máximo as capacidades dos drones russos, enquanto uma defesa terra-ar significativa, incluindo duas baterias Patriot, foi colocada em prática para cobrir o avanço das tropas.

A Ucrânia mobilizou cinco brigadas para esta operação: a 61ª Brigada Mecanizada destacada da frente de Kharkov, a 80ª Brigada de Assalto Aéreo retirada da frente de Bakhmut, a 22ª Brigada Mecanizada retirada da frente Kleshcheevka, a 116ª Brigada Mecanizada retirada da frente de Volchansk, e a 103ª Brigada Territorial inicialmente estacionada em Sumy. Na reserva, também foi mobilizada a 88ª Brigada Mecanizada, responsável pela proteção da fronteira norte. Isto representa um número de 15.000 a 20.000 soldados ucranianos envolvidos na operação. Acredita-se que cerca de 10.000 a 12.000 homens tenham atravessado a fronteira, muito mais do que os mil homens inicialmente anunciados pelo Ministério da Defesa russo.

As forças ucranianas encontraram pouca resistência, esmagando as poucas centenas de guardas de fronteira russos e infligindo pesadas baixas. No entanto, também sofreram, com a destruição de várias dezenas de veículos, principalmente devido à intervenção da aviação russa, helicópteros de combate e munições ocultas. Ao mesmo tempo, as forças ucranianas estão aumentando as incursões em território russo, como nas regiões de Belgorod e Kursk, com, entre outros, o apoio de voluntários georgianos.

Esta ofensiva ocorreu simultaneamente com uma tentativa de desembarque na península de Kinbourn, no Mar Negro. No entanto, esta operação foi rapidamente adiada. Os cerca de uma dúzia de barcos envolvidos nesta tentativa receberam pouca cobertura midiática de Kiev, que simplesmente transmitiu um vídeo mostrando os barcos no mar [1].

Qual é o objetivo deste ataque?

O objetivo estratégico deste ataque ao território russo permanece obscuro. Várias hipóteses foram apresentadas para explicar esta iniciativa:

  • A operação teria como objetivo forçar os russos a limparem a frente de Donbass, aliviando assim a pressão sobre as forças ucranianas nessa região. No entanto, este efeito esperado poderá não se materializar. Como a operação ocorre em seu território, o Estado-Maior russo pode mobilizar forças não engajadas na frente ucraniana, como unidades de recrutamento. Além disso, o Exército russo ainda possui reservas significativas. Na melhor das hipóteses, esta ação poderia perturbar a rotação de suas unidades na frente, mas provavelmente sem grande impacto. Em qualquer caso, até à data, nenhuma das unidades russas destacadas como reforços foi retirada de outra frente;
  • A operação teria como objetivo cortar o fornecimento de gás à União Europeia, sabotando os gasodutos da região. No entanto, esta ideia parece implausível. Os gasodutos em questão atravessam a Ucrânia e, se os ucranianos quisessem interromper o fluxo, poderiam tê-lo feito diretamente a partir do seu próprio território. Se se abstiveram de fazê-lo, isso se explica pelo fato de continuarem a cobrar taxas de trânsito pagas pelos russos, o que torna esta hipótese pouco crível;
  • Pode-se pensar que esta ofensiva ucraniana visa imitar a operação russa na região de Kharkov, procurando apoderar-se de territórios que serviriam de alavanca em futuras negociações. Esta estratégia pode fazer sentido, mas pressupõe que os ucranianos serão capazes de manter estas posições a longo prazo, o que exigiria recursos humanos e materiais significativos, de que já carecem, para fortalecer suas posições e compensar o desgaste. A observação de certos equipamentos de engenharia implantados pelos ucranianos na área poderia indicar uma intenção de se entrincheirarem ali permanentemente, mas isto ainda não foi confirmado;
  • Outra hipótese seria que a operação vise desestabilizar o poder russo, desacreditando-o, na esperança de provocar revoltas ou protestos entre a população russa. No entanto, este objetivo parece infundado. Vladimir Putin já superou inúmeras crises sem que seu poder estivesse verdadeiramente ameaçado e, historicamente, um ataque a um país tende a unir a população em torno de seus líderes. É portanto possível que a ofensiva tenha o efeito oposto ao esperado, ao reforçar o apoio à guerra entre a população russa;
  • Uma explicação final poderia ser que a ofensiva foi levada a cabo com um objetivo político, procurando desviar a atenção dos reveses sofridos pelo Exército ucraniano na frente de Donbass nos últimos meses, ao mesmo tempo em que tenta elevar o moral da população ucraniana. Embora muito plausível, esta razão parece ser uma das mais questionáveis ​​para justificar tal operação, porque lançar uma ofensiva principalmente por razões de comunicação ou moral poderia revelar-se uma estratégia arriscada e imprudente.

Potencial erro estratégico

Em tempos de conflito, geralmente faz sentido que seja a parte com superioridade numérica que procure alargar a frente e não aquela que já luta para manter a linha existente. Atualmente, o Exército ucraniano enfrenta sérias dificuldades no Donbass: faltam tropas, tem dificuldade em rotacionar suas unidades e ainda luta para estabilizar a linha da frente. Neste contexto, é compreensível que as autoridades russas não tenham levado a sério as informações relativas a esta ofensiva, uma vez que parece ir contra os princípios militares básicos.

No entanto, não devemos esquecer que os próprios russos se desviaram desta lógica ao lançarem a invasão da Ucrânia em 2022 com apenas 120.000 a 150.000 soldados, o que levou às dificuldades que hoje vemos. Para levar a cabo a sua ofensiva, o Estado-Maior ucraniano teve que retirar unidades e equipamentos de qualidade já escassos na frente do Donbass. Esta escolha deliberada de enfraquecer ainda mais uma linha da frente já frágil é extremamente arriscada. A Ucrânia vê-se agora obrigada a defender uma frente que se estende por mais 100 km, o que exigirá homens, equipamento e munições, elementos de que já carece profundamente.

Com provavelmente menos de 20.000 homens envolvidos na operação, o Exército ucraniano não poderia esperar ir muito longe sem diluir suas forças, a menos que recebesse reforços muito significativos que não prevemos chegar. Quanto maior o terreno a ser percorrido, mais tropas serão necessárias para defendê-lo de forma eficaz. Parece, portanto, que a extensão máxima do seu avanço foi alcançada por volta de 12 a 13 de agosto, longe da cidade de Kursk ou da sua central nuclear.

A partir de então, o Exército ucraniano terá que enfrentar reforços russos e bombardeios intensivos por meios aéreos (aviões e drones), bem como por artilharia. Sem entrincheiramentos ou posições fortificadas, como mostram os vídeos de soldados ucranianos cavando trincheiras com urgência [2], sua situação poderia se tornar muito difícil, como mostram os diversos vídeos das suas colunas apanhadas em emboscadas [3]. Isto poderá acabar custando mais aos ucranianos do que aos russos, em termos de perdas humanas e materiais.


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Por seu lado, a Rússia deve responder ao avanço ucraniano mas, militarmente falando, não tem necessariamente interesse em eliminar esta saliência demasiadamente rápido. Na verdade, essa saliência pode servir para diluir os recursos militares ucranianos, na continuação da estratégia russa iniciada com sua ofensiva limitada na região de Kharkov, que visa acelerar o desgaste das forças ucranianas. Contudo, considerações políticas poderão influenciar a resposta russa, levando-a a adotar outras medidas.

É pouco provável que esta situação conduza a uma escalada nuclear, dado que o território conquistado pelos ucranianos é relativamente modesto, com um retângulo com cerca de 40 km de largura e uma profundidade de cerca de 15km em média. Comparado com a vasta extensão da Rússia e o baixo valor estratégico do terreno conquistado, nada justifica uma subida aos extremos. A dinâmica teria sido diferente se os ucranianos tivessem conseguido capturar cidades importantes como Kursk, Bryansk, Belgorod ou Voronezh.

Nesta fase, a ofensiva ucraniana parece ter pouco efeito nas operações russas no Donbass, onde os avanços continuam e parecem mesmo estar acelerando, colocando agora em perigo a cidade de Pokrovsk, um nó logístico crucial para os ucranianos.

Uma operação não diferente daquela na margem oriental do Dnieper

Em outubro de 2023, apesar do fracasso da sua contraofensiva, os ucranianos surpreenderam ao lançar uma operação anfíbia na margem oriental do Dnieper a partir de Kherson, com o objetivo de estabelecer cabeças de ponte em Krinky, Dachi e vizinhanças. Para esta operação, mobilizaram primeiro três, depois quatro brigadas de infantaria naval. Exploraram a destruição da barragem de Kakhovka, tendo eliminado o risco de submersão que poderia ter arrastado suas tropas.

Depois de avançar alguns quilômetros, a ofensiva ucraniana encontrou rapidamente reforços russos. Os objetivos declarados para esta operação foram semelhantes aos da ofensiva observada hoje na região de Kursk: desviar as tropas russas do seu objetivo e desestabilizar o poder russo. No entanto, essa ação não distraiu as forças russas das suas principais prioridades e nem pôs em causa a posição de Putin. Simplesmente desviou a atenção dos fracassos da contraofensiva e aumentou temporariamente o moral ucraniano quando a Rússia capturou Avdeevka.

Dez meses depois, esta operação deixou apenas vestígios. As cabeças de ponte foram evacuadas com urgência quando foi necessário reagir ao avanço russo em direção a Kharkov. Em termos estratégicos, os ucranianos não ganharam nada, exceto o desgaste desnecessário de suas brigadas de fuzileiros navais. Embora tenham conseguido causar desgaste no lado russo, isto foi conseguido principalmente usando drones e artilharia da margem oeste do Dnieper, tornando a presença das cabeças de ponte redundante para atingir estes objetivos.

A atual operação na região de Kursk pode muito bem terminar da mesma forma, exceto que o risco assumido por Kiev é muito maior dado o volume de forças envolvidas.

Ponte da Crimeia, outro potencial erro estratégico?

Desde o início da invasão russa, a Ponte da Crimeia tornou-se um alvo prioritário para os ucranianos. Esta estrutura é um símbolo poderoso da anexação da Crimeia e representa uma rota logística crucial, embora não única. Com efeito, alternativas como a ponte terrestre ao norte do Mar de Azov e as ligações marítimas poderiam compensar sua possível destruição.

Consciente da sua importância estratégica e simbólica, a Rússia mobilizou recursos consideráveis ​​para proteger a ponte. Estas medidas incluem sistemas de defesa terra-ar e meios físicos reforçados para proteger a infraestrutura.

Atacar este trabalho apresenta, portanto, desafios significativos. Uma operação bem sucedida exigiria uma grande quantidade de munições adequadas para perfurar as defesas utilizando estratégias de saturação, uma diversidade de eixos de ataque e a utilização de diferentes tipos de munições (mísseis balísticos, mísseis de cruzeiro, drones, etc.). O objetivo seria causar danos significativos o suficiente para interromper o uso da ponte até que os reparos sejam feitos. Embora complexa, tal operação continua a ser possível se for executada com um planejamento meticuloso e uma coordenação eficaz.

Embora anunciado regularmente, até agora não ocorreu um novo ataque à ponte da Crimeia. Os militares ucranianos parecem estar à espera do “momento certo”, mas é difícil determinar qual poderá ser esse momento ideal, especialmente sabendo que todas as rotas logísticas russas disponíveis já estão visadas.

Outra hipótese é que os ucranianos reconheçam os riscos estratégicos associados a tal ataque. Na verdade, a resposta russa seria previsível: em resposta à destruição da ponte da Crimeia, os russos poderiam considerar a destruição das cerca de 15 pontes que atravessam o Dnieper, vitais para as comunicações e abastecimentos ucranianos. Isto iria efetivamente isolar as tropas ucranianas na margem oriental do rio das suas linhas de abastecimento, complicando e atrasando significativamente suas operações.

Além disso, pode-se perguntar por que a Rússia ainda não atacou as pontes que atravessam o Dnieper para enfraquecer o Exército ucraniano. Uma possível resposta poderia ser a existência de um acordo tácito entre as partes, onde cada uma mantém as pontes estratégicas da outra “refém”. Isto explicaria a relutância dos ucranianos em destruir a ponte da Crimeia, bem como a preservação das pontes sobre o Dnieper até agora.

* * *

Esta não é a primeira vez que o Exército ucraniano surpreende ao lançar operações em locais inesperados. Infelizmente, parece que estas ações são, mais uma vez, motivadas principalmente por objetivos políticos e midiáticos, e não por uma estratégia militar bem ponderada. O governo de Kiev parece favorecer manobras publicitárias, que têm pouco ou nenhum impacto real no curso da guerra. Ao concentrar-se em ações espetaculares mas ineficazes, o poder político corre o risco de comprometer a eficácia das suas forças armadas, esgotando-as em operações que, embora notáveis, não possuem qualquer estratégia real subjacente.

Esta tendência de se concentrar no “gênio tático ucraniano” obscurece o objetivo estratégico que deveria orientar as escolhas militares. As guerras não são vencidas por furos de comunicação ou símbolos. A estratégia ucraniana neste conflito está se tornando cada vez mais obscura, e as ações tomadas parecem às vezes contraproducentes a longo prazo. A obtenção do “Prêmio Escolha do Público” pode ser gratificante, mas não oferece nenhuma vantagem operacional. É questionável se esta abordagem é o resultado da dependência do país dos seus patrocinadores estrangeiros ou se o governo ucraniano passou a acreditar na sua própria propaganda.


Publicado no Cf2R.

*Olivier Dujardin é pesquisador associado do Cf2R (Centre Français de Recherche sur le Renseignement), chefe da seção de tecnologias e armamentos e consultor independente. Ele tem mais de 20 anos de experiência em guerra eletrônica, processamento de sinais de radar e análise de sistemas de armas. Ocupou cargos operacionais em guerra eletrônica, no estudo de sistemas de radar, guerra eletrônica e análise e coleta de sinais eletromagnéticos. Ele também ocupou o cargo de especialista técnico em sistemas de coleta SIGINT.


Notas

[1] https://www.youtube.com/watch?v=GwGYom8K2yM.

[2] https://www.youtube.com/watch?v=hQzWQ1_Ar64.

[3] https://www.youtube.com/watch?v=7GeOgVFei5I.

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