Se o ataque ucraniano à região de Kursk visava chamar a atenção da mídia, parece ter sido bem-sucedido; no entanto, os reais objetivos militares não são tão claros.
Com os últimos desenvolvimentos na frente de combate, a guerra na Europa Oriental ganha novamente impulso em meados do verão. Primeiro, as tropas russas conquistaram cada vez mais aldeias na região de Donbass, e agora houve um ataque surpresa dos ucranianos em território russo.
A situação militar em Kiev deteriorava-se cada vez mais, especialmente em torno de Donetsk, Ocheretyne, Torretsk e Chasov Yar. O ímpeto ainda está nas mãos dos russos, que avançam lentamente para oeste. Mas agora todos olham para a região de Kursk e não para Donbass.
Lembremos que a guerra desenfreada também se trava na mídia, nas redes. A ofensiva que as tropas ucranianas lançaram na zona fronteiriça à região russa de Kursk, devido ao número de homens e veículos blindados que utilizaram, não foi certamente uma operação improvisada. Da mesma forma, de acordo com nossas análises, o avanço dos ucranianos parece já ter sido bloqueado, após a conquista de algumas cidades perto da fronteira (Sudzha e Korenevo as mais importantes), e é provável que a reação russa os obrigue mais cedo ou mais tarde retirar-se, embora os meios de comunicação já falem de entrincheiramentos, na evidente antecipação de uma batalha destinada a durar.
A frente se estabilizou (ver Figura 1) antes da chegada das tropas russas do interior. Segundo soubemos, são os “Spetsnaz”, os comandos de elite das forças especiais militares e policiais da atual Federação Russa. As Spetsnaz são organizadas principalmente em brigadas.
Algumas deduções
Contudo, independentemente do resultado deste novo elemento, já é possível tirar algumas deduções dos acontecimentos dos últimos dois dias.
1. Importância das reservas: parece que os comandantes ucranianos lançaram no assalto o equivalente a duas brigadas. Os próprios russos confirmam de alguma forma a magnitude do ataque quando afirmam ter eliminado, entre mortos e feridos, 660 soldados ucranianos e ter destruído 82 veículos blindados inimigos. Qualquer que seja a verdade sobre os números (a Névoa 2.0 está presente), continua claro que os comandantes ucranianos ainda são capazes de mobilizar um número suficiente de homens para operações em grande escala. Ainda mais se for verdade que a artilharia e a força aérea russas estão tentando atacar as unidades de reserva ucranianas na região (ucraniana) de Sumy, para evitar que cheguem à vanguarda que entrou em território russo. Isto confirma o que todos observaram nos últimos meses, especificamente que os russos estão avançando nas regiões de Donetsk e Luhansk, mas fazem-no muito lentamente para não perderem demasiados homens em ataques inúteis a posições bem fortificadas. O próprio Putin disse: “Poderíamos fazer tudo mais rápido, mas as vidas humanas são demasiado importantes.”
2. A surpresa: É evidente que as defesas russas na região de Kursk foram apanhadas de surpresa. O fato é ainda mais surpreendente se levarmos em conta que Kursk, um grande centro industrial com quase 500 mil habitantes, fica a pouco mais de 200 km de Kharkov, a segunda cidade da Ucrânia, e há muito está na mira dos drones de Kiev. Além disso, a uma curta distância de Kursk, e a uma distância semelhante da fronteira com a Ucrânia, fica a cidade de Kurchatov (batizada em homenagem ao cientista Igor Kurchatov, diretor do programa atômico soviético desde 1942, considerado o “pai” de sua primeira bomba nuclear), que abriga uma grande usina nuclear russa com quatro reatores ativos. É difícil determinar se as tropas ucranianas realmente acreditavam que poderiam penetrar tão profundamente no território russo, mas a verdade é que as precauções do lado russo deveriam ter sido maiores. Não são boas notícias para Andrei Belousov, ministro da Defesa há alguns meses, substituindo Sergei Shoigu. Economista de formação, homem com reputação de absoluta honestidade, Belousov foi colocado nessa posição para racionalizar a utilização dos enormes recursos (6% do PIB) que o Kremlin está investindo em defesa. No entanto, isto não exclui o fato de que a principal tarefa do seu Ministério é vencer a guerra e não ser surpreendido em uma região crucial.
3. Apoio e ajuda: Oleksandr Syrsky, o general que o presidente Zelensky quis no comando das forças armadas depois de torpedear o famoso general Zaluzhny, agradeceu publicamente ao comando da OTAN para a Europa pela ajuda e colaboração prestada na operação em Kursk. Não se trata de armas (estas chegam há anos e os recém-fornecidos F-16 não participaram) e menos ainda de homens. Sabemos desde o início desta guerra que um dos apoios mais importantes de que Kiev pode desfrutar é a inteligência aérea e de satélite ocidentais. Tal como já aconteceu com a contraofensiva no outono de 2022 e as operações no Mar Negro, os drones e satélites da OTAN conseguem descobrir os “buracos” da longuíssima implantação russa (que se estende por 1.700 km) e indicar aos ucranianos os pontos mais fracos ou áreas mais expostas.
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4. Ao enfrentar uma operação militar, os líderes devem considerar a profundidade estratégica e levar em conta todos os recursos (territoriais, materiais ou humanos) que cada parte pode mobilizar para atingir seus objetivos. O acesso a estes recursos é essencial para sustentar e, em última análise, prevalecer em um conflito de alta intensidade. A comparação da profundidade estratégica dos dois beligerantes há muito que sugere, devido ao aparente desequilíbrio, que era impossível que esta guerra durasse tanto tempo. No entanto, embora a Rússia tenha uma profundidade estratégica à escala de um continente muito rico em matérias-primas e reservas de armas e munições, a Ucrânia obtém a sua profundidade do apoio maciço e decisivo do Ocidente. Esta penetração em solo russo, poderá ser sustentada pelas forças ucranianas?
5. Podemos ouvir vozes de analistas com diversas opiniões sobre os objetivos e o alcance desta atitude ofensiva das forças ucranianas: Os mais céticos sobre o resultado da operação dizem: “Eles estão tentando se justificar perante seus doadores. Dizer à imprensa que estão bem. Que continuem enviando dinheiro.” A mensagem é para os aliados da OTAN, etc.: “Estão vendo, que que se tivermos meios e dinheiro podemos entrar em território russo?” Os mais moderados dizem: “Surpreendente e preciso. Certamente não é um crédito para a inteligência russa. O Kremlin estava tão concentrado na sua própria ofensiva no Donbass que ignorou completamente os preparativos ucranianos. Um problema para Moscou: agora também existem imagens da destruição e evacuação de aldeias russas, bem como colunas de prisioneiros russos, entre eles, presumivelmente recrutas.” Em qualquer caso, a Ucrânia conseguiu chamar a atenção para a sua ofensiva. É lógico. Agora se desenvolvem combates em solo russo.
6. Conforme o que se observou, as fortificações de preparação territorial russas em Kursk estendem-se a sete quilômetros da fronteira, onde os russos planejaram parar um ataque ucraniano imprevisto e onde realmente o interromperam. Como observamos, é provável que a ideia dos ucranianos seja que “o mundo inteiro” olhe para Kursk e não para Donbass.
7. Até agora, os especialistas ocidentais não entendem o que a Ucrânia está fazendo.
8. No Instituto ELEVAN, em nosso Núcleo de Pensamento Estratégico Militar, podemos dar nossa explicação, como diz o coronel Fernando Duran: “O objetivo poderia ter sido isolar a central nuclear de Kurchatov e negociar com Putin.” Um objetivo que não foi alcançado. No fechamento deste artigo, em 9 de agosto de 2024, as coisas estão nesse pé.
Acompanhemos como continuará esta guerra longa e irrestrita…
Publicado no La Prensa.