A falsidade como arma

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Militares ucranianos da 148ª Brigada de Artilharia separada das Forças de Assalto Aéreo das Forças Armadas da Ucrânia disparam um obus M777 em direção a posições russas, na frente de Donetsk, Ucrânia, terça-feira, 7 de maio de 2024 (Francisco Seco/Associated Press).

Militares da 148ª Brigada de Artilharia separada das Forças de Assalto Aéreo das Forças Armadas da Ucrânia disparam um obus M777 em direção a posições russas, na frente de Donetsk, Ucrânia, terça-feira, 7 de maio de 2024 (Francisco Seco/Associated Press).

O Ocidente vende a ideia de que fortalece meios de comunicação independentes e promove os “processos democráticos”; esses objetivos têm sido respeitados?


Recordo do que eu afirmei em um ensaio chamado La niebla de la guerra, de 5 de março de 2022, quando, poucos dias depois do início das operações da Rússia na Ucrânia, apontei o fenômeno da falsificação de dados.

“A falsidade é uma arma reconhecida e extremamente útil na guerra, e todos os países a utilizam deliberadamente para enganar seu próprio povo, atrair neutros e enganar o inimigo. As massas ignorantes e inocentes de cada país não percebem na hora que estão sendo enganadas, e quando tudo acaba as falsidades são descobertas e expostas. Como tudo é história passada e as histórias e declarações produziram o efeito desejado, ninguém se preocupa em investigar os fatos e estabelecer a verdade. Mentir, como sabemos, não acontece apenas em tempos de guerra. O homem, já foi dito, não é ‘um animal verdadeiro’, mas seu hábito de mentir não é tão extraordinário como a sua surpreendente disposição para acreditar. Na verdade, é por causa da credulidade humana que as mentiras florescem. Mas em tempos de guerra, a organização oficial das mentiras não é suficientemente reconhecida”, afirma Churchill em “a primeira vítima da guerra é a verdade”.

O famoso cientista político da Universidade de Chicago, John J. Mearsheimer; o economista da Universidade de Columbia, Jeffrey D. Sachs; o ganhador do prêmio Pullitzer, Glenn Greenwald; o ex-apresentador da Fox News, Tucker Carlson; bem como vários especialistas em assuntos militares pragmáticos, como o coronel Douglas McGregor dos Estados Unidos, ou coronel Pedro Baños da Espanha, já há algum tempo, como eu mesmo faço em meus artigos, apresentam uma visão diferente.

Aparentemente, personagens que não têm muito em comum, exceto que expressaram uma opinião sobre a guerra na Ucrânia que é diferente daquela geralmente aceita – que prevê o apoio incondicional à Ucrânia e a alocação de recursos, em particular armas, para Kiev.

Há quem, como o professor Mearsheimer, em tempos insuspeitos – em 18 de agosto de 2014, depois da ocupação russa da Crimeia – tenha expressado, em uma análise publicada na Foreign Affairs, seu ponto de vista acadêmico sobre as Relações Internacionais (“escola realista”) crítico da política externa ocidental e da americana em particular. Outros, como Greenwald, que depois de deixar o The Intercept, dedicou episódios inteiros de seu programa na plataforma social Rumble – System Update – ao destaque das contradições da propaganda de guerra, que infelizmente não é exclusiva das autocracias, mas também é amplamente difundida no Ocidente Opulento. A nova Cortina de Ferro. Quer você goste ou não da opinião deles, essas figuras públicas foram alvo de acusações banais de “pró-putinismo” e de campanhas difamatórias nas redes sociais e em alguns jornais.

A mídia social é um componente crítico da Guerra Imaginária. Pesquisas acadêmicas mostram que o Twitter hospeda um enorme exército de bots pró-Ucrânia, vomitando implacavelmente mensagens pró-Kiev e anti-Rússia. O mesmo certamente se aplica a todas as plataformas de mídia social. Isto ajuda a criar a ilusão de um apoio quase universal à Ucrânia em nível mundial.

Normalmente, fora do Ocidente, as populações e os governos ou são neutros ou apoiam abertamente a Rússia, encarando o conflito como um ataque à OTAN e ao imperialismo ocidental.


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Como pude constatar em minhas pesquisas, durante os primeiros 18 meses do conflito, jornalistas, especialistas e políticos tradicionais confiaram fortemente nas alegações infundadas da Oryx, uma conta anônima do Twitter que analisava imagens do terreno para obter dados sobre as perdas de ambos os lados. Suas publicações sugeriam desde o primeiro dia que a destruição de tanques, aviões e veículos blindados russos era muito maior do que a sofrida pela Ucrânia, o que indicava ou levava o leitor a acreditar que a guerra era um desastre absoluto para os invasores.

Outro exemplo: uma reportagem do Washington Post de 17 de março de 2022 afirmou corajosamente que a Rússia até então “perdeu milhares de soldados e milhares de veículos sem fazer progressos significativos”, baseado quase que inteiramente nas conclusões da Oryx. Da mesma forma, um artigo da BBC no mês seguinte destacou dados produzidos pela Oryx de que a Ucrânia tinha “destruído, danificado ou capturado pelo menos 82 aeronaves russas, incluindo aviões, helicópteros e drones”, sacrificando apenas 33 delas.

O Ministério da Defesa do Reino Unido também citava regularmente dados da Oryx em “atualizações de inteligência” diárias no Twitter, que foram amplamente compartilhadas e posteriormente incorporadas e reportadas no conteúdo e nas manchetes de muitas notícias. Por exemplo, em abril de 2023, uma atualização dizia: “De acordo com o rastreador Oryx, a Rússia perdeu mais de 10.000 veículos militares desde o início da invasão ilegal da Ucrânia”. A postagem foi vista mais de um milhão de vezes. O relatório da Comissão Parlamentar de Inteligência e Segurança de 2023 vangloriou-se de que o “impacto” destas atualizações “sem precedentes” foi “substancial”.

No nível mais alto

Cabe destacar que a Oryx encerrou subitamente seu trabalho quando a tão alardeada e há muito adiada contraofensiva ucraniana da “primavera” começou em junho de 2023. Um cínico poderia sugerir, dado que Kiev estava equipada com a tão badalada “máquina de guerra ocidental”, que quem quer que estivesse liderando a operação de propaganda – e/ou os indivíduos e entidades que a dirigiam, em última análise – concluiu que as mesmas tácticas desonestas não funcionariam desta vez. A famosa contraofensiva falhou. A máscara caiu. A fumaça e a névoa se dissiparam diante das evidências cruas e contundentes.

Em outubro de 2023, a conta foi completamente excluída sem prévio aviso ou explicação, o que significa que seu arquivo falso não pode mais ser examinado criticamente. Mas, como descobriu o jornalista investigativo Lee Fang, o governo dos EUA está financiando várias organizações e ONGs ucranianas envolvidas em uma verdadeira campanha de guerra de informação. Fang relatou no The Intercept que o Twitter “deu aprovação direta e proteção interna à rede de contas de mídia social e personas online dos militares dos EUA” (veja Twitter aided the Pentagon in its covert online propaganda campaign).

A guerra de informação não é um mistério, mas é em si um componente fundamental em todos os conflitos. E difundir seu ponto de vista através do soft power é tão importante quanto ter forças armadas eficientes e motivadas.

Cuidado! O Ocidente Opulento vende um manifesto de vocação missionária laica para, segundo se diz, “fortalecer a capacidade do setor de meios de comunicação social independente para promover o envolvimento cívico e os processos democráticos”, expandindo “o acesso dos cidadãos a informações baseadas em fatos sobre questões sociais e políticas fundamentais”.

Esses objetivos têm sido respeitados? Parece que não.


Publicado no La Prensa.

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1 comentário

  1. Para combater ataques à liberdade de expressão, a solução mais eficaz é relacionada a luta por manutenção da liberdade de expressão.
    Nós, brasileiros, vivendo sob ataque orquestrado à liberdade de expressão, estamos na linha de frente desta guerra.

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