Assassinato de Soleimani: drones, direito internacional e falhas da contrainteligência

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Qasem Soleimani (CC BY 4.0/Autor desconhecido via Sputnik).

Por Carlos Alexandre Klomfahs*

Qasem Soleimani (CC BY 4.0/Autor desconhecido via Sputnik).

A guerra híbrida travada pelo Irã contra os EUA foi realizada brilhantemente pelo general Soleimani, cujo nome pode ser inserido ente os 100 maiores líderes militares da História.


Em 11 de fevereiro de 2024 celebraram-se os 45 anos da Revolução Islâmica de 1979. Diante dos imensos desafios de estabilização política e desenvolvimento econômico do Irã, faz-se relevante conhecer um dos países mais importantes no tabuleiro geopolítico, econômico e de segurança energética mundial, destacando-se também os 120 anos de relação diplomática entre Brasil e Irã que, a propósito, foi um dos primeiros países a instalar uma embaixada em Brasília.

Este ensaio abordará as operações de targeted killing (assassinato seletivo) como política de segurança dos EUA e de Israel, bem como o uso de drones para esta finalidade à luz do direito internacional. Para isso buscaremos, sucintamente, entender o papel do Irã no espaço geopolítico mundial e no sul do Cáucaso, ao lado de Rússia e China, e como as ações planejadas e coordenadas pelo general Soleimani na liderança da Força Quds consolidaram a unificação, cooperação e organização dos países aliados do Irã, e fizeram dele o alvo número um dos Estados Unidos.

Por fim abordaremos, en passant, possíveis falhas na contrainteligência iraniana na proteção de dignitários.

Quanto ao sistema político, a República Islâmica do Irã tem como chefe de Estado, dos Três Poderes e como comandante-em-chefe das Forças Armadas, o Líder Supremo Aiatolá Sayyid Ali Hosseini Khamenei (desde 1989) que possui competência para declarar guerra ou celebrar paz; e, como chefe de Governo, o presidente Ebrahim Raisi (desde agosto de 2021).

Avaliando os interesses geopolíticos globais em disputa, acredita-se que o Irã, junto com Cazaquistão, Coréia do Norte, Síria, os países do chifre da África, e tendo na retaguarda Venezuela, Cuba, México e Bolívia, faça parte do conceito militar de profundidade estratégica sino-russo no Oriente Médio, assim como o próprio Oriente Médio é a primeira linha da profundidade estratégica do Irã, da mesma forma que a teoria de contenção do Rimland de Spykman e Brzezinski, aplicado pelos EUA, enquanto poder naval, buscou envolver China e Rússia, enquanto poderes terrestres, e controlar estreitos, mares, países tampões, como Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Guam, Israel, Afeganistão, Líbano, Iraque, Síria, Iêmen e os países Bálticos, servindo de base para sua doutrina de segurança pós Segunda Guerra Mundial.


FIGURA 1: Sobre o entorno estratégico brasileiro, que vai da África Ocidental, Canal do Panamá, Antártida e Pacífico Sul, sobreponha-se o russo e chinês e se compreenderá o contraponto à teoria da contenção americana (Entorno estratégico do Brasil segundo Paiva, 2013, P. 4).
FIGURA 1: Sobre o entorno estratégico brasileiro, que vai da África Ocidental, Canal do Panamá, Antártida e Pacífico Sul, sobreponha-se o russo e chinês e se compreenderá o contraponto à teoria da contenção americana (Entorno estratégico do Brasil segundo Paiva, 2013, P. 4).

Logo, para entender o contexto geopolítico do Irã, deve-se considerar pelo menos seis fatos que explicam o longo conflito no Oriente Médio: 1) A criação do Estado de Israel em 1948; 2) A Guerra Fria entre EUA e URSS; 3) A divisão interna entre sunitas e xiitas; 4) A busca por hegemonia entre Irã e Arábia Saudita; 5) As reservas energéticas mundiais de petróleo e gás; 6) O Irã como parte da primeira rota terrestre da Nova Rota da Seda chinesa juntamente com Turquia, Síria, a região do Levante e a costa do Mediterrâneo.

Devemos também considerar nesse tabuleiro a geopolítica americana para a região, que surge após a crise do petróleo de 1973 e 1979, em que se verificaram dois fatos: primeiro a vulnerabilidade energética no coração energético mundial pela instabilidade do preço do petróleo ditado pela OPEP; e segundo, o total desconhecimento da política interna dos países árabes. Assim, iniciou-se, sob a administração Carter, o denominado pluralismo geopolítico para a região, conhecido como surrogate strategy, que defendia o uso da força para garantir os interesses americanos no Golfo Pérsico, e que envolveu, entre outras coisas, a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), com fornecimento de armas para ambos os lados, chegando ao ponto em que as vendas americanas de armamentos para o Irã atingiram US$ 1.2 bilhões em 22 anos de relação. Isso aliado à estratégia de não se permitir o surgimento de um hegemon regional no Golfo Pérsico, interferindo assim para manter delicado equilíbrio de poder na região.

Além das interferências americanas no Irã, a desconfiança da população iraniana levou a derrubada da monarquia de Reza Pahlevi, que não foi capaz de transformar a abundante renda oriunda do petróleo em desenvolvimento econômico e bem-estar para a população, culminando com grande parte desta associando o regime de opressão do Xá aos Estados Unidos desde 1953, quando a CIA participou do golpe que restaurou o regime do Xá.

Assim, a invasão do Iraque ao território iraniano, em 22 de setembro de 1980, iniciada pela disputa do canal Chatt al-Arab, somada a fatores político-religiosos, foi o mais violento conflito armado depois da Segunda Guerra Mundial, com quase um milhão de mortes em oito anos, sendo a maioria de iranianos.

Em 1982, em situação difícil, o Iraque fez uso de armas químicas e de destruição em massa contra o Irã (fato confirmado pela missão da ONU na área de conflito em 12 de março de 1986), inclusive com ajuda de satélites americanos e acesso a matérias-primas como antrax, vírus West Nile e toxina botulínica, ajudando o exército iraquiano a empregar com maior eficiência armas químicas e biológicas, não obstante a censura da ONU de violação à Convenção de Genebra por Bagdá.

Naquela ocasião mais uma vez a política americana de Ronald Reagan buscou resolver ao mesmo tempo a crise na América Central (Nicarágua) e no Oriente Médio, vendendo armas secretamente ao Irã em plena campanha de sanções, enquanto buscava manter, com o Aiatolá Khomeini, a mesma aproximação que tinha com o Xá Reza Pahlevi, resultando naquilo que ficou conhecido como escândalo Irã-Contras e sepultou tanto a política externa americana quando a administração Reagan.

Ainda como prefácio [1], devemos lembrar que a política norte-americana para o Oriente Médio  apresentou continuidade em todas as administrações, democratas e republicanas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e desde o anúncio, em 1980, do presidente Jimmy Carter de que o petróleo do Golfo Pérsico é um “interesse vital” a ser defendido “por todos os meios, inclusive a força militar”. Esse princípio, conhecido como Doutrina Carter, foi confirmado por todos os presidentes posteriores e deu fundamento tanto à Guerra do Golfo em 1990-1991 quanto à ação político-militar dos EUA no Iraque.

Por isso no chamado “Grande Jogo” da Ásia Central [2], os estrategistas norte-americanos teorizaram as vantagens de exercer a supremacia na região. Inclusive, em 1997, Zbigniew Brzezinski publicou O Grande Tabuleiro de Xadrez: Supremacia americana e seus imperativos geoestratégicos (The Grand Chessboard: American primacy and its geostrategic imperatives), onde descreveu os fundamentos para a adoção de uma política externa norte-americana que fosse capaz de impor – pelo conjunto de sua superioridade militar, tecnológica e econômica em relação às demais nações – a supremacia sobre o pivô terrestre da Ásia Central, também denominado Eurásia.

Portanto, este é o contexto político-estratégico em que a República Islâmica do Irã foi inserida.

Características geográficas e históricas do Irã [3]

A Bíblia registra, no Segundo Livro de Crônicas (36:22-23), que sob o domínio de Ciro, o Grande, os persas conquistaram o Império Babilônico em 539 a.C. e permitiram que os judeus cativos voltassem à sua terra depois do Êxodo. Aquele império se estendia desde o rio Indo, a leste, até o mar Egeu, a oeste, tendo os judeus permanecido sob domínio persa até Alexandre, o Grande, derrotá-los em 331 a.C.

Para entender um pouco da cultura e idiossincrasia persa, a obra Histórias, do historiador grego Heródoto, conta tanto sobre o império como sobre o povo persa. Sobre o império, conta-se que os persas, ao requererem a submissão de Atenas e Esparta, enviaram embaixadores antes de optar pelo uso da força; todavia, estes foram mortos pelos espartanos, que, arrependidos, enviaram seus embaixadores para serem mortos como expiação. Xerxes, porém, demonstrando grandeza de alma, recusou-se a agir da mesma forma que os espartanos e poupou suas vidas. Sobre questões etnográficas do povo persa, Heródoto relata aspectos interessantes de um povo grandioso que valoriza a coragem e a verdade, não urina nem cospe em público, sendo descrito como um povo que condena institucionalmente a mentira.

Ou seja, o notável sucesso da primeira fase do Império Persa Aquemênida como primeiro império multicultural da história ao longo do tempo, não pode ser entendido apenas a partir da estratégia militar ou da conquista. Ciro, por exemplo, recebeu o epíteto de Grande não só pelas grandes conquistas, mas pela diplomacia e tratamento humano destinado aos povos conquistados, obtendo êxito em seu governo imperial graças a uma política de concessões e alianças na periferia do império. Seja na Babilônia ou no Egito, os reis se aliavam às elites locais e recompensavam com posições de poder [4].

O território do Irã existiu como Grande Pérsia e envolvia países como Azerbaijão, Geórgia, Afeganistão, Armênia, Turquia e Daguestão. Foi chamado de Pérsia até 1935, quando, por meio de um decreto real de Reza Pahlevi, datado  de 21 de março, transforma-se oficialmente em Irã, buscando invocar as glórias e o berço dos antigos arianos.

Como mencionado, o Irã, no Grande Jogo, foi objeto de divisão territorial em três regiões no Tratado de 1907 entre Rússia e Inglaterra, sendo controlado pelos russos ao norte, pelos britânicos ao sul e tendo no centro do país uma zona neutra.

O Tratado definiu as respectivas esferas de influência na Pérsia, Afeganistão e Tibete. O principal objetivo era resolver a longa disputa entre as potências imperiais sobre suas respectivas periferias, embora também tenha servido a objetivos diplomáticos mais amplos, ajudando a contrabalancear a influência alemã, servindo, portanto, como tampão ou buffer zone, não designando essas zonas de “esferas de influência”, para que não ficasse evidente que as grandes potências estavam dividindo a Pérsia [5].

Enquanto os interesses ocidentais evoluíam da rota comercial entre Europa e Extremo Oriente ao petróleo, a Anglo-Persian Oil Company foi estabelecida em 1908 para explorar as reservas petrolíferas  descobertas na então Pérsia, sendo renomeada para Anglo-Iranian Oil Company em 1935 e para British Petroleum Company (BP) 1953.

Compreender a futura relação estratégica entre Irã e Rússia passa por sublinhar o papel de destaque dado ao Irã pela Rússia, reconhecendo-a como essencial no entorno estratégico do Oriente Médio. Assim, vale recordar que no período bolchevique, o general Reza Khan, líder da brigada de cossacos em Qazvin, tomou o poder em fevereiro de 1921 e se tornou Xá do Irã em dezembro de 1925, derrubando a monarquia Qajar e inaugurando a dinastia Pahlevi.

Conforme ensina Syrus Ahmadi Nohadani, o Irã está localizado no sudeste asiático, estando limitado ao norte pelo Mar Cáspio e ao sul pelo Golfo Pérsico, o Golfo de Omã e o Oceano Índico. A localização do Irã tem sido parte estratégica em arranjos regionais e internacionais de teorias geopolíticas especialmente à Rússia e China.

As regiões geopolíticas em torno do Irã são as seguintes: 1) Ásia Central, o Mar Cáspio e Cáucaso ao norte; 2) O subcontinente indiano e o Afeganistão ao leste; 3) O Oceano Índico a sudeste; 4) O Golfo Pérsico e o Golfo de Omã ao sul; 5) A Turquia e a região árabe a oeste.

Estas regiões possuem algumas sub-regiões geopolíticas, por exemplo, o norte do Irã é formado por três sub-regiões que incluem a Ásia Central, o Mar Cáspio e o Cáucaso, possuindo um papel-chave nas linhas de comunicação entre as três, sendo imperioso destacar que o Irã tem a quarta maior reserva de petróleo do mundo e a primeira maior reserva de gás natural, seguido de Rússia e Catar.

Considerando ainda a proximidade geográfica e os laços históricos, o próprio fato da interação entre os Estados do Cáucaso e do Oriente não surpreende. Mesmo na era pré-soviética, o Cáucaso era um território onde os impérios Otomano, Persa e Russo se enfrentaram na luta por terras e influência. Cada um deles dominou esta região em algum momento, criando a principal plataforma de encontro de culturas ao longo da rota de trânsito mais importante.

Durante a maior parte do século XX, a União Soviética controlou o Cáucaso e tentou estender sua influência ainda mais ao Irã e à Turquia. O colapso da URSS enfraqueceu a posição de Moscou, mas as suposições iniciais de que a competição iraniano-russa-turca levaria ao surgimento de correspondentes zonas de influência no Cáucaso [6] se confirmou.


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The Shadow Commander: Soleimani, the Us, and Iran’s Global Ambitions

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Em geral, a localização geográfica do Irã é uma junção de linhas de comunicação, espaço tampão ou buffer zone de importância geopolítica, econômica e estratégica, sendo responsável por posicionar o Irã de forma única. Por um lado, pode atuar como um garantidor de estabilidade e desenvolvimento econômico e, por outro, pode trazer instabilidade, uma vez que sua importância afeta questões políticas internas, externas e estratégias de potências regionais e globais.

A Teoria da Profundidade Estratégica é aplicada tanto às relações geopolíticas quanto militares; pensando nisto, deduz-se que a estratégia russa foi fortalecer três camadas da profundidade estratégica com ações integradas no seu entorno, considerando a primeira Ásia e Europa, a segunda África e Ártico/Oceania e a terceira América Latina e Antártida.

Vale recordar que o nacionalismo iraniano advém da restauração da razão histórica de que o Irã é herdeiro de uma civilização milenar, incluindo seu passado pré-islâmico, antes da invasão árabe e do advento do Islã.

Destacam-se, a propósito, alguns dos últimos acontecimentos relevantes na região sob o prisma geopolítico, para que possamos entender a profundidade e alcance da relação estratégica entre Irã, Rússia e China. Primeiro a data de 4 de julho de 2023, quando o Irã ingressa na Organização de Cooperação de Xangai (OCX), com sede na China, organização diplomática que abrange também Índia, Paquistão, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Tadjiquistão, tendo os Estados-membros enfatizado o significado histórico da admissão do Irã como membro pleno, conforme a declaração [7], sendo a China o principal parceiro comercial de exportação de petróleo bruto essencial à parceria estratégia China-Irã no setor energético [8] e importante como alternativa à exportação por via marítima, dada a sua vulnerabilidade e cerco no Mar do Sul da China. Em 2 de janeiro de 2024, o Irã ingressa nos BRICS. E, na data de 14 de abril de 2024, a República Islâmica do Irã realiza uma retaliação militar contra o Estado de Israel em legítima defesa, conforme o Artigo 51 da Carta da ONU, sendo estes os fatos mais relevantes para se avaliar, ainda que a priori, os acertos das políticas estratégicas implementadas na região.

Resumo da vida e obra do general Qasem Soleimani

O planejamento e o processo decisório das ações do general Soleimani de forjar a estratégia regional e fortalecer o sistema de alianças do Irã, ainda é pouco conhecido e estudado no Ocidente. Tal planejamento deve ter sido realizado sob a diretriz de nível político do Comando Supremo iraniano e da Escola de Pensamento [9] do Imam Khomeini como estratégia nacional a ser empregada, visando objetivos e condicionantes políticos a serem atingidos. Os resultados das pesquisas encontradas em fontes abertas ou são enviesadas, ou superficiais nas consequências e nas lições aprendidas pelo general nas diversas áreas como: diplomacia, político-estratégica, doutrina militar e liderança, especialmente na vitória de 2006 no Líbano pelo Hezbollah sob a liderança da Força Quds.

Na obra organizada por Bruno Colson, intitulada Napoleão Bonaparte Sobre a guerra: A arte da batalha e da estratégia (2016:180-188), há a menção de que: “na guerra, três quartos são questões morais”. Destaca o autor que Napoleão enxergava uma importante força moral no sentimento nacional de seus exércitos: “bom general, bons administradores, boa organização, boa instrução e boa disciplina fazem boas tropas”.

Depreende-se dos estudos e pesquisas sobre a vida e legado do general Soleimani que, graças a sua força moral, carisma e conduta exemplar no terreno operacional, foi possível liderar e coordenar ações com tão diferentes religiões, etnias, culturas e povos como no Iraque, Iêmen, Síria, Palestina e Líbano, na medida em que, como sabemos, os iranianos não são árabes e portanto, o processo de conquista da confiança entre os árabes-muçulmanos levou tempo, provavelmente dentro dos 40 anos de experiência militar do general, parecendo mesclar estratégia militar de manobra para fazer frente às ameaças geopolíticas americanas no Golfo.

Sobre essa forma de estratégia adotada, Hervé Coutau-Bégarie, na clássica obra Tratado de Estratégia (2010:295) afirma que a manobra é a antítese do choque, pois busca criar uma situação favorável, ao invés de abordar o inimigo de frente. A manobra busca agir sobre os pontos fracos do inimigo, desbordá-lo, cercá-lo, cortá-lo de suas bases de reabastecimento; em resumo, desorganizá-lo e dissociá-lo em tal grau que ele perde sua capacidade de combate. Conclui o autor afirmando que a manobra tem sido frequentemente apanágio de grandes chefes da guerra, pois ela pode ser considerada um domínio da estratégia muito mais importante do que o choque ou o poder de fogo.

Tanto que o general da Guarda Revolucionária Mohammad Zolghadr, no discurso de fevereiro de 2002 em relação à inclusão do Irã no Eixo do Mal pelos EUA, afirmou que: (…) se os americanos mostrarem loucura e nos atacarem, não nos defenderemos apenas dentro de nossas fronteiras. Temos um braço longo e poderoso e podemos ameaçar os interesses americanos em qualquer lugar. Não queremos atacar ninguém, exceto se nossa segurança for violada (…) eles podem ser capazes de iniciar um incidente no Irã, mas sua continuação não estará de forma alguma sob seu controle”.

Acredita-se que, avaliando hoje os resultados da unificação dos povos árabes e persas contra o imperialismo liderado pelos EUA, tal êxito certamente deveu-se ao planejamento e as ações do general e seus oficiais (staff), podendo-se inferir que houve tanto aplicação da Teoria dos Jogos, especialmente na busca de “Soma Não-Zero”, ou seja, ambos vencem, quanto de “Jogos Cooperativos”, em que há um acordo prévio, como explica Marco Cepik em Inteligência Governamental (2011:208) no capítulo “Os Fundamentos das Teorias dos Jogos”. Isso porque com sua visão tática e político-estratégica em lidar com as diferentes vertentes e etnias, conseguiu pela sua liderança e personalidade, coordenar e integrar xiitas, sunitas e curdos em torno de um mesmo ideal de luta contra o imperialismo.

É provável que a influência de Soleimani tenha resultado neste último trunfo diplomático para o Irã, já que sua participação na cooperação entre Irã e Síria, Líbano, Iraque, Iêmen etc., é sem dúvida um de seus maiores legados, juntamente com a estratégia de resistência assimétrica, guerra híbrida e estratégia de manobra em uma operação de longo prazo de estabilização da região.  Soleimani, ao longo de 40 anos, passou da atuação na infantaria de linha de frente ao combate de forma indireta com o uso de proxies. Combateu na Guerra Irã-Iraque, na luta contra o terrorismo, tráfico de drogas e na consolidação de alianças com potências nucleares como Rússia e China e grupos étnicos como no Iêmen, Síria, Iraque etc.

Foram estas habilidades e competências pessoais, aliadas à visão de conjunto de estrategista e somadas a uma personalidade simpática e carismática que conquistou milhões de adeptos e soldados nas regiões por onde passou. A conduta e postura por vezes informal e a atenção dispensada à sua tropa fizeram com que sua popularidade se traduzisse em eficiência nas operações no campo de batalha desde os tempos de paz, na luta contra o imperialismo, angariando a simpatia de Teerã e o respeito de vários líderes mundiais, como se verá das alianças estratégicas com Rússia, China, Síria, Líbano, Iraque e Iêmen. Estas habilidades foram exploradas no livro escrito pelo coronel Ricardo Bezerra em 2019, intitulado Missão Haiti: 7 lições de liderança, relatando sete ensinamentos sobre liderança no contexto das operações de paz, adquiridos durante seu comando do batalhão brasileiro no Haiti, conforme constatado pelo testemunho de seus subordinados ao Centro de Psicologia Aplicada do Exército (CPAEx) que são: “prepare-se profundamente para liderar”, “atue sobre as influências do ambiente”, “conduza as lideranças intermediárias”, “personalize o tratamento dado aos subordinados”, “comunique-se com os subordinados”, “dê o bom exemplo” e “utilize os instrumentos institucionais”, o que parece ter sido aplicado por Soleimani.

Tomemos como exemplo o Manual de Campanha do Exército Brasileiro (EB70-MC-10.223, 2.1.6) que define Operação Militar como um conjunto de ações realizadas com forças e meios militares, coordenadas em tempo, espaço e finalidade, de acordo com o estabelecido em uma diretriz, plano ou ordem para o cumprimento de uma atividade, tarefa, missão ou atribuição. Realizados no amplo espectro dos conflitos, desde a paz até o conflito armado, passando pelas situações de crise, tudo sob responsabilidade direta de autoridade militar competente.

Assim como no Manual de Campanha Processo de Planejamento e Condução das Operações Terrestres (EB70-MC-10.211, Anexo A), sobre o Exame de Situação, lista que o comandante deve levar em consideração os fatores operativos: político, econômico, militar, social, infraestrutura, informações, ambiente físico e tempo.

Pelo que se depreende das pesquisas realizadas, o objetivo político-estratégico do Irã em transformar o Iraque na sua primeira linha de defesa da profundidade estratégica, impedindo que o país vizinho voltasse a ser uma ameaça direta ao Irã como havia sido no período de Saddam Hussein. Desde o início, essa política foi elaborada e colocada em prática pela aliança composta pelo líder supremo e pela Guarda Revolucionária, especificamente a Força Quds, seu braço externo.

O que também pareceu fundamental na busca iraniana em “guiar” o destino do Iraque com a conquista de “corações e mentes” dos iraquianos, que por décadas estiveram submetidos à propaganda anti-iraniana de Saddam Hussein. Antes mesmo da invasão norte-americana em 2003, o Iraque foi inserido ao corpo de países alvo de uma política central no soft power iraniano, cujo objetivo foi expandir a influência de Teerã na região.

Tal planejamento foi realizado sob diretriz de nível político do Comando Supremo iraniano, com a estratégia nacional a ser empregada, com objetivos e condicionantes políticos a serem atingidos. Com base nisso, entende-se que as guerras no Iraque e no Afeganistão foram operações de grande escala.

Com efeito, observando os erros e acertos dos EUA no Iraque e no Afeganistão, entende-se que o Irã coordenou e implementou um plano de usar a estratégia do inimigo a seu favor, conduzindo uma operação de estabilização em seu entorno estratégico, via uma guerra híbrida de longo prazo focada na tática militar de manobra. Portanto, parece ser um caminho natural que os aspectos privilegiados pelo general, na medida em que a expressão militar do poder nacional acompanha, pari passu, os aspectos psicossociais e econômicos.

Acresça-se que estas ações do Irã objetivaram construir relações duradouras, identificar necessidades socioeconômicas, prover comunicação direta e assertiva, mediar interesses conflitantes entre diferentes povos, culturas, etnias e os diferentes ramos do islamismo como xiitas e sunitas, compreender o outro e buscar benefícios para ambas as partes com respeito às diferenças, o que no conjunto atingiu objetivos estratégicos de índole político-militar.

Parece crível, portanto, a construção da cooperação entre Irã e Rússia no campo estratégico de aconselhamento em inteligência, ações indiretas, guerras híbridas, operações de estabilização e operações especiais, haja vista a competência e superioridade russa nessas capacidades durante e após a Guerra Fria, suplantando em muito a capacidade de contrainteligência americana, seja na administração das mais de 47 etnias [10]  que vivem na Rússia, seja na experiência da URSS que congregava 15 países, ou ainda nas habilidades técnicas em construir redes de inteligência na Guerra Fria entre culturas diferentes, quando não díspares.

Note-se o reconhecimento e prestígio do general Soleimani quando é recebido pelo presidente Putin em 16 de dezembro de 2015, em uma visita de três dias, já que receber um general-de-brigada estrangeiro é um sinal muito simbólico [11], pois do ponto de vista do cerimonial diplomático, as visitas realizam-se entre cargos e funções equivalentes. Soleimani, com sua visão ampla do campo de batalha e das questões estratégicas, ampliou o soft power do Irã no Iraque, Catar, Palestina, Líbano, Iêmen, Afeganistão e Síria, denotando uma familiaridade inata com os aspectos essenciais da cultura e da política tribal.

A conclusão é que Soleimani foi indiscutivelmente o líder militar mais importante na história moderna do Irã. Ele mudou a estratégia global do Irã de uma abordagem direta para uma abordagem indireta de guerra por procuração recorrendo a atores não estatais [12], com manobra estratégica de longo prazo, tudo com fundamento na Constituição iraniana sobre condução de guerra híbrida com uso de agentes não estatais para cumprir objetivos militares, conforme artigo 3º, item 5, da Constituição da República de rejeitar o colonialismo e prevenir a influência estrangeira; artigo 15º em fortalecer a fraternidade islâmica e a cooperação pública entre todos. E artigo 16º em desenvolver e organizar a política externa do país baseada em critérios islâmicos, no compromisso fraterno para com todos os muçulmanos e proteção total a todos os desprotegidos do mundo.

Nos últimos anos, o Irã projetou seu poder em todo o Oriente Médio, desde o Líbano e a Síria até ao Iraque e o Iêmen. Uma dos motivos do seu sucesso foi a estratégia única de combinar poder militar e diplomacia, derivada em parte do modelo Hezbollah no Líbano. Em sua biografia, consta que foi promovido ao posto de major-general pelo Líder Supremo da Revolução Islâmica, Imam Ali Khamenei, em 24 de janeiro de 2011, e morto em uma operação americana de assassinato seletivo, em 3 de janeiro de 2020, no Aeroporto de Bagdá no Iraque, aos 62 anos.


FIGURA 2: Qasem Soleimani usando seu anel distintivo durante uma entrevista com membros do escritório do líder iraniano em Teerã (AFP).

Sua contribuição ocorreu ainda em várias áreas, podendo ser considerado uma doutrina de análise e execução de planejamento estratégico para o governo do Irã no sentido de definir o inimigo, construir alianças, integrar os povos islâmicos, atuar na área econômica, etc. Sobre a Força Al-Quds ela foi criada de acordo com a Constituição da República Islâmica do Irã, de 30 de março de 1979. Em suma: o general Soleimani contribuiu por meio de sua doutrina de liderança ao longo de seus 40 anos de carreira militar, provando competência e êxito em diversos campos como:

1. Cultural: conseguiu provavelmente com o auxílio da experiência russa em coordenar várias etnias, unir grupos étnicos e ramos do islamismo em torno de um único ideal de luta contra um inimigo comum, por meio da comunicação assertiva entre as diferentes línguas e tradições, busca de entendimento sobre temas comuns, mediação de conflitos ou interesses, compreensão das necessidades socioeconômicas, concessões e busca de harmonia, integração e fraternidade entre esses povos e a histórica civilização persa-iraniana, sem o que não poderia ter efetivado as ações de cunho político-estratégico entre os povos do Iraque, Líbano, Síria, Afeganistão, Iêmen e os Palestinos;

2. Diplomático: demonstrou capacidade de estabelecer redes e construir pontes de confiança nos países da região e de empregar forças locais. Soleimani tinha a visão islâmica original do Imam Khomeini e do líder da revolução, que acreditava na interação e na cooperação;

3. Militar: costurou alianças, realizou treinamentos e aconselhamentos militares com a Força Al-Quds aos Houthis no Iêmen, ao Hezbollah na afirmação da soberania libanesa, no Iraque, na Síria e junto à resistência palestina;

4. Combate ao terrorismo: atuou nas estratégias de ação contra o Estado Islâmico;

5. Geopolítica: em 2015 foi responsável pela união trilateral Rússia, China e Irã na Síria para diminuir a influência americana e fortalecer a estabilidade dos países regionais;

6. Econômica: implementou a necessária estabilidade política do Golfo Pérsico, gerando reflexos na realização da parceria estratégica Irã-China para investimento na Nova Rota da Seda, com foco na exportação por corredores logísticos alternativos. Assim, o Irã por ser ponto chave para o sucesso chinês, com uma localização geográfica que liga a Ásia Central e a Europa com o Sul e Oeste Asiático, banhada pelo Estreito de Ormuz, por onde petróleo/gás são escoados, garantindo o fornecimento energético para a expansão produtiva da economia da China.

Assim, para fazer frente à eventual ataque EUA contra o Irã, buscou alianças regionais para ataques na retaguarda e profundidade estratégica, realizando ações táticas para reverter qualquer eventual derrota tática ou estratégica em uma coalizão no Golfo Pérsico sob liderança dos EUA.

Como método tático, as ações indiretas são destinadas a estruturar, prover, instruir, desenvolver e dirigir o apoio local em uma dada área de interesse, a fim de contribuir com a consecução de objetivos políticos ou estratégicos de mais longo prazo. Fundamentam-se essencialmente no trabalho com os habitantes locais. A forma consagrada de emprego destas ações encontra-se no escopo da guerra irregular, por meio da organização, expansão e emprego em combate de forças irregulares nativas [13].

O IRGC

O Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã (IRGC) é ramo das forças armadas iranianas criado após a Revolução Iraniana de 1979, por ordem do Aiatolá Ruhollah Khomeini. Enquanto o Exército iraniano defende as fronteiras e mantém a ordem interna do país, o IRGC destina-se a proteger o sistema político da república islâmica e a prevenir interferências estrangeiras. É composto por cerca de 125 mil militares, incluindo forças terrestres, aéreas e navais. Suas forças navais são hoje as principais forças encarregadas do controle operacional do Golfo Pérsico. O comandante-em-chefe do IRGC, desde 2019, é Hossein Salami.

O IRGC foi criado com base em unidades paramilitares dos Comitês Revolucionários Islâmicos, apoiadores do então líder dos xiitas iranianos, o aiatolá Ruhollah Mousavi Khomeini (1978-1989). Os combatentes dessas unidades eram chamados de “pasdar”, traduzido do Persa como “guardião ou protetor”. O corpo foi estabelecido como uma espécie de “contrapeso” ao não confiável Exército regular, cujos oficiais foram formados sob o regime do Xá. Com o tempo, o IRGC tornou-se uma unidade móvel, pronta para o combate de armas combinadas.

Por essa razão, a abordagem centra-se na falha do serviço de contrainteligência iraniana na proteção de autoridades no exterior, como na morte de Soleimani, considerando a especialização em guerra não convencional, operações de inteligência militar e operações no exterior.

As operações de assassinato seletivo conduzidas pelos EUA

A fim de consolidar e manter sua hegemonia global, os Estados Unidos da América desenvolveram e combinaram duas políticas da Grande Estratégia. A primeira, conhecida como full spectrum dominance (domínio do espectro total) cujos principais objetivos, dentre outros, são: o domínio absoluto sobre recursos naturais e energéticos, o controle da retórica dos Direitos Humanos e, por fim, o comando sobre as decisões nos organismos internacionais [14]. E a segunda, publicada no ano 2000 no documento Rebuilding America Defense (PNAC) com objetivo de “lutar e vencer em vários teatros de guerra ao redor do planeta”. Nesse contexto, a intervenção na Síria, no Líbano, no Iraque e no Iêmen, para assegurar os interesses e o comércio exclusivo de petróleo para garantir a continuidade das guerras prolongadas, cuja teoria de hegemonia extrarregional começou ainda em 1880 com a denominada Open Door School, que depois tomou corpo político-jurídico com a assinatura do National Security Act, em 26 de julho de 1947, pelo presidente Truman, tendo na Síria seu primeiro alvo na tentativa de integrar o petróleo do Golfo Pérsico à estratégia de hegemonia global americana.

As operações realizadas pelos EUA para a eliminação de alvos específicos – líderes Talibãs ou da Al-Qaeda – no Paquistão são conduzidas em conjunto pela Força Aérea Norte Americana e pela CIA. Se iniciaram na administração Bush (2004) e aumentaram na administração Obama (2013), ocorrendo em condições de total sigilo, em que poucas informações disponíveis sobre o assunto foram veiculadas pela mídia local paquistanesa ou norte-americana. No primeiro caso de assassinatos seletivos as regras para o processo de aprovação de um ataque são relativamente complexas e envolvem diversos atores para a autorização:

“Em um primeiro momento, para se desenvolver um alvo, cabe ao Comando Conjunto de Forças Especiais (Joint Special Operations Command, JSOC), construir um perfil das pessoas a serem eliminadas, denominados “Cartões de Baseball”, documentos que contém informações relevantes sobre os atos do sujeito e “padrões de comportamento”. Em seguida, esses alvos devem ser aprovados pelos centros de comando e pela Junta de Chefes do Estado Maior (Joint Chiefs of Staff).

“Só então os nomes dos alvos seguem para a aprovação dos Conselheiros da Presidência (Principals Committee). Por fim, seguem para a autorização do presidente. No segundo momento, a realização do ataque dependerá de uma nova autorização da Junta de Chefes do Estado Maior em conjunto com o Centro de Comando local (Iêmen, Somália ou Paquistão).”

Já as operações de investigação, reconhecimento e assassinato seletivo, conduzidas, dependendo do contexto, pela CIA ou pela USAF, requerem um complexo aparato tecnológico em escala global para seu funcionamento. Devido a essas operações se concentrarem na análise de imagens e busca por padrões de comportamento de indivíduos, e pelo fato de antes de serem uma plataforma de armamento, os drones são instrumentos de vigilância em contexto de hipervisibilidade com câmeras que coletam mais de 100.000 quadros por hora, fez-se necessária a dinamização de uma extensa e dispersa cadeia de comunicação e ação [15].

Apesar do uso permanente de drones em operações de assassinato seletivo pelos EUA/Israel com aquiescência dos governos britânico e francês, um relatório das Nações Unidas sobre operações de assassinato seletivo propôs – ainda que os limites não tenham sido definidos pelo Direito Internacional – a seguinte definição: (…) é um uso deliberado, premeditado e intencional de força letal pelos Estados, ou seus agentes sob a dimensão da lei, ou por um grupo armado em um conflito, contra um indivíduo específico que não está em custodia física do perpetrador. Nesse sentido, o mesmo relatório informa que a prática era recorrente em contextos de guerra formal. No entanto, ela tem sido realizada por Estados em território de outros Estados sob a justificativa de respostas legítimas a ataques terroristas, bem como aos desafios impostos pelas “guerras irregulares”.

Com efeito, as operações de assassinato seletivo a partir do uso de drones pelos EUA, em regiões como Paquistão, não encontram base jurídica no Direito Internacional, caracterizando uso indiscriminado e desproporcional de força, que inclusive viola a soberania daqueles países.

Assim, considerando esses fatores em conjunto é difícil justificar a plausibilidade jurídica da ocorrência de um conflito armado transnacional como contra a Al-Qaeda, o Talibã, ou o Irã, que justifique o uso da força para realizar operações de assassinato seletivo em outros países como Iêmen, Palestina, Somália, Afeganistão e Paquistão.

O Ministério de Inteligência e Segurança (MOIS) e a Organização de Inteligência do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC)

O MOIS [16]  funciona como uma combinação do FBI e da CIA, na medida em que tem poderes de investigação nacionais e internacionais. O braço de inteligência do Artesh é semelhante à Agência de Inteligência de Defesa. A inteligência Artesh avalia forças militares estrangeiras e ameaças estratégicas ao Irã, tais como as capacidades militares dos EUA e da Arábia Saudita. Tal como os militares dos EUA, a inteligência Artesh  não se imiscui em questões políticas. Sua principal missão é proteger o Irã de forças militares estrangeiras.

Falhas da contrainteligência iraniana e a ausência de sistema antidrones iraniano e iraquiano

Nas pesquisas realizadas, chama atenção a ausência de discussão nas revistas especializadas e nos think tanks de inteligência e forças especiais, sobre a falha da contrainteligência iraniana em 2020 em proteger o comboio para deslocamento do general Soleimani em Bagdá com apenas dois carros, seja pela ausência de sistemas portáteis de alerta antecipado, nos briefings de inteligência, nos protocolos de contrainteligência, nos sistemas de defesa antiaérea móvel, na blindagem específica dos veículos utilizados por autoridades com alumínio, cerâmica e aço com 200 mm de espessura, uma vez que o ataque foi realizado por meio da aeronave não-tripulada MQ-9 Reaper que alcança altitudes acima da aviação comercial e tem autonomia de até 27 horas, velocidade de até 400 km/h e carrega mais de uma tonelada de equipamentos, entre eles os mísseis Hellfire.

Reputa-se ainda como essencial para o cumprimento de qualquer missão militar, notadamente de contrainteligência, sete fatores determinantes: Doutrina, Organização, Adestramento, Material, Educação, Pessoal e Infraestrutura (DOAMEPI) (BRASIL, 2019), o que faltou às lideranças militares.

Ao que se sabe, são décadas de experiência da comunidade de inteligência dos EUA no rastreamento individual de líderes da Al-Qaeda e de outros alvos terroristas, identificando hábitos, rotinas, gostos pessoais, etc., o que deveria ter sido levantado no recebimento e análise da missão a probabilidade de um ataque surpresa.


FIGURA 3: O míssil Hellfire R9X utilizado no ataque a Soleimani (BBC).

É desconhecido o nível de doutrina, organização, adestramento e educação da Força Quds na preparação de sua contrainteligência; porém, com base na pesquisa da dinâmica das ações americanas com uso de drones para monitorar a movimentação de autoridades iranianas, houve falha grave na prevenção, detecção, obstrução e neutralização de ameaças a autoridades, dados, informações, documentos, áreas, instalações, pessoal, materiais, especialmente na avaliação das capacidades do inimigo de monitoramento, acompanhamento da rotina e padrão de comportamento para aquisição de alvos de autoridades iranianas, subestimando, assim, a importância de protocolos rígidos de contrainteligência na proteção orgânica de autoridades militares de alta patente quando no exterior.

Planejamento da segurança de dignitários

O conceito de segurança tem sentido bem amplo, abrange um conjunto de medidas a serem observadas e executadas, direta ou indiretamente, com o propósito de preservar a integridade do dignitário (física, moral, psicológica, imagem). Em um planejamento de segurança e proteção de dignitários, deve ser prioritariamente definido quais serão os círculos concêntricos de segurança e proteção no entorno da autoridade, notadamente em viagem internacional, que vai da composição da segurança velada, aproximada e ostensiva, à coordenação conjunta do espaço aéreo do país visitado, à alimentação, bebida e fiscalização do ar-condicionado de todos os ambientes, inspeção de veículos, hotéis, salas, bem como o levantamento das áreas críticas do itinerário do comboio de deslocamento, considerando o embarque e desembarque de aeronaves, veículos ou navios como momentos de maior vulnerabilidade, bem como locais de afunilamento de trânsito, estradas, eixos, vias de circulação, pontes e túneis, a falta de medidas de segurança na área de retaguarda, postos de vigilância e varredura de áreas. É imprescindível no gerenciamento de risco, informação do status da defesa aérea e antiaérea, o nível dos sistemas de interferência eletrônica, bem como previsão da linha de ação adotada em caso de defesa contra enxames de drones e/ou drones do tipo Raptor, usado no assassinato do general Soleimani, extremamente preciso e destrutivo.

Segundo reportagem da NBC News [17] havia confiança da diretoria da CIA, à época Gina Haspel, e do secretário de Defesa, Mark Esper, em seus informantes no aeroporto da Síria em Damasco e de Israel sobre o jato Airbus A320 da Cham Wings Airlines, exatamente no aeroporto iraquiano que abriga militares dos EUA, o que permitiria a detecção, identificação e localização do alvo.

As pesquisas indicaram que no espaço aéreo iraquiano a Força Aérea não tinha nem supremacia aérea nem controle do tráfego aéreo local, tudo era dominado pelos EUA. O tempo de exposição no embarque ou desembarque foi crítico, pelo que se observou nas imagens, houve separação do grupo entre uma minivan e um sedan, facilitando sobremaneira a identificação e aquisição do alvo, o que deveria ser previsto nos protocolos e relatórios de reconhecimento avançado e planejamento geral da operação de contrainteligência. Os drones usados pelos EUA tem motor barulhento, o que deveria ter chamado a atenção quando estivesse próximo, ainda que por binóculos dos agentes de segurança, já que o ambiente urbano em Bagdá é ruidoso.

Outra vulnerabilidade identificada foi o uso, naquela situação de celular, local pessoal ou institucional, sem a devida cobertura de contramedidas eletrônicas, pois os sinais dos celulares podem ser rastreados pelos modernos sistemas de inteligência de sinais como no apoio a busca de alvos (SIGINT).

No Exército Brasileiro, por exemplo, existe a Função de Combate Inteligência (F Cmb Intlg) que compreende o conjunto de atividades, tarefas e sistemas inter-relacionados empregados para assegurar compreensão sobre o ambiente operacional, as ameaças (atuais e potenciais), os oponentes, o terreno e as  considerações civis, baseado nas diretrizes do comando subordinado, executando tarefas associadas  às  operações  de  Inteligência,  Reconhecimento, Vigilância e Aquisição de Alvos (IRVA). Dentre essas tarefas está o apoio à busca de alvos, utilizando-se de sensores tecnológicos ou humanos.

Na Força Aérea Brasileira temos, no âmbito do Comando da Aeronáutica, o documento ICA 55-82 que define o Apoio às Viagens Aéreas Presidenciais, prevendo uma Equipe Precursora (ESCAV) e uma de missão de Reconhecimento (REC) fazendo o planejamento geral e a busca de todas as informações pertinentes como a definição de data, hora, rota, escala, logística, aspectos operacionais de apoio de segurança de aeródromo, aeronaves e helicópteros reserva.

Alguns detalhes da operação americana foram conhecidos, como o uso de três drones com quatro mísseis Hellfire cada, posicionados acima do aeroporto de Bagdá. Ora, para um serviço ativo e eficiente de contrainteligência tal vulnerabilidade deveria ser prevista nas Necessidades de Inteligência (NI) como Elementos Essenciais de Inteligência (EEI) levantadas no Exame de Situação, já conhecendo o modus operandi americano de assassinato seletivo por meio de drones realizado na Palestina, no Iraque e no Afeganistão.

Igualmente, as pesquisas sobre as aparições públicas de Soleimani indicam que não havia uma preocupação com sua segurança de forma efetiva, independente se estava no Irã ou nos países aliados. Aparentemente subestimaram a capacidade militar de inteligência, vigilância e reconhecimento dos EUA, causando preocupação a patente ausência de meios de proteção das autoridades militares no exterior em ao menos adquirirem um sistema de proteção orgânica antidrones.

Os sistemas antidrones são chamados de Counter-Unmanned Aerial System (C-UAS) sendo compostos por sistemas de detecção e ataque. As defesas contra drones seguem várias fases como em qualquer outro engajamento. Primeiro é preciso detectar o drone, o que pode ser feito com radares de detecção, analisadores de espectro de rádio frequência (ELINT), sensores óticos, infravermelho e sensores acústicos. Por exemplo, antes do início da operação que matou Osama bin Laden, o comandante do Seal Team Six foi chamado para um briefing sobre uma nova operação e logo percebeu que seria um alvo importante, ao ser informado que havia um satélite vigiando o local continuamente. O satélite fazia operação de “análise de padrão de vida” (pattern-of-life analysis), acompanhando o padrão de atividade dos alvos, no caso os moradores da casa.

Estes esquadrões de Reaper (MQ-9) são esquadrões de ataque, desempenhando todas as fases da doutrina de ataque: encontrar, posicionar, acompanhar, designar alvos, engajar e avaliar o resultado das ações. A carga típica do Reaper é de quatro Hellfires e duas bombas guiadas.

Ora, as informações de transporte de autoridades militares devem ser classificadas, bem como a necessidade imperativa de dissimulação com o uso de aeronaves reserva e comitiva dupla para despistar e dificultar qualquer identificação das coordenadas das autoridades. Seguindo ainda a cronologia dos fatos, após a identificação via telefone celular, o Quartel-General avançado do Comando Central dos EUA no Catar emitiu a ordem de ataque e, ato contínuo, quatro mísseis foram disparados, envolvendo os veículos em uma bola de fogo de grandes proporções.

Sistema ARP

A plataforma em si não é o item mais crítico, pois um sistema de ARP tem quatro subsistemas principais: a aeronave; os sensores e armamentos; os equipamentos de comunicação e transmissão de dados; e a estação terrestre, de onde a operação é conduzida.

Armas antidrones

Dependendo tipo de drone (tamanho, capacidade e carga mísseis) e se tático ou estratégico, são classificados por tamanho: pequeno, médio e grande, estes podendo ser abatidos por caças e mísseis.

Ora, os sistemas antidrones complementam a Defesa Antiaérea na proteção de comboios, unidades dispostas no terreno e de bases militares, alguns desses inclusive, deveriam ser usados na proteção orgânica do general Soleimani, especialmente quando em viagens ao exterior:

• Drone antidrones;

• Míssil antiaéreo portátil;

• Blindagem veicular com defesa ativa;

• Operações anti-operador contra as estações de controle e comunicação;

• Interferidor de data link de drones;

• Canhão automático de 57 mm como o russo ZAK-57;

• Radar e sensor antidrones com bloqueio rádio e GPS;

• Bloqueador de drones;

• Medidas de contra-reconhecimento.

Em arremate, o que se conclui é a notória ausência de mentalidade de segurança iraniana, cujo grau de profissionalismo é manifestado na observância de pequenos detalhes, desde o planejamento/execução à escorreita e judiciosa aplicação das Técnicas, Táticas e Procedimentos (TTP) existentes, seja na ausência aparente de protocolos de reconhecimento e de escalão avançado, seja de prover soluções táticas com uso de equipamentos portáteis como os acima elencados, cujo corpo técnico de militares especializados da Força Quds, sob a égide do Ministério de Inteligência e Segurança e da Organização de Inteligência do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, deveriam orientar quanto aos riscos dos padrões de comportamento das autoridades militares, situações críticas e vulnerabilidades.

Conclusão

Do exposto, viu-se que as operações americanas por meio de drones para realizar assassinatos seletivos violam os princípios de humanidade, proporcionalidade e necessidade (inclusive em 6 de dezembro de 2023, os EUA foram condenados em 50 bilhões de dólares de indenização pelo Tribunal Iraniano pela morte de Soleimani), previstos nas Convenções de Genebra de 1949, ratificados na ONU por Philip Alston, Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, que apresentou relatório durante a reunião do Conselho de Direitos Humanos da Assembleia Geral, sobre a política de Targeted Killing [18] realizada por alguns países sob o argumento de legítima defesa contra o terrorismo.

Depreende-se ainda que a estratégia iraniana de estabilização de seu entorno estratégico por meio de alianças com diferentes culturas, etnias e ramos do islamismo, teve origem ainda no Império Persa com sua política de concessões e alianças periféricas da Grande Pérsia que envolvia Azerbaijão, Afeganistão, Turquia e Daguestão, em países tão diversos quanto Síria, Palestina, Líbano, Iraque e Afeganistão, cujo êxito foi alcançado pela competência e habilidade pessoal do general Qasem Soleimani em forjar a estratégia regional e fortalecer o sistema de alianças do Irã, ao longo de seus 40 anos de experiência militar e no comando de tropas especiais, por meios de um planejamento que observou princípios das forças especiais como multiplicação de forças, superioridade relativa e economia de força.

Por corolário, pode ser presumido que o uso tático de guerra híbrida e abordagem indireta para estabelecer a profundidade estratégica iraniana foi uma decisão acertada, eficiente e exitosa, provendo poder dissuasório crível e capacidade de longo prazo para eventual ataque ou retaliação em qualquer país do Oriente Médio.

As principais lições sobre a importância da vida e obra de Soleimani repousam no êxito em integrar culturas tão diversas em torno de um objetivo comum, com o máximo de informalidade e carisma, sem deixar de lado o profissionalismo, a visão de conjunto e as responsabilidades inerentes ao posto de general-de-brigada.

Quanto às falhas da contrainteligência iraniana verificou-se que a falta de protocolos de prevenção provém de uma fraca mentalidade de segurança, que não protegeu dados, rotina e compromissos daquelas autoridades, concentrando equivocadamente diversas autoridades em um único voo, bem como a inaceitável ausência de coordenação e monitoramento de todo o espaço aéreo dos locais agendados e na ausência de investimento em sistemas antidrones portáteis.

Assim, concluímos que no Oriente Médio o Iraque é a primeira linha da profundidade estratégica do Irã, sendo também este o perímetro da profundidade estratégica regional russa, bem como a importância do Irã como corredor logístico da Rota da Seda chinesa, por isso a importância das ações executadas pelo general Soleimani sob a diretriz político-estratégica de Teerã, promovendo a estabilização da região sob à égide da guerra híbrida pelas equipes da Força Quds, logrando êxito em unificar os interesses de tão diferentes etnias e culturas da região.

Se é verdade que o planejamento e execução da guerra híbrida e indireta, travada pela República do Irã contra as ações de contenção do imperialismo americano, realizaram-se pela mente brilhante do general Soleimani, também é verdade que não podemos deixar de registrar que tal decorreu por cumprimento da cadeia de comando, isto é, do poder político ao nível tático-operacional em que o general Soleimani estava subordinado, ou seja, muito do que ficou de lição aprendida será repassada à nova geração de oficiais-generais para continuidade da estratégia iraniana. Por isso podemos sem dúvida suscitar e celebrar que seu nome seja inserido ente os 100 maiores líderes militares da História.


*Carlos Alexandre Klomfahs é advogado em direito internacional e egresso dos cursos de geopolítica da ECEME e de estratégia marítima da EGN/FEMAR. Klomfahs atua como consultor em inteligência corporativa. Contato: klconsultoria@yandex.com.


Notas

[1] Cf. Igor Fuser. O petróleo e a política dos EUA no Golfo Pérsico: a atualidade da Doutrina Carter.

[2] Ver mais em Herman Cuéllar. Interesses estratégicos em energia e matérias-primas: gás e petróleo, urânio e nióbio. Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 8, set. 2013.

[3] Syrus Ahmadi Nohadani. A Geopolítica do Irã de acordo com a teoria dos espaços tampão geográficos. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais e-ISSN 2238-6912 | ISSN 2238-6262| v.9, n.17, Jan./Jun. 2020 | p.189-211.

[4] Esta conclusão advém da pesquisa de Matheus Treuk Medeiros de Araujo. O império Aquemênida em Heródoto. Tese de Doutorado. FFLECH. USP. 2018.

[5] Sobre o assunto ver mais em José Antônio Geraldes Lima em: Arábia Saudita, Irã e as transformações do Complexo Regional de Segurança do Oriente Médio (2002-2020). Tese de Doutorado. Relações Internacionais. USP. 2022.

[6] Vide mais em: https://carnegieendowment.org/2021/09/23/ru-pub-85402.

[7] https://www.brasil247.com/mundo/ira-torna-se-membro-pleno-da-organizacao-de-cooperacao-de-xangai.

[8] Sobre o caráter não expansionista (ascensão pacífica) da China e sua não interferência na projeção regional do Irã, vide Isabela Loiola et al. A cooperação estratégica China-Irã no setor energético frente à hegemonia norte-americana. Revista de Estudos Internacionais (REI), v. 14, n.1 (2023).

[9] Sugere-se a leitura do artigo major-general Gholam Ali Rashid, um dos comandantes seniores das Forças Armadas do Irã e comandante do Quartel-General Central de Khatam-al Anbiya, sobre o General Soleimani ter sido um dos alunos da Escola de Pensamento do Imam Khomeini, que no campo da jihad e do combate armado, conseguiu chamar a atenção e trazer à tona as características desta escola na Ásia Ocidental. As premissas desta escola de pensamento são: confiar em Deus, selecionar o objetivo certo, ter planejamento estratégico e ter coragem. Disponível em: https://www.tehrantimes.com/news/493476/Martyr-Soleimani-laid-the-foundations-for-the-Islamic-Republics.

[10] De acordo com o Censo 2010 há 193 grupos étnicos vivendo na Rússia. Por Ekaterina Sinelschikova. Quantos grupos étnicos vivem na Rússia? Disponível em: https://br.rbth.com/estilo-de-vida/86094-quantos-grupos-etnicos-vivem-russia.

[11] https://www.timesofisrael.com/putin-said-to-host-iranian-revolutionary-guards-soleimani/.

[12] https://rusi.org/podcasts/talking-strategy/episode-18-qasim-soleimani-and-strategy-militant-proxies.

[13] Esse conceito encontra-se no Manual de Operações Especiais da Marinha do Brasil. ComOpNav-359.2017.

[14] Thiago Luiz Hipólito. A guerra híbrida dos EUA contra a Síria no século XXI. Dissertação de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em relações internacionais da universidade estadual da Paraíba. 2020, p14.

[15] Cf. Alcides Eduardo dos Reis Peron. American way of war: O reordenamento sociotécnico dos conflitos contemporâneos e o uso de drones. Instituto de Geociências. UNICAMP.

[16] https://iranprimer.usip.org/blog/2023/feb/17/explainer-how-iran%E2%80%99s-intelligenceagencies-work.

[17] https://www.nbcnews.com/news/mideast/airport-informants-overhead-drones-how-u-s-killed-soleimanin1113726.

[18] https://digitallibrary.un.org/record/685887?v=pdf.

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