A atuação britânica em março de 2022, quando o PM Boris Johnson foi à Ucrânia e as negociações com a Rússia paralisaram, encontra paralelo na Guerra das Malvinas.
Após o fracasso da contraofensiva ucraniana no ano passado, nas últimas semanas a mídia internacional difundiu, refletida em nossos artigos semanais, a notícia da iminente derrota da Ucrânia causada por uma grave falta de homens, armas e munições, bem como como um terrível moral das tropas. Entretanto, os russos avançam, embora lentamente, em quase toda a parte.
O tempo parece estar do lado de Moscou e contra Kiev e a OTAN. Neste ponto, surge a hipótese específica da necessidade de se chegar, mais cedo ou mais tarde, a um acordo negociado com os russos: antes um “congelamento” do conflito segundo o modelo coreano, do que um verdadeiro acordo de paz, que parece muito distante de qualquer perspectiva realista. É o pedido do Papa Francisco, entre outros.
Os ucranianos correm o risco de chegar à mesa de negociações em uma posição decididamente mais fraca do que em 2022, quando alcançaram importantes vitórias estratégicas, enquanto os russos se preparam para tomar Kharkov, a segunda cidade mais populosa do país.
Portanto, a questão que muitos se colocam é: não poderia ter sido encontrada uma solução para o conflito mais cedo, evitando assim dezenas de milhares de mortes de ambos os lados?
Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia foi alcançado em 12 de abril de 2022, mas foi abortado. Isto “poderia ser a base para novas negociações, mas não há sinais de que Kiev esteja pronta para as conversações”. O acordo incluía cláusulas que exigiam que a Ucrânia adotasse um status neutro e não aderisse à OTAN, limitasse o tamanho de suas Forças Armadas e concedesse um status especial ao leste da Ucrânia.
Os fatos
Vamos lembrar como os eventos se desenrolaram. Na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, a força aérea russa atacou alvos em toda a Ucrânia. Ao mesmo tempo, a infantaria e os blindados de Moscou invadiram o país pelo norte, leste e sul. Nos dias seguintes, os russos tentaram cercar Kiev.
Estes foram os primeiros dias e semanas de uma invasão que poderia muito bem ter resultado na derrota e subjugação da Ucrânia pela Rússia. Em retrospecto, parece quase milagroso que isso não tenha acontecido.
O que aconteceu no campo de batalha é relativamente bem compreendido e conhecido hoje, em 2024. O que é menos compreendido é a intensa diplomacia simultânea envolvendo Moscou, Kiev e uma série de outros intervenientes, que poderia ter resultado em um acordo poucas semanas após o início da guerra.
No final de março de 2022, uma série de reuniões presenciais na Bielorrússia e na Turquia e compromissos virtuais através de videoconferência produziram o chamado Comunicado de Istambul, que delineou o quadro para um acordo. Os negociadores ucranianos e russos começaram então a trabalhar no texto de um tratado, fazendo progressos substanciais rumo a um acordo. Mas em maio as conversações fracassaram, a guerra continuou e desde então custou dezenas de milhares de vidas de ambos os lados.
O que aconteceu? Quão perto as partes estiveram de acabar com a guerra? E por que eles nunca fecharam um acordo? (Veja em: https://www.foreignaffairs.com/ukraine/talks-could-have-ended-war-ukraine)
A oposição de Boris Johnson
Apesar das notícias do massacre de Bucha no início de abril, as negociações continuaram, até o projeto de 15 de abril, que previa que um acordo poderia ser alcançado dentro de duas semanas. Por que as negociações pararam? Segundo o líder russo Vladimir Putin, sob pressão do Ocidente, e em particular de Boris Johnson, então primeiro-ministro britânico, o Reino Unido forçou os ucranianos a continuarem os combates. “A resposta ocidental a estas negociações – admite a revista Foreign Affairs – foi certamente morna. “Washington e seus aliados estavam profundamente céticos quanto às perspectivas do caminho diplomático que emerge de Istambul.”
Não é certamente nenhum mistério que Boris Johnson, que foi a Kiev naquela época, tenha dito a Zelensky que qualquer tipo de acordo negociado representaria uma vitória para Vladimir Putin. Como contou Davyd Arakhamiia, um dos principais conselheiros do líder ucraniano, “depois do nosso regresso de Istambul, Boris Johnson visitou Kiev e disse-nos que não devíamos assinar nada com os russos e continuar a lutar”. Na verdade, durante sua visita à Ucrânia, Johnson disse: “Putin é um criminoso de guerra, deve ser colocado sob pressão” e três dias depois de o então primeiro-ministro britânico ter deixado Kiev, Putin declarou publicamente que as negociações com a Ucrânia tinham terminado repentinamente “em um beco sem saída”. Evidentemente algo aconteceu, como também confirmam fontes governamentais.
LIVRO RECOMENDADO:
Malvinas: cinco días decisivos
• Benito I Rotolo e José Enrique García Enciso (Autores)
• Em espanhol
• Capa comum
Tal como revelou o Washington Post (veja em: https://www.washingtonpost.com/national-security/2022/07/09/blinken-lavrov-diplomacy/), a diplomacia americana também se opôs ao acordo de abril de 2022 com Moscou.
Em uma entrevista à televisão israelense, o ex-primeiro-ministro daquele país, Naftali Bennett, confirmou que os Estados Unidos e o Reino Unido bloquearam o acordo e esta tese é também apoiada pelo depoimento direto de um diplomata ucraniano que fez parte da delegação de Istambul.
Este é o embaixador Oleksandr Chalyi que, durante um evento público em Genebra, na Suíça, recordou quão “perto” Kiev e Moscou estavam de terminar “a nossa guerra com uma solução pacífica”. Putin, observou ele, “tentou fazer todo o possível para concluir um acordo com a Ucrânia” e “realmente queria chegar a uma solução pacífica”. E em Istambul os dois lados “conseguiram chegar a um verdadeiro compromisso”. Contudo, “por alguns motivos” que o embaixador não esclareceu, esse compromisso “foi adiado”.
Agora, graças a uma série de testemunhos e documentos, sabemos o porquê e podemos concluir que o Ocidente, liderado pelos anglo-americanos, nunca quis a paz na Ucrânia.
Obviamente há interesses e partes interessadas, empresas e organizações que se beneficiam desta longa e irrestrita guerra sobre o que temos falado nesta coluna.
A experiência das Malvinas
Não podemos deixar de recordar um fato que se refere à experiência argentina na Guerra das Malvinas e às ações tortuosas da Grã-Bretanha.
Em um livro de leitura obrigatória para quem quer compreender a trama deste conflito permanente da Argentina com a Grã-Bretanha, Malvinas: cinco dias decisivos (José Enrique García Enciso e Benito Rotolo), encontramos um documento que não oferece nem uma história puramente de guerra e nem puramente diplomática. Oferece um relato único e detalhado dos detalhes da negociação para demonstrar o quão perto estivemos de alcançar a paz, ao mesmo tempo em que apresenta as consequências e experiências desse processo na zona de guerra. O ataque que não aconteceu e a paz que ruiu. Toda a tragédia está condensada em cinco dias.
Ali, vemos as intensas negociações entre o presidente do Peru, Fernando Belaúnde Terry, que ligaria repetidamente para o tenente-general Leopoldo Galtieri, com bases firmes para um cessar-fogo.
Como nos conta Juan Bautista Yofre: “Às 14h50 do dia 2 de maio, Belaúnde ligou novamente para Galtieri”. O presidente peruano perguntou-lhe: “Houve ataques hoje?” E Galtieri respondeu: “Em princípio não, terminaram à meia-noite e durante o dia, parece que até agora, não sei se tiraram folga no domingo, não houve ataque hoje”.
Enquanto se tentava recriar um espaço de negociação, no dia 2 de maio, após 30 horas de perseguição, o submarino nuclear HMS Conqueror afundou o cruzador ARA General Belgrano. Com uma tripulação de 1.093 pessoas, a ação causou a morte de 323 tripulantes. Ele foi afundado fora da zona de exclusão estabelecida ou autoimposta pela Grã-Bretanha.
No mesmo dia, também, o aviso ARA Alférez Sobral foi atacado, matando seu capitão e sete tripulantes. A ofensiva britânica em plenas negociações muito avançadas para conseguir a cessação das hostilidades foi uma provocação para evitar qualquer tipo de acordo negociado. Os ingleses procuravam apenas a vitória através de sangue e fogo. Eles nunca quiseram negociar.
Tirando conclusões
Ambos os acontecimentos históricos, em 1982 e em 2022, mostram uma forma de operar. Existem outros exemplos históricos que não podemos rever, por razões de espaço, que indicam como a Grã-Bretanha avança para atingir seus objetivos políticos. Quem quiser entender, que entenda…
Publicado no La Prensa.