Considerando que o cenário de vitória ucraniana está cada vez mais afastado, e que o Kremlin certamente deve estar priorizando o cenário de vitória russa, estaria a fala de Macron inspirada em Clemenceau e no “Cordão Sanitário”?
Em um artigo que publiquei recentemente no Velho General (Análise das estratégias dos EUA e da Rússia frente aos cenários possíveis de um mundo pós-Guerra da Ucrânia) apresentei uma análise sobre três possíveis cenários para o desfecho da Guerra da Ucrânia: vitória ucraniana (Cenário 1); impasse levando a um acordo de paz (Cenário 2); e vitória russa (Cenário 3).
Destaquei que devemos acompanhar atentamente os desdobramentos do conflito, não apenas no campo de batalha, para que possamos ir ajustando tais cenários em função das tendências. Neste sentido, devemos acompanhar com bastante atenção os movimentos das peças no tabuleiro, executados pelos diversos atores envolvidos. Tais movimentos podem sinalizar para um amadurecimento de determinadas tendências que podem contribuir diretamente para algum dos três cenários que citei, ou mesmo criar variantes dos cenários inicialmente levantados. Pode até mesmo dar origem a cenários inteiramente novos.
Mas um movimento de um peão deste jogo de xadrez global nos chamou a atenção esta semana.
No dia 26 de fevereiro, após se reunir com os outros líderes europeus em Paris, o presidente francês Emmanuel Macron levantou a possibilidade de um eventual desdobramento de tropas na Ucrânia. Segundo ele “nenhuma opção pode ser descartada”.
Mas logo se verificou uma forte reação, seja dos líderes europeus presentes à reunião em Paris, seja dos Estados Unidos da América (EUA), que ali não se fazia representar. O porta-voz do Conselho de Segurança dos EUA, John Kirby, afirmou que “Não haverá tropas dos EUA no terreno para missões de combate na Ucrânia”. Já o porta-voz de Downing Street disse que não haveria planos de qualquer desdobramento em larga escala, talvez apenas “um pequeno grupo de pessoal para apoio, incluindo o treinamento médico”. Mas foi do chanceler alemão Olaf Scholz a resposta mais enfática: “O que havia sido acordado desde o início continua válido para o futuro, especificamente, que não haverá soldados na Ucrânia enviados pelos países europeus ou pela OTAN”.
A fala de Scholz nos gera logo uma dúvida. Seriam tropas da União Europeia ou da OTAN? A que tropas Macron estaria se referindo? Como ele não discursou após um evento da aliança atlântica, mas dos líderes europeus, parece lógico que ele estava aventando esta possibilidade no âmbito europeu. Talvez numa iniciativa que poderia ser abraçada pela Organização de Segurança e Cooperação Europeia (OSCE). É bom lembrar que a referida organização havia desdobrado uma missão de verificação durante o conflito no Donbass, atuando entre 2014 e 2022, quando a Guerra na Ucrânia se iniciou. Lembro que a missão da OSCE se verificou sem a presença dos EUA, situação que não agradou aos norte-americanos em geral, e muito menos à Victoria Nuland, que culminou com sua famosa frase “F… Europe”.
Muitos consideraram a fala de Macron uma bravata. Seria mesmo? Para entender melhor esse evento, temos que considerar toda a conjuntura.
No presente, temos que a ajuda financeira dos EUA continua sob forte impasse no Congresso norte-americano, mesmo após o presidente da Câmara de Representantes, Mike Johnson, ter sido convidado para uma reunião na Casa Branca, onde sofreu forte pressão de Biden, da vice-presidente Harris, do presidente do Senado e mesmo do líder da minoria no Senado, o Republicano Mitch McConnell. Johnson vem se mantendo firme em não levar a ajuda à Ucrânia ao plenário sem que as questões imigratórias sejam enfrentadas primeiro.
Na Ucrânia, a lei de mobilização nacional, que permitiria a essencial convocação de 500 mil efetivos, continua patinando nos corredores da Rada (parlamento ucraniano).
Nos campos de batalha, após a derrota em Avdeevka, os russos parecem estar ganhando tração para uma possível ofensiva terrestre. Os recentes sucessos ucranianos contra navios e aeronaves russas não parecem ter o condão de uma mudança estratégica na condução da guerra.
No campo interno russo, a morte de Navalny poderia representar uma chance para uma reviravolta política e potencializar a opinião pública contra Putin e contra a guerra. Mas da mesma forma que se viu após o motim promovido por Prigozhin e seu grupo Wagner, não se nota nenhum movimento mais organizado da oposição. Considerando que o centro de gravidade da Rússia para a estratégia dos EUA e da OTAN seria o apoio político e popular de Putin, isso seria muito importante.
Dito isso, essa proposta de Macron poderia contribuir para um cenário de vitória ucraniana? Me parece que estaria longe disso.
Creio que não se pode descartar que essa estratégia talvez estivesse voltada para outro cenário, aquele em que se configure um impasse estratégico, que pudesse dar origem a um acordo de paz. Seria o cenário 2, com algumas variações, e ao qual já me referi no início deste ensaio.
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Mas para entender completamente a fala de Macron, talvez seja importante rever o passado.
Se analisarmos os dois últimos conflitos mundiais, talvez tenhamos algumas pistas que nos levem a entender o que se passaria pela cabeça de Macron e da diplomacia francesa.
Ao final da Primeira Guerra Mundial, Georges Clemenceau, primeiro-ministro francês, desempenhou um papel significativo nas negociações do Tratado de Versalhes. Uma das propostas mais importantes, sob o ponto de vista geopolítico, foi a encabeçada por Clemenceau, que envolvia a criação do “Cordão Sanitário”, uma medida que visava proteger a Europa Oriental da influência alemã e russa após a Primeira Guerra Mundial.
O “Cordão Sanitário” foi uma estratégia destinada a criar uma faixa de países independentes e aliados à França ao longo das fronteiras orientais da Alemanha. E para quem não se lembra, já previa uma República Ucraniana independente, coisa que nunca havia existido em toda a história dessa região. Esse “Cordão Sanitário”, que incluiu também a Polônia, a Tchecoslováquia e os Estados Bálticos, serviria como uma barreira contra a influência comunista russa, recém estabelecida no leste. Clemenceau apoiou essa ideia como uma medida preventiva para evitar futuros conflitos e proteger a França. Mas a criação destes países do “Cordão Sanitário” não surgiu de uma demanda das suas populações locais, mas de interesses geopolíticos externos, com consequências negativas que são sentidas até os dias atuais.
Outro evento importante a ser lembrado nesse quadro atual dos acontecimentos se deu ao final da Segunda Guerra Mundial. A península coreana esteve sob o domínio japonês durante a guerra. Com a derrota do Japão em 1945, houve a necessidade de determinar como a Coreia seria dividida entre as potências vitoriosas. Neste sentido, soviéticos e norte-americanos acordaram pela divisão da península coreana em setores ocupados pela URSS, ao norte, e pelos EUA, ao sul. Era o famoso Paralelo 38. Essa divisão não envolveu consulta aos coreanos e gerou insatisfação, que se prolonga até os dias de hoje.
Podemos dizer que o espírito de Clemenceau tenha se revelado na mente de Macron? Se aplicássemos a estratégia de Clemenceau ou a estratégia do Paralelo 38 a um cenário de impasse na Guerra da Ucrânia, uma linha deveria ser traçada no mapa ucraniano. Duas zonas poderiam ser definidas, uma sob ocupação de países europeus ou da OTAN, e outra sob ocupação russa.
Parece claro que a presença da OTAN em uma zona de ocupação na Ucrânia jamais seria aceita pela Rússia. Neste sentido, parece mais viável uma missão da OSCE. Seria essa a ideia de Macron, apresentada aos líderes europeus?
Com relação à demarcação de uma linha divisória, poderíamos imaginar que o corte do Rio Dnieper poderia ser um limite natural. Os líderes europeus aceitariam a incorporação definitiva da Crimeia e toda a margem leste do Dnieper à Rússia.
Um outro dado interessante e que pode revelar muito sobre a proposta de Macron é o resultado prático do apoio francês à Ucrânia desde o início da guerra. Tal dado foi levantado pelo Instituto Kiel, da Alemanha, que possui um projeto destinado a acompanhar as contribuições nacionais para o esforço de guerra ucraniano. Segundo este instituto, a França seria um “contribuinte retardatário”, tendo fornecido 640 milhões de dólares em ajuda total, ao passo em que a Alemanha investiu 17,7 bilhões nesse apoio. Logo, o viés de Macron não parece tê-lo habilitado a ser um profeta da escalada do conflito. Longe disso.
Outro dado interessante, revelado nesta semana, foi apresentado pela prestigiosa mídia Politico (GOP senators signal that only way out of Ukraine-Russia war likely is ‘negotiated settlement’). Segundo a matéria, no congresso norte-americano estaria surgindo um movimento relevante. Liderado por Republicanos menos radicais que o speaker Mike Johnson, particularmente no Senado, o movimento prega uma solução negociada para o conflito na Ucrânia.
Somando todos estes fatos da conjuntura, poderíamos estabelecer um cenário 2 alternativo, que retrataria uma possível solução do impasse estratégico no conflito ucraniano. Seria um no qual ocorreria uma divisão do país em uma esfera de influência europeia (sem participação da OTAN e dos EUA) e uma esfera de influência russa.
Mas podemos estabelecer, desde já, duas conclusões: a primeira é de que o cenário 1 (vitória da Ucrânia) estaria cada vez mais distante. E segunda é que o cenário 3 (vitória russa), ainda deve estar sendo priorizado pelas lideranças no Kremlin. Um cenário 2 dependeria hoje de um impasse na Rússia, para o qual ainda não há evidências concretas.
Só nos resta continuar acompanhando as tendências.