O Hamas e um isolamento sem precedentes, Parte 1: Racionalidade no governo saudita moderno

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O secretário de Estado americano, Antony Blinken, encontra-se com o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, em Jeddah, Arábia Saudita (Bandar Al-Jaloud/Palácio Real Saudita via AFP).

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, encontra-se com o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, em Jeddah, Arábia Saudita (Bandar Al-Jaloud/Palácio Real Saudita via AFP).

A reação saudita à guerra tem se limitado ao apoio verbal ao povo de Gaza, aconselhando as partes a exercerem contenção e propondo uma solução de dois Estados, rejeitando a realocação forçada da população de Gaza e condenando os ataques de Israel contra civis.


Numa entrevista a Fareed Zakaria na CNN, o analista americano sênior Thomas Friedman disse: “Embora o Irã não tenha sido o instigador do ataque do Hamas, é seu maior beneficiário porque a guerra entre o Hamas e Israel torna impossível a normalização das relações entre a Arábia Saudita e Israel no curto prazo”. É claro que todos sabiam desde o início o simples fato de que este ataque resultaria em uma resposta forte de Israel, muitos palestinos de ascendência árabe seriam mortos e isso faria com que países árabes, como a Arábia Saudita, se distanciassem novamente de Israel. Mas será o Irã o maior beneficiário?

Esta análise foi feita enquanto todos sabíamos que os governos árabes estão abrandando o processo de normalização de relações com Israel devido à gestão da opinião pública de seus países no intuito de reduzir críticas. No entanto, a Arábia Saudita nem sequer era assim tão conservadora e, apenas alguns dias após o ataque do Hamas, durante a visita de John Kirby a Riad, ficou claro que os sauditas podem não de afastar tanto de Israel.

Depois de visitar o país, Kirby disse que Riad ainda está interessada e comprometida em normalizar suas relações com Tel Aviv. O fato é que o jovem príncipe herdeiro saudita, que se tornou o homem número um nas notícias do mundo árabe, é mais pragmático do que se poderia imaginar. Em princípio, a reação saudita à guerra limitou-se ao apoio verbal ao povo de Gaza, aconselhando as partes a exercerem contenção e propondo uma solução de dois Estados.

Isso significa que os sauditas têm se mantido ocupados apenas emitindo declarações e realizando reuniões. Em 7 de outubro, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita fez um apelo pelo fim imediato da tensão entre os dois lados. Desde então, os sauditas publicaram diversas declarações, deram telefonemas e realizaram reuniões multilaterais, mas o resultado dessas ações ainda não foi o restabelecimento da estabilidade na região e não contribuiu para este objetivo. Depois disso, Riad declarou que rejeitava os pedidos de Israel de realocação forçada da população de Gaza e condenou a continuidade dos ataques de Israel contra civis desarmados.

Uma decisão conservadora

É fato que a Arábia Saudita se contentou em emitir uma declaração que pode ser considerada de certa forma conservadora. Foi mais óbvio quando o príncipe herdeiro saudita, mesmo em um telefonema com o presidente do Irã sobre o conflito em Gaza, contentou-se com críticas implícitas, especialmente quando salientou que Riad é contra a colocação de alvos na população civil e enfatizou seu compromisso com uma paz justa e abrangente, o que significa apoiar uma solução de dois Estados. O apoio saudita à solução de dois Estados , que atualmente os EUA também propõem, foi uma iniciativa saudita liderada por Abdullah bin Abdul Aziz, então príncipe herdeiro saudita, que pretendia que os países muçulmanos árabes e não árabes normalizassem suas relações com Israel em troca da formação de um Estado palestino.

Claro que este plano é considerado morto há muito tempo, mas apesar disso, o príncipe Faisal bin Farhan,  ministro dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita, o destacou como uma das poucas ofertas tangíveis para o estabelecimento da paz entre Israel e Palestina e enfatizou o compromisso de Riad com justiça para os palestinos. A Arábia Saudita fez esta proposta em 18 de outubro na reunião do Comitê Executivo da Organização de Cooperação Islâmica, que coordenou. Em seu discurso na reunião do Comitê, que incluía o Irã, Faisal bin Farhan condenou a falta de interferência séria e a existência de um duplo padrão na comunidade internacional na resposta às operações militares de Israel em Gaza. Ele também reiterou o apoio da Arábia Saudita ao plano de paz árabe de 2002.


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Também um dia antes dessa reunião, Turki bin Faisal, uma proeminente ex-figura de segurança da Arábia Saudita, fez um discurso no Instituto Baker de Políticas Públicas da Universidade Rice, em Houston, Texas. Nesse discurso, ele não apenas criticou Israel e o Ocidente pelo derramamento de sangue em Gaza, mas também o Hamas por atacar civis israelenses. É verdade que Turki já não exerce nenhum cargo no governo, mas é considerado alguém que faz as declarações públicas que autoridades sauditas não podem fazer.

Uma ausência misteriosa

A Arábia Saudita pode, na verdade, ser chamada de “ausente especial” nestes dias de guerra. Esta ausência pode mostrar uma espécie de racionalidade. Entre o interesse nacional de seu país ou colocá-lo em uma situação difícil, o jovem príncipe herdeiro, apesar da pouca experiência, escolheu a primeira opção, evitando um comportamento exaltado. Sabemos que Bin Salman tem sido criticado em círculos extremistas religiosos por tentar normalizar as relações com Israel nos últimos anos. Ele está em um dilema perturbador: de um lado, a opinião pública de seu país espera que ele apoie os árabes palestinos e, de outro, seu plano de prosperidade Visão 2030 depende em grande parte da estabilidade e integração com a maioria das principais economias regionais, incluindo Israel. É por isso que a Arábia Saudita seguiu o caminho da moderação. Os sauditas poderiam ser mais francos em suas críticas ao Hamas, poderiam fornecer refúgio aos palestinos que necessitam de cuidados médicos e poderiam usar suas boas relações com Israel para moldar, de forma privada, a resposta de Israel ao ataque de 7 de outubro. Apesar disso, o príncipe herdeiro saudita aparentemente concluiu que é melhor não se expor desta forma. De seu ponto de vista, basta emitir declarações e criticar a comunidade internacional. Na verdade, desde que começou a guerra entre Israel e o Hamas, os novos sauditas têm agido de forma muito semelhante aos antigos sauditas. Há movimentação em Riad, mas não se percebe nenhuma interferência. Isto apesar de alguns países não se importarem se a Arábia Saudita interferisse no conflito, mas, entretanto, perseguirem seus próprios interesses.

Bin Salman deu muitos passos errados nos últimos anos e não tem muita margem de erro. De acordo com avaliações da inteligência dos EUA, o assassinato de Jamal Khashoggi foi realizado com a aprovação de Bin Salman, o que prejudicou gravemente a imagem da Arábia Saudita no Ocidente e nos Estados Unidos. Seu governo também é acusado de raptar o ex-primeiro-ministro libanês Saad Hariri e forçá-lo a se demitir na televisão porque, na opinião de Bin Salman, ele não foi suficientemente agressivo com o Hezbollah. Além disso, em cooperação com os Emirados Árabes Unidos, ele implementou um bloqueio terrestre e marítimo contra o Qatar para forçar Doha a mudar sua política externa. Esta abordagem não conseguiu provocar as mudanças desejadas por Bin Salman, mas causou uma ruptura no Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico e aproximou o Qatar do Irã. Por esta razão, é compreensível que Bin Salman tenha mostrado recentemente uma face mais flexível e enfatize a negociação em vez do conflito. Os sauditas retomaram agora suas relações com o Qatar e normalizaram suas relações com o Irã, ao mesmo tempo em que alcançaram um cessar-fogo com os Houthis. Isto pode não agradar algumas pessoas que por isso podem estar interessadas em colocar a Arábia Saudita na guerra em Gaza por qualquer meio possível.

Efeitos regionais deste conservadorismo racional

O conservadorismo saudita na questão de Gaza tem mais efeitos regionais. Talvez o comportamento conservador e a moderação em fazer declarações beligerantes possam ser considerados como uma boa razão para a oposição geral do povo iraniano à intervenção do governo de seu país na guerra com Israel. Embora as facções extremistas do Irã tentem manter aceso o fogo da intenção de guerra com Israel e inclusive afirmem que seis milhões de seus apoiadores no Irã se registraram para ir à Gaza para lutar contra Israel, a opinião pública média no Irã apoia a paz, estabilidade e resolução de conflitos regionais.

O fato é que no mesmo dia em que o governo do Irã anunciou luto público pelo povo de Gaza, a Arábia Saudita organizou o maior evento de entretenimento do Oriente Médio convidando figuras americanas e estava ocupada realizando uma grande celebração. Coincidindo com o Dia Mundial do Turismo (27 de setembro), a capital saudita, Riad, acolheu uma grande celebração com presença de 500 responsáveis de 120 países. Líderes do turismo mundial viajaram a Riad para o evento turístico mais importante dos últimos 43 anos.

Alguns analistas no Irã questionam se, embora a Arábia Saudita, centro religioso do mundo islâmico, país árabe mais rico e tendo mantido extensas relações com o Hamas durante anos dando-lhe apoio financeiro, e compartilhando a mesma raça (árabe) e a mesma religião (sunita) dos palestinos, não está realmente apoiando o Hamas na guerra, por que o Irã o faz? O Irã, cuja maioria não é árabe nem sunita e, por outro lado, suas relações com o Hamas foram restauradas por apenas um ano após dez anos de obscuridade a respeito de questões como a Síria! Um apoio que certamente custará muito ao Irã, em uma situação em que inúmeros problemas econômicos têm dificultado a subsistência das pessoas, sua mesa está diminuindo dia a dia e a voz dos protestos está se tornando mais alta. É verdade que os iranianos estão tristes pelo sofrimento do povo palestino, mas não é do interesse do seu país estar à frente de outros países árabes nesta questão e entrar efetivamente em uma guerra em defesa do Hamas.

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1 comentário

  1. A quem quiser entender o porquê da traição da Arábia Saudita contra o povo palestino, sugiro estudar as raízes sabateanas do wahhabismo. O serviço secreto iraquiano da época do Saddam Hussein preparou um relatório bem completo sobre essa conexão dos Al-Saud e dos Al-ash-Sheikh com os dönmeh turcos.

    Aliás, os “Jovens Turcos” que protagonizaram o genocídio armênio no início do século passado eram, em boa medida, sabateanos também.

    Sem conhecimento razoavelmente profundo das religiões, seitas e sociedades secretas, é impossível entender a história dos últimos 5-6 séculos das Américas, Europa e Oriente Médio.

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